O Brasil tem a segunda maior população de cães, gatos e aves cantadoras e ornamentais de todo o mundo e está em terceiro lugar em população total de animais de estimação. São 54,2 milhões de cães, 23,9 milhões de gatos, 19,1 milhões de peixes, 39,8 milhões de aves e mais 2,3 milhões de outros animais. O total é de 139,3 milhões de pets,1 o que demonstra o quanto a população brasileira gosta de animais de estimação.
O desejo de ter ao seu lado um pet não é recente, remonta o período Paleolítico, alguns estudiosos chegam a afirmar que os primeiros cachorros foram domesticados a partir do lobo há mais de 30.000 anos.
Claro que, no início, esses animais não maninham uma relação de afeto com os seres humanos, isso se deu aproximadamente há 12.000 anos, primeiro com os cachorros, e, desde então, o carinho, os cuidados, oferecidos a esses animais crescem dia a dia.
A partir da Revolução Industrial, verificam-se mudanças em todos os setores da sociedade, e com a estrutura familiar não seria diferente. A entrada da mulher na força de trabalho; ao longo do século XX, passou a ocupar as carteiras escolares; nas duas primeiras décadas deste século, definitivamente, muitas mulheres – e casais – passaram a colocar em segundo plano a maternidade, postergando a chegada do primeiro filho ou mesmo não desejando tê-lo. Por conseguinte, é comum ver famílias substituírem o filho humano pelo “pet filho”.
É cada vez mais comum haver uma intensa troca emocional com seu pet , e as pessoas considerarem o animal de estimação como um membro da família, é possível encontrar kits para festas de aniversário de pet, cervejas e sorvetes para cachorros, inclusive é crescente o número de negócios vinculados a essa afetividade.
E, pelo cuidado dedicado, o afeto compartilhado e a importância desses animais para a família de forma geral, muitos deles acabam por receber tratamento muito semelhante aos demais membros da família que carinhosamente nomeio neste artigo de “pet filho”, seguindo essa tendência pós-moderna, parte da doutrina familiarista nomeia as famílias que consideram seus animais domésticos como entes familiares como “Família Multiespécie”.
Questiona-se, porém: será que este termo “família multiespécie” é o mais adequado: Ou ainda, o pet sendo afetivamente considerado filho, teria sua “guarda compartilhada” em caso de separação? Teria direitos a “alimentos”?
Bem, seguindo neste contexto, surge a questão, esses animais domésticos poderiam ser considerados partes em processos judiciais, seja para pleitear direitos como alimentos e indenizações, ou mesmo para discutir-se a sua “guarda”? Teria, capacidade jurídica postulatória?
Não consta na nossa legislação ou na nossa jurisprudência, a possibilidade de o afeto destinado a animais ser suficiente para lhes conceder a capacidade postulatória, a fim de pleitear em juízo alimentos, indenizações etc. Isso porque, nas lições de Caio Mário da Silva Pereira, tem-se que a capacidade jurídica é vinculada aos direitos da personalidade, os quais são atributos apenas dos seres humanos e não de seus animais domésticos. Dessa forma, a ideia de personalidade e seus atributos estão ligados exclusivamente à pessoa que exprime a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações.
Todavia, é importante mencionar que já se encontra na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 145/2021, de autoria do Deputado Federal Eduardo Costa, o qual concede a capacidade postulatória de animais domésticos serem parte nos processos judiciais. Esse projeto em sua essência tem a pretensão de alterar a teoria construída desde o Código de Hamurabi sobre os direitos da personalidade.
Ainda na mesma esteira legislativa, há o Projeto de Lei do Senado 542/18, de autoria da senadora Rose de Freitas, que “estabelece o compartilhamento da custódia de animal de estimação de propriedade em comum, quando não houver acordo na dissolução do casamento ou da união estável”.
O referido projeto surge para alterar o Código de Processo Civil, a fim de determinar a aplicação das normas das ações de família aos processos contenciosos de custódia de animais de estimação, o que nos parece fazer uma analogia entre as questões dos animais domésticos e aquelas discutidas e dirimidas nas varas de família. O projeto é arrojado, pois sugere que haja divisão igualitