Introdução
Pactos antenupciais continuam a ser ferramenta central para organizar, com previsibilidade, os efeitos patrimoniais do casamento, inclusive quando há conexões transnacionais, como nacionalidades distintas, domicílios em países diversos ou bens situados no exterior. No Brasil, o pacto exige forma pública e publicidade registral para oponibilidade a terceiros1. Em cenários internacionais, soma-se o diálogo com o direito internacional privado, tanto nas regras brasileiras quanto em instrumentos estrangeiros relevantes, como o Regulamento (UE) 2016/1103, que admite escolha de lei aplicável ao regime matrimonial dentro da União Europeia2 .
As cláusulas devem respeitar limites de ordem pública e a jurisprudência brasileira tem delineado, com maior precisão, os contornos de sua validade material, inclusive em hipóteses de separação obrigatória de bens3. A crescente mobilidade internacional de pessoas e capitais, aliada à formação de núcleos familiares com elementos de estraneidade, torna imperativa a análise aprofundada dos aspectos jurídicos que envolvem esses instrumentos. A ausência de planejamento adequado pode resultar em incertezas jurídicas e litígios complexos, especialmente quando da dissolução da sociedade conjugal ou em questões sucessórias.
1. Marco normativo brasileiro aplicável
1.1. Requisitos formais e eficácia perante terceiros
O Código Civil exige que o pacto antenupcial seja celebrado por escritura pública e estabelece que sua eficácia perante terceiros depende de registro em livro especial do Registro de Imóveis do domicílio do casal4. Essa exigência de observância da forma pública e da publicidade registral revela-se fundamental para assegurar a transparência e conferir segurança jurídica às relações patrimoniais, especialmente no tocante à oponibilidade do pacto antenupcial perante terceiros.
A forma pública, materializada na escritura lavrada por tabelião, garante a autenticidade do ato e a manifestação livre e consciente da vontade das partes. Já a publicidade registral, efetivada mediante o registro no Cartório de Registro de Imóveis, confere oponibilidade erga omnes ao pacto, protegendo terceiros de boa-fé que venham a contratar com os cônjuges. Ao garantir que o conteúdo do pacto seja de fácil acesso e consulta, previnem-se litígios futuros e promove-se maior confiabilidade ao tráfico jurídico de bens, em contextos tanto nacionais quanto internacionais.
1.2. Direito internacional privado brasileiro
A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro determina a lei aplicável às relações patrimoniais entre cônjuges e afasta a aplicação de lei estrangeira quando contrária à ordem pública brasileira5. O artigo 7º, §4º, da LINDB estabelece que o regime de bens, legal ou convencional, obedece à lei do país em que tiverem os nubentes domicílio, e, se este for diverso, à do primeiro domicílio conjugal. Essa regra de conexão visa proporcionar segurança jurídica e previsibilidade às relações patrimoniais, evitando conflitos de leis que poderiam comprometer a estabilidade do regime matrimonial.
Contudo, a aplicação da lei estrangeira encontra limites na cláusula de ordem pública prevista no artigo 17 da LINDB, que veda a eficácia no Brasil de leis, atos e sentenças estrangeiras que ofendam a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes. Essa disposição funciona como um filtro protetor dos valores fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro, impedindo que normas estrangeiras incompatíveis com os princípios constitucionais e legais nacionais produzam efeitos em território brasileiro.
1.3. Cooperação e reconhecimento de decisões estrangeiras
O reconhecimento e a homologação de decisões estrangeiras em matéria de pactos antenupciais seguem o regramento estabelecido pelo Código de Processo Civil, cabendo ao Superior Tribunal de Justiça exercer essa competência, nos termos do artigo 105, inciso I, alínea “i”, da Constituição Federal6. Para que tais decisões produzam efeitos no território nacional, exige-se o atendimento aos requisitos formais e materiais previstos na legislação brasileira, bem como o respeito à ordem pública e à soberania nacional.
