Partilha de Bens no Exterior: Desafios Jurídicos e Soluções para Imóveis e Ativos Financeiros Internacionais

Partilha de Bens no Exterior: Desafios Jurídicos e Soluções para Imóveis e Ativos Financeiros Internacionais

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Uma análise integrada dos obstáculos legais e estratégias práticas para a efetivação da partilha transnacional

 

  1. Introdução

O avanço da globalização e a intensificação da mobilidade internacional têm promovido, entre brasileiros, a constituição de patrimônios dispersos em múltiplos países. É cada vez mais comum que famílias brasileiras adquiram imóveis em destinos como Miami, mantenham contas bancárias em Lisboa ou invistam em aplicações financeiras em mercados como o de Dubai. Tal fenômeno é ilustrado pelo expressivo contingente de brasileiros residentes em Portugal, onde representam 27,8% da população estrangeira. Contudo, a dissolução dessas uniões, seja pelo divórcio ou falecimento, revela um cenário de grande complexidade jurídica, principalmente no que se refere à partilha de bens localizados fora do território nacional. O presente artigo busca não apenas delinear os principais entraves enfrentados no contexto da partilha internacional de bens em processos judiciais brasileiros, mas também apresentar soluções práticas, fundamentadas na jurisprudência e nos instrumentos de cooperação internacional vigentes.

 

  1. O desafio da jurisdição internacional e os limites do alcance das decisões judiciais brasileiras

O princípio da soberania territorial constitui o alicerce do direito internacional privado, restringindo a eficácia das decisões proferidas pelo Poder Judiciário brasileiro quando estas visam produzir efeitos fora de suas fronteiras. O artigo 23, II, do Código de Processo Civil de 2015, é categórico ao delimitar a competência da jurisdição brasileira exclusivamente aos inventários e partilhas referentes a bens localizados no Brasil, mesmo que o autor da herança seja estrangeiro. Na prática, observa-se a aplicação analógica desse dispositivo aos processos de divórcio: sentenças brasileiras não possuem efeito imediato para alterar a titularidade de imóveis ou ativos financeiros em outros países, carecendo, portanto, de posterior reconhecimento e execução pelas autoridades estrangeiras competentes.

A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, por sua vez, ratifica essa limitação territorial ao estabelecer que os direitos reais sobre bens imóveis são regidos pela legislação do país em que se encontram (lex rei sitae). Dessa forma, embora o juiz brasileiro seja plenamente competente para dissolver vínculos matrimoniais e reconhecer direitos patrimoniais, a efetiva transferência de propriedades situadas no exterior, como apartamentos em Miami ou contas bancárias em Lisboa, demanda obrigatoriamente o aval das jurisdições locais.

 

  1. Imóveis no exterior: impossibilidade de partilha direta e caminhos processuais

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou o entendimento de que as sentenças brasileiras que determinam a partilha de imóveis localizados em outros países não possuem, por si só, eficácia extraterritorial. Tal entendimento está fundamentado tanto no princípio da soberania quanto na aplicação da lex rei sitae, conforme prevê o artigo 10 da LINDB.

Diante desse quadro, o procedimento para a efetivação da partilha de imóveis situados no exterior se estrutura, de modo geral, em três etapas fundamentais:

  • Primeiro, a obtenção da sentença brasileira de divórcio que reconheça os direitos dos cônjuges sobre o bem;
  • Em seguida, a homologação desta decisão perante o judiciário do país onde se localiza o imóvel, seja por exequatur ou por procedimento equivalente;
  • Por fim, a propositura de ação local para efetiva transferência da propriedade junto ao cartório de registro de imóveis ou órgão competente.

Como exemplo prático, para a transferência de imóvel em Orlando (EUA), exige-se que a sentença brasileira seja apostilada conforme a Convenção de Haia, submetida à homologação judicial na Flórida e, após esse trâmite, apresentada ao County Recorder para a lavratura da escritura de transferência (quitclaim deed). Já em Portugal, além da homologação, é imprescindível o pagamento do Imposto de Selo (0,8% do valor venal do imóvel) para que a transferência seja registrada, o que impõe um ônus adicional ao interessado.

