Nos primórdios da humanidade, desde o surgimento das relações familiares, as mulheres já nasciam e erem educadas com o perfil de satisfazer e atender aos homens, prevalecendo assim à ideia de superioridade masculina. Nesse sentido cabe destacar as ideias de Rousseau quando considera que “toda a educação da mulher deve ser relativa ao homem”, sendo feita “para ceder ao homem e suportar lhe as injustiças”.1 Assim sendo, por componentes de ordem histórico-cultural construiu-se uma distância entre homens e mulheres que se mantêm presente nas relações atuais.
A violência contra a mulher por muitos anos ficou adstrita à esfera privada, principalmente porque os papeis exercidos por homens e mulheres na sociedade sempre foram muito bem delimitados, cabendo a mulher a manutenção do lar e os cuidados com a prole, enquanto ao homem cabia o sustento da casa. Não bastasse isso, também por questões culturais, a relação entre os gêneros sempre foi desigual, a mulher, em maior ou menor grau, a depender do momento histórico e da sociedade analisada, sempre se apresentou submissa ao homem.
Não raras às vezes a violência contra a mulher era tratada como um fenômeno natural, até mesmo porque muitas crianças nasceram nesse contexto, realidade esta que se mantem em algumas localidades. A médica Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres no Brasil, destaca que para prevenir casos de violência contra a mulher e reverter as estatísticas é preciso, primeiramente, reconhecer o ato como algo não natural e que não deve ser aceito.2
A violência doméstica não é apenas um problema social, mas também um desrespeito aos direitos humanos, e até mesmo um problema de saúde pública, pois graves são as consequências de natureza física e psíquica decorrentes da violência.
No âmbito internacional, apesar de o Brasil ter assumido o compromisso de erradicar, prevenir e punir toda forma de violência contra a mulher, ao ratificar a “Convenção Interamericana para Prevenir, Punir, e Erradicar a Violência contra a Mulher”, concluída em 9 de junho de 1994, conhecida como a Convenção de Belém do Pará, até o ano de 2006 não contava com diploma legal específico a tutelar essa questão.3
Apenas com o advento da Lei nº 11.340, sancionado no dia 07 de agosto de 2006, o Brasil passou a contar com uma lei voltada a tutela da mulher vítima de violência doméstica e familiar.
Não obstante o aspecto social da Lei Maria da Penha, surgindo como ferramenta de mudança política, cultural, e principalmente jurídica, muito ainda se questiona quanto a efetiva proteção à vítima e se a lei atingiu os fins propostos. Nesse contexto o presente estudo tem por objetivo analisar os avanços e a eficácia da lei Maria da Pena no ordenamento jurídico brasileiro.
É possível afirmar que a Lei Maria da Penha, em vigor desde o ano de 2006, implementou uma série de modificações no ordenamento jurídico brasileiro. Pela primeira vez um diploma legal fez expressa menção às uniões homoafetivas entre mulheres, prevendo a proteção da companheira, nos termos do art. 5º da Lei n º 11.340/2006.4
Também houve uma significativa inovação ao ampliar o conceito de violência, pois o legislador, no art. 7º, não limitou a violência à física, trazendo em seu texto uma ampla definição do que configura a violência contra mulher e suas formas de manifestação. Atualmente considera-se violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer conduta – ação ou omissão – de discriminação, agressão ou coerção, ocasionada pelo simples fato de a vítima ser mulher e que cause dano, morte, constrangimento, limitação, sofrimento físico, sexual, moral, psicológico, social, político ou econômico ou perda patrimonial.
Outra importante inovação introduzida pela Lei Maria da Penha foi a exclusão, por completo, do processamento das questões relacionadas à violência doméstica no âmbito dos Juizados Especiais, por expressa determinação do disposto no art. 41, da Lei n º 11.340/2006, o qual dispõe que “aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995”.5
Até o advento da Lei Maria da Penha, aos casos de violência doméstica aplicavam-se a Lei nº 9.099/1995, que rege os juizados especiais cíveis e criminais no âmbito dos Estados, competente para julgar crimes de menor potencial ofensivo. A qualificação de crime de menor potencial ofensivo conferido aos crimes de violência doméstica contra a mulher insculpia na sociedade a ideia de irrelevância do delito.
No dia a dia, isso significava que a violência de gênero era algo banal, permitindo aplicação dos institutos despenalizadores, a transação penal, ou mesmo o que comumente se denominou de aplicação de pagamento de “cestas básicas”, não havendo um dispositivo legal para punir com maior rigidez o autor da violência. Tal situação colocava mais uma vez as mulheres em situação de vulnerabilidade e inferioridade, e que, por muitas vezes, não procuravam o judiciário devido a sensação de impunidade e ineficácia.
Atualmente isso é expressamente proibido por força do disposto no art. 17, o qual prevê:
Art. 17 – É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.6
Um dos maiores avanços da Lei Maria da Penha foi a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher com competência cível e criminal para abranger as questões de família decorrentes da violência contra a mulher (art. 14, lei 11.340/2006). Por meio deles foi possível centralizar, num único procedimento judicial, todos os meios de garantia dos direitos da mulher em situação de violência doméstica e familiar, antes relegado a diversos e diferentes órgãos jurisdicionais (vara criminal, cível, de família, da infância e da juventude etc.).7
Anteriormente à criação dos Juizados, a mulher, que já se encontrava em condição de especial vulnerabilidade, precisava buscar seus direitos e proteger-se da violência em diversos órgãos do Poder Judiciário, o que lhe dificultava, sobremaneira, o acesso à justiça.
Muito há que se falar acerca da Lei Maria da Penha, razão pela qual a presente matéria será dividida em duas partes. Na próxima publicação discutiremos novos aspectos acerca da referida lei, notadamente em relação a sua aplicabilidade e (in)eficácia.
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Referências
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1. BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 10. ed. São Paulo: LTr, 2016, p. 739,.
2. LABOISSIÈRE, Paula. Violência contra a mulher não é algo natural, alerta ONU Mulheres Brasil. Agência Brasil. 2017. Disponível em: https://bit.ly/3B8xcLK. Acesso em: 24 ago. 2021.
3. BARBOSA, Nathan. Aspectos Gerais Sobre a Eficácia da Lei Maria da Penha. Âmbito Jurídico. 2019. Disponível em: https://bit.ly/3BcT60e. Acesso em: 24 ago. 2021.
4. CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: Lei Maria da Penha, Lei 11.340/2006, comentada artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 33.
5. BRASIL. Lei Maria da Penha. Lei nº 11.340/2006. Disponível em: https://bit.ly/3sNEIbL. Acesso em: 24 ago. 2021.
6. BRASIL. Lei Maria da Penha. Lei nº 11.340/2006. Disponível em: https://bit.ly/3sNEIbL. Acesso em: 24 ago. 2021.
7. BIANCHINI, Alice. Os juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher. JusBrasil. 2013. Disponível em: https://bit.ly/3knm4DW. Acesso em: 24 ago. 2021.