O procedimento envolve a instrução adequada do pedido, com a apresentação de documentos legalizados e traduzidos, observando-se, quando aplicável, os tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil, a fim de garantir a efetividade e a segurança jurídica nas relações patrimoniais transnacionais7. O STJ oferece orientações institucionais sobre requisitos, documentos e trâmites, úteis para planejamento de casos transnacionais8. A análise da conformidade da decisão estrangeira com a ordem pública brasileira constitui etapa fundamental do processo de homologação, exigindo do julgador uma avaliação cuidadosa dos valores e princípios em conflito.
1.4. Apostilamento e traduções
Para a circulação de documentos notariais destinados ao exterior, aplica-se a Convenção da Apostila de Haia, regulamentada no Brasil pelo CNJ. A Resolução n. 228/2016 e o Provimento n. 62/2017 disciplinam o apostilamento e aspectos práticos de traduções e documentos eletrônicos9. O apostilamento simplifica significativamente o processo de legalização de documentos para uso no exterior, substituindo o complexo sistema de legalizações consulares por um procedimento único e padronizado.
Além disso, materiais orientativos elaborados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo Ministério das Relações Exteriores oferecem esclarecimentos detalhados acerca dos procedimentos requeridos para apostilamento e tradução de documentos estrangeiros, facilitando o correto trâmite e o cumprimento das exigências legais10. Esses instrumentos são fundamentais para garantir segurança jurídica e transparência nas relações patrimoniais transnacionais, promovendo alinhamento às normas brasileiras e aos acordos internacionais vigentes.
2. Validade material e limites de ordem pública
A validade material do pacto antenupcial está sujeita ao controle de constitucionalidade e aos limites impostos pela ordem pública. Cláusulas que contrariem normas cogentes ou atentem contra direitos indisponíveis não poderão prevalecer, ainda que a legislação estrangeira eventualmente escolhida as admita. A ordem pública, conceito jurídico de contornos dinâmicos, representa o conjunto de princípios e valores fundamentais que sustentam o ordenamento jurídico brasileiro, sendo inderrogável pela vontade das partes.
2.1. Conceito e alcance da ordem pública brasileira
A ordem pública brasileira abrange não apenas as normas expressamente declaradas de ordem pública pelo legislador, mas também os princípios constitucionais fundamentais, como a dignidade da pessoa humana, a igualdade, a proteção da família e a função social da propriedade. No âmbito do direito de família, integram a ordem pública as normas que protegem os direitos da personalidade, garantem a igualdade entre os cônjuges e asseguram a proteção do cônjuge economicamente mais vulnerável.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem contribuído significativamente para a delimitação dos contornos da ordem pública em matéria matrimonial. O tribunal tem reconhecido que a autonomia da vontade das partes encontra limites nos direitos indisponíveis e nas normas cogentes, mas também tem demonstrado uma tendência de valorização da liberdade contratual quando não há violação a princípios fundamentais.
2.2. A releitura da Súmula 377 do STF
Nesse contexto, destaca-se que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou uma releitura da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, condicionando a comunicação de aquestos no regime de separação legal de bens à demonstração de esforço comum11. Essa evolução jurisprudencial representa um avanço significativo na proteção da autonomia da vontade e na adequação das normas às realidades sociais contemporâneas.
ATUALIZAÇÃO STF (1º.2.2024): o Supremo Tribunal Federal decidiu ser válida a adoção de regime de bens diverso da separação obrigatória para casamentos de maiores de 70 anos, desde que haja manifestação expressa por escritura pública antes do casamento. Portanto, nessa hipótese, não há mais imposição automática de separação legal (tema relacionado ao art. 1.641, II, do CC).
Mais recentemente, no julgamento do Recurso Especial nº 1.922.347/PR, o STJ foi além e decidiu que os cônjuges, mesmo no regime da separação obrigatória, podem celebrar pacto antenupcial para afastar a incidência da Súmula 377, estabelecendo um regime ainda mais restritivo de incomunicabilidade patrimonial12. Essa decisão reforça a possibilidade de inserção de cláusulas no pacto antenupcial que afastem a incidência do referido enunciado, desde que não se configure afronta à ordem pública ou prejuízo a direitos essenciais.