 

  1. Contas bancárias e ativos financeiros no exterior: nuances e possibilidades

Os ativos financeiros, como contas bancárias, ações e fundos de investimento, ainda que localizados fora do país, recebem tratamento jurídico distinto dos bens imóveis. Por não se qualificarem como direitos reais, há precedentes admitindo a partilha direta desses ativos na sentença de divórcio, desde que devidamente comprovados e identificados. Não obstante, desafios relevantes persistem, especialmente quanto ao sigilo bancário e à obtenção de informações junto às instituições financeiras estrangeiras, as quais, em regra, exigem ordem judicial local para fornecer dados ou permitir o bloqueio de ativos.

A cooperação internacional é, assim, indispensável e pode ser materializada por meio de cartas rogatórias ou tratados específicos, como o Mutual Legal Assistance Treaty (MLAT) firmado entre Brasil e Estados Unidos – procedimentos que, via de regra, demandam extensos prazos, podendo superar dois anos.

No entanto, avanços recentes contribuíram para mitigar tais dificuldades. O Common Reporting Standard (CRS), adotado pelo Brasil em 2018, faculta à Receita Federal o acesso automático a informações sobre contas bancárias mantidas em mais de 100 países, incluindo Portugal e Estados Unidos, oferecendo suporte probatório importante em demandas de partilha.

 

  1. Homologação de sentenças estrangeiras perante o STJ

Quando o divórcio é processado no exterior e envolve bens localizados no Brasil, a sentença estrangeira precisa, necessariamente, ser homologada pelo Superior Tribunal de Justiça para produzir efeitos jurídicos em território nacional. Os requisitos estão dispostos nos artigos 961 a 965 do Código de Processo Civil e incluem: decisão definitiva, citação válida das partes, tradução oficial e ausência de ofensa à ordem pública brasileira.

É digno de nota que, caso a partilha estipulada na sentença estrangeira infrinja normas de ordem pública nacional, como a legítima prevista no artigo 5º da Constituição Federal (garantia de 50% ao cônjuge brasileiro), o STJ poderá rejeitar a homologação, preservando o ordenamento jurídico pátrio.

 

  1. Estratégias e soluções práticas recomendadas

Diante dos desafios expostos, algumas estratégias podem ser adotadas para mitigar riscos e evitar litígios prolongados:

  • Pactos antenupciais com cláusulas transnacionais: É recomendável que tais instrumentos prevejam a lei aplicável (por exemplo, estipulando que bens nos EUA sigam a legislação da Flórida) e a eleição de foro (como a opção por tribunais de Lisboa para bens situados em Portugal). Embora o direito brasileiro limite a eficácia desses pactos sobre bens futuros no exterior, países do bloco Europeu e dos Estados Unidos costumam respeitá-los.
  • Acordos extrajudiciais bilaterais: Uma alternativa eficaz consiste na elaboração de acordo de divórcio consensual, detalhando minuciosamente os bens no exterior e submetendo-o à ratificação por tribunal estrangeiro, a fim de executá-lo localmente como título executivo.
  • Atuação coordenada com escritórios internacionais: Recomenda-se a condução estratégica do processo em três fases: ação de divórcio no Brasil com identificação dos bens, ajuizamento de ação específica no país onde se localizam os ativos e, finalmente, a compensação financeira cruzada, na qual cada cônjuge recebe a integralidade de determinados bens em diferentes jurisdições.
  • Utilização de convenções internacionais: Tratados como a Convenção de Haia sobre “Obtenção de Provas no Estrangeiro” permitem a coleta célere de documentos e informações necessárias ao processo, substituindo cartas rogatórias por requisições diretas entre autoridades centrais dos países signatários.
  1. Considerações finais

A complexa realidade da partilha de bens no exterior em processos de divórcio celebrados por brasileiros evidencia a fragmentação e a morosidade decorrentes da ausência de harmonia legislativa internacional. Tais entraves poderão ser superados por meio de assessoria jurídica especializada em direito internacional privado, pelo planejamento patrimonial preventivo – com a constituição de holdings ou trusts para centralização de ativos – e pela adoção de reformas legislativas que promovam a harmonização das normas, a exemplo do Regulamento Europeu 2016/1103.

Diante do expressivo aumento dos investimentos brasileiros no exterior – 55% dos compradores estrangeiros na Flórida são brasileiros – é fundamental que o jurisdicionado tenha ciência de que, na ausência de evolução legislativa, prevalecerá o princípio de que “onde os bens estão, lá está a solução”, reafirmando a necessidade de atuação estratégica e preventiva para garantir a efetividade e a segurança jurídica na partilha de patrimônios internacionais.

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