2.3. Proteção do cônjuge vulnerável
Um aspecto fundamental da ordem pública brasileira em matéria de pactos antenupciais diz respeito à proteção do cônjuge economicamente mais vulnerável. O ordenamento jurídico brasileiro não admite cláusulas que deixem um dos cônjuges em situação de desamparo ou que violem o princípio da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, são consideradas nulas as disposições que privem completamente um dos cônjuges de qualquer direito patrimonial ou que estabeleçam condições manifestamente desproporcionais.
A proteção do cônjuge vulnerável manifesta-se também na exigência de que a manifestação de vontade seja livre e esclarecida, sem vícios de consentimento. A jurisprudência tem reconhecido a importância da assessoria jurídica independente para cada uma das partes, especialmente quando há significativa disparidade econômica entre os nubentes.
2.4. União estável e irretroatividade do regime eleito
Em união estável, o STJ fixou que pactos ou escrituras com definição de regime de bens produzem efeitos prospectivos, sem retroatividade automática, o que impacta a redação de cláusulas e a expectativa legítima de terceiros13. A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça definiu que uma escritura pública, lavrada em 2015 e que define a incomunicabilidade de bens, não pode retroagir seus efeitos a uma escritura lavrada em 2012, quando se estava em regime de comunhão parcial de bens.
Esse entendimento visa proteger a segurança jurídica e a estabilidade das relações patrimoniais, evitando que situações já consolidadas sejam alteradas por manifestações de vontade posteriores. A irretroatividade constitui, assim, um princípio fundamental que deve ser observado na elaboração de pactos antenupciais, especialmente em contextos internacionais onde a complexidade das relações patrimoniais é ainda maior.
Dessa forma, o pacto antenupcial, para ser válido e eficaz, deve observar os parâmetros constitucionais, respeitar direitos indisponíveis e atender aos requisitos de ordem pública, promovendo segurança jurídica e proteção do patrimônio dos cônjuges diante das complexidades das relações patrimoniais, especialmente em contextos transnacionais.
3. Cláusulas de eleição de lei aplicável: possibilidades e cautelas
3.1. Parâmetros europeus de professio iuris
O Regulamento (UE) 2016/1103 permite que cônjuges indiquem a lei aplicável ao regime matrimonial (professio iuris, art. 22), com aplicação universal (art. 20), observadas as regras de competência e reconhecimento previstas no instrumento.
O regulamento trata não só da determinação da lei aplicável, mas também da competência, reconhecimento e execução de decisões relacionadas aos regimes matrimoniais, incluindo os efeitos patrimoniais de uniões registradas14. A possibilidade de escolha da lei aplicável representa um avanço significativo na harmonização do direito internacional privado europeu, proporcionando maior previsibilidade e segurança jurídica aos casais com elementos de estraneidade.
3.2. Direito comparado norte-americano
No contexto norte-americano, em razão do caráter federativo do país, a legislação acerca de pactos antenupciais e regimes matrimoniais varia conforme o estado, o que demanda atenção especial à normatização local. Diversos estados adotaram o Uniform Premarital Agreement Act (UPAA) e, mais recentemente, o Uniform Premarital and Marital Agreements Act (UPMAA), instrumentos que visam uniformizar os requisitos de validade, execução e reconhecimento desses acordos.
Ambos os atos estabelecem parâmetros sobre a necessidade de divulgação transparente de informações patrimoniais, voluntariedade na pactuação, ausência de vícios de consentimento e compatibilidade com os princípios de equidade e ordem pública. Tal panorama demonstra a importância de se observar, em cada jurisdição, os requisitos específicos para garantir a plena eficácia e segurança jurídica dos pactos celebrados, especialmente em situações que envolvam elementos internacionais ou transnacionais.
O Uniform Premarital Agreement Act (UPAA) consiste em uma legislação de âmbito estadual norte-americano, criada com o objetivo de assegurar uniformidade na regulamentação dos acordos pré-nupciais entre diferentes jurisdições dos Estados Unidos. Este instrumento permite que as partes envolvidas optem pela legislação de um determinado estado para reger o pacto, disciplinando temas relevantes como pensão alimentícia, divisão patrimonial e guarda de filhos.
O UPMAA (2012) disciplina acordos antenupciais e pós-nupciais; o UPAA (1983) trata apenas de acordos antenupciais. Em ambos, destacam-se requisitos como voluntariedade, ausência de coação, divulgação razoável de bens e possibilidade de escolha de lei, conforme legislação estadual aplicável.
A Flórida positivou o UPAA no § 61.079, estabelecendo requisitos de validade como escrita, voluntariedade, disclosure e ausência de unconscionability15. A jurisprudência “In re Marriage of Bonds”, da Suprema Corte da Califórnia, discute voluntariedade e independência de aconselhamento jurídico16. Estudos de doutrina acompanharam a evolução normativa e os padrões de enforcement17.
4. Homologação e executividade transnacional
Um pacto antenupcial feito fora do país pode produzir efeitos no Brasil quando: (i) é válido pela lei aplicável (regra do §4º do art. 7º LINDB); (ii) não afronta a ordem pública brasileira (art. 17 LINDB); e (iii) são cumpridas as formalidades de reconhecimento local (apostila, tradução, etc.). Se o regime é regido por lei estrangeira, as exigências formais brasileiras (escritura pública do art. 1.653 CC e registro no Livro 3 para oponibilidade a terceiros do art. 1.657 CC) não se impõem como condição de validade do pacto estrangeiro. (O registro é feito no Livro nº 3 — Registro Auxiliar — do Registro de Imóveis do primeiro domicílio conjugal, nos termos da LRP, arts. 177–178 e 244).
4.1. Procedimentos para reconhecimento
Na prática extrajudicial, para que um pacto antenupcial celebrado no exterior circule no Brasil, recomenda-se observar as etapas abaixo. Atenção: as formalidades do art. 1.653 do CC (escritura pública brasileira) dizem respeito à validade do pacto celebrado no Brasil; pactos regidos por lei estrangeira seguem a forma do país competente (LINDB, art. 7º, §4º), mas sua oponibilidade a terceiros no Brasil poderá exigir publicidade registral (CC, art. 1.657 c/c LRP). Para fins práticos, costuma-se:
- Apostilar o pacto no país de origem (Convenção da Apostila de Haia);
- Traduzir no Brasil por tradutor juramentado;
- Registrar em Cartório de Títulos e Documentos (RTD) no Brasil, para fins de publicidade e conservação, quando útil; se se pretender oponibilidade perante terceiros em território nacional, proceder também ao registro no Livro nº 3 do Registro de Imóveis do primeiro domicílio conjugal (CC, art. 1.657; LRP, arts. 177–178 e 244).
- Transcrição do casamento (se cabível) no Registro Civil brasileiro, com apresentação do pacto traduzido e apostilado para eventual averbação/menção, conforme normas locais;
4.2. Homologação pelo STJ
O pacto em si, por se tratar de ato notarial, não há exigência de homologação do STJ a princípio, porém, a eficácia no Brasil de atos ou decisões estrangeiras relacionados a pactos antenupciais pode exigir homologação perante o STJ quando houver sentença ou ato equiparado18. O STJ mantém orientações práticas que auxiliam na definição do caminho processual adequado^20^.
A homologação de sentença estrangeira constitui procedimento de jurisdição voluntária que visa conferir eficácia no Brasil a decisões proferidas por tribunais estrangeiros. No caso específico de pactos antenupciais, a homologação pode ser necessária quando há decisão judicial estrangeira que interprete, modifique ou declare a nulidade do pacto, ou quando há necessidade de executar obrigações decorrentes do instrumento.
5. Técnicas de salvaguarda patrimonial e de efetividade
5.1. Formalidades em duplicidade útil
Para garantir maior segurança jurídica e efetividade patrimonial nas relações matrimoniais internacionais, recomenda-se que sejam adotadas formalidades em duplicidade útil. Nesse sentido, orienta-se a celebração da escritura pública no Brasil, observando-se as exigências legais locais, bem como a elaboração de instrumento equivalente compatível com a jurisdição de residência dos nubentes ou partes envolvidas19.
Tal prática, além de facilitar o reconhecimento, a publicidade e a oponibilidade do pacto antenupcial perante diferentes autoridades, contribui para mitigar potenciais conflitos de leis e assegurar o pleno cumprimento das disposições pactuadas nos diversos ordenamentos jurídicos envolvidos. A duplicidade de formalidades representa uma estratégia preventiva que visa evitar questionamentos sobre a validade formal do pacto em qualquer das jurisdições relevantes.
5.2. Clareza temporal de eficácia
Para assegurar a adequada eficácia do pacto antenupcial, deve-se consignar, de modo explícito, que seus efeitos somente se iniciarão a partir da celebração do casamento, excluindo-se qualquer pretensão retroativa sobre bens adquiridos previamente por qualquer dos nubentes. Tal orientação está em conformidade com o entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça acerca da produção de efeitos ex nunc nas relações patrimoniais decorrentes de união estável20.
Recomenda-se, ainda, que a cláusula seja redigida de forma clara e detalhada, contemplando eventuais exceções expressamente previstas na convenção, a fim de garantir maior segurança jurídica às partes e facilitar o reconhecimento do pacto perante distintas autoridades jurisdicionais. A definição precisa do marco temporal de eficácia evita controvérsias sobre a abrangência do pacto e protege direitos de terceiros.
5.3. Professio iuris com vínculo real
Recomenda-se que a eleição de lei aplicável ao regime de bens seja realizada apenas quando houver um vínculo objetivo e relevante entre a legislação escolhida e a situação concreta das partes, como residência habitual ou nacionalidade de um dos nubentes. A escolha de lei sem conexão real com a vida do casal pode ser considerada fraude à lei e ter sua validade questionada pelas autoridades competentes.
5.4. Planejamento tributário internacional
Um aspecto frequentemente negligenciado na elaboração de pactos antenupciais internacionais diz respeito às implicações tributárias das disposições pactuadas. Diferentes países possuem regimes tributários distintos para a tributação de bens e rendas de casais, sendo fundamental considerar essas diferenças no momento da elaboração do pacto.
A estruturação adequada do regime de bens pode resultar em significativa economia tributária, especialmente em casos envolvendo bens de alto valor ou rendimentos substanciais. Contudo, é essencial que o planejamento tributário seja realizado dentro dos limites da legalidade, evitando configurar elisão fiscal abusiva ou evasão de divisas.
5.5. Cláusulas de adaptação e revisão
Considerando a natureza dinâmica das relações internacionais e a possibilidade de mudanças legislativas nos países envolvidos, recomenda-se a inclusão de cláusulas que permitam a adaptação do pacto a novas circunstâncias. Essas cláusulas podem prever a revisão periódica do instrumento ou sua modificação em caso de alterações significativas na legislação aplicável.
A flexibilidade contratual, quando adequadamente estruturada, permite que o pacto mantenha sua eficácia ao longo do tempo, adaptando-se às mudanças nas circunstâncias pessoais, patrimoniais ou legislativas das partes. Contudo, é fundamental que tais modificações observem as formalidades exigidas pela lei e não violem direitos de terceiros.
6. Modelos de cláusulas (PT–EN)
Tendo em vista a complexidade das relações patrimoniais internacionais e a necessidade de conformidade com múltiplos ordenamentos jurídicos, ressalta-se que os modelos apresentados constituem exemplos ilustrativos e simplificados, devendo ser adequadamente adaptados às circunstâncias específicas de cada caso, bem como à legislação escolhida e às formalidades exigidas por cada jurisdição envolvida. Recomenda-se, portanto, a análise criteriosa das peculiaridades fáticas e legais do contexto, de modo a garantir que as cláusulas reflitam fielmente a vontade das partes e assegurem máxima segurança jurídica, efetividade e reconhecimento do pacto antenupcial perante diferentes autoridades e sistemas normativos.
6.1 Cláusula de eleição de lei aplicável (professio iuris)
PT: Os nubentes elegem como lei aplicável ao regime de bens do casamento a lei de [Estado ou país elegível], por haver vínculo objetivo com [residência habitual de um dos nubentes na data desta convenção / nacionalidade de um dos nubentes], nos termos do art. 22 do Regulamento (UE) 2016/110321.
EN: The parties designate the law of [eligible State or country] as the applicable law to their matrimonial property regime, based on [the habitual residence of either party at the time of this agreement / the nationality of either party], pursuant to Article 22 of Council Regulation (EU) 2016/1103.
6.2 Cláusula de eficácia temporal (efeitos ex nunc)
PT: Este pacto produzirá efeitos a partir da data do casamento e não retroagirá a bens adquiridos anteriormente por qualquer dos nubentes; tais bens permanecem excluídos de eventual comunicabilidade, salvo disposição expressa em contrário nesta convenção22.
EN: This agreement shall be effective as from the date of marriage and shall not retroactively affect property acquired by either party before that date; such property remains excluded from any sharing unless expressly provided herein.
6.3 Cláusula de disclosure e independência de aconselhamento
PT: Cada parte declara que recebeu, com antecedência razoável, informações completas e verdadeiras sobre o patrimônio, rendas e passivos da outra, conforme inventário anexo, e que teve a oportunidade de obter aconselhamento jurídico independente antes da assinatura, firmando o presente por livre vontade23.
EN: Each party represents that, within a reasonable time prior to signing, they received full and truthful disclosure of the other party’s assets, income, and liabilities, as detailed in the attached schedule, and had the opportunity to obtain independent legal counsel; each party signs this agreement voluntarily.
6.4 Cláusula de severability (cláusulas autônomas)
PT: Se qualquer disposição deste pacto for considerada inválida ou inexequível por autoridade competente, as demais permanecerão válidas e exequíveis, preservando-se a vontade das partes na máxima extensão permitida pela lei aplicável.
EN: If any provision of this agreement is held invalid or unenforceable by a competent authority, the remaining provisions shall remain in full force and effect, preserving the parties’ intent to the maximum extent permitted by the applicable law.
6.5 Cláusula de compatibilização com ordem pública brasileira
PT: As partes reconhecem que a execução deste pacto no Brasil observará as normas de ordem pública previstas na legislação brasileira e na LINDB. Nenhuma cláusula produzirá efeitos que contrariem direitos indisponíveis ou normas cogentes, preservados os direitos de terceiros de boa-fé24.
EN: The parties acknowledge that enforcement of this agreement in Brazil shall observe Brazilian public order rules under national legislation and the LINDB. No provision shall produce effects contrary to non-disposable rights or mandatory rules, with bona fide third-party rights preserved.
6.6 Cláusula específica para separação obrigatória com reforço de incomunicabilidade
PT: Na hipótese de incidência legal do regime de separação obrigatória de bens, as partes acordam que os aquestos adquiridos onerosamente na constância do casamento permanecerão incomunicáveis, sem aplicação do entendimento da Súmula 377 do STF, resguardados os direitos de terceiros de boa-fé e sem prejuízo de prova de eventual esforço comum em negócios específicos25.
EN: In cases where the mandatory separation of property regime applies by law, the parties agree that assets onerously acquired during the marriage shall remain non-communicable, with no application of STF Precedent 377, without prejudice to bona fide third-party rights and to proof of any joint contribution in specific transactions.
6.7 Cláusula de foro, mediação e arbitragem patrimonial
PT: Controvérsias estritamente patrimoniais decorrentes deste pacto serão preferencialmente submetidas à mediação. Persistindo o conflito, poderão ser submetidas à arbitragem, quando a matéria for disponível segundo a lei aplicável e a jurisdição competente. Questões de estado familiar e direitos indisponíveis permanecem submetidos à jurisdição estatal.
EN: Any disputes arising solely from the patrimonial provisions of this agreement shall be submitted first to mediation. If unresolved, they may be submitted to arbitration where the subject matter is disposable under the applicable law and the competent jurisdiction. Matters of personal status and non-disposable rights remain subject to state court jurisdiction.
7. Checklist prático do advogado
Conexões relevantes:
Identifique nacionalidades, domicílios atuais e futuros, e localização de ativos.
Escolha de lei:
Verifique possibilidade de professio iuris em cenários UE e compatibilidade no Brasil; evite escolhas sem vínculo real26.
Referências
____________________
1. BRASIL. Código Civil: Lei n. 10.406, de 10 jan. 2002. Arts. 1.653 e 1.657. Brasília: Presidência da República.
2. UNIÃO EUROPEIA. Regulamento (UE) 2016/1103 do Conselho, de 24 jun. 2016, relativo à competência, à lei aplicável e ao reconhecimento de decisões em matéria de regimes matrimoniais (art. 22)
3. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Cônjuges sob separação obrigatória de bens podem estabelecer pacto antenupcial mais restritivo. Notícia institucional, 15 dez. 2021.
4. BRASIL. Código Civil: Lei n. 10.406, de 10 jan. 2002. Arts. 1.653 e 1.657. Brasília: Presidência da República
5. BRASIL. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: Decreto-Lei n. 4.657, de 4 set. 1942. Art. 7º, §4º, e art. 17
6. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 105, I, “i” (competência do STJ)
7. BRASIL. Código de Processo Civil: Lei n. 13.105, de 16 mar. 2015. Arts. 961, 963 e 965 (homologação de decisão estrangeira)
8. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Cooperação jurídica internacional e homologação de decisões estrangeiras. Orientações institucionais
9. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução n. 228, de 22 jun. 2016. Regulamenta a Convenção da Apostila de Haia
10. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Apostila da Haia: Perguntas frequentes (FAQ)
11. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula 377: No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento
12. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.922.347/PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 2022
13. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Mudança de regime de bens em união estável não retroage (efeitos ex nunc). Notícia institucional, 10 nov. 2021. REsp 1.845.416/MS
14. UNIÃO EUROPEIA. Regulamento (UE) 2016/1103. Disposições sobre lei aplicável (arts. 21, 22 e 28)
15. ESTADOS UNIDOS. Florida Statutes § 61.079 (Uniform Premarital Agreement Act – UPAA)
16. ESTADOS UNIDOS. Califórnia. Supreme Court. In re Marriage of Bonds, 24 Cal.4th 1 (2000)
17. ATWOOD, Barbara A.; BIX, Brian H. A New Uniform Law for Premarital and Marital Agreements. Family Law Quarterly, v. 46, n. 3, p. 313–344, 2012
18. BRASIL. Código de Processo Civil: Lei n. 13.105, de 16 mar. 2015. Arts. 961, 963 e 965 (homologação de decisão estrangeira)
19. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Cooperação jurídica internacional e homologação de decisões estrangeiras. Orientações institucionais
20. BRASIL. Código Civil: Lei n. 10.406, de 10 jan. 2002. Arts. 1.653 e 1.657. Brasília: Presidência da República
21. UNIÃO EUROPEIA. Regulamento (UE) 2016/1103 do Conselho, de 24 jun. 2016, relativo à competência, à lei aplicável e ao reconhecimento de decisões em matéria de regimes matrimoniais (art. 22)
22. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Mudança de regime de bens em união estável não retroage (efeitos ex nunc). Notícia institucional, 10 nov. 2021. REsp 1.845.416
23. ESTADOS UNIDOS. Florida Statutes § 61.079 (Uniform Premarital Agreement Act – UPAA)
24. BRASIL. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: Decreto-Lei n. 4.657, de 4 set. 1942. Art. 7º, §4º, e art. 17
25. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Cônjuges sob separação obrigatória de bens podem estabelecer pacto antenupcial mais restritivo. Notícia institucional, 15 dez. 2021
26. UNIÃO EUROPEIA. Regulamento (UE) 2016/1103 do Conselho, de 24 jun. 2016, relativo à competência, à lei aplicável e ao reconhecimento de decisões em matéria de regimes matrimoniais (art. 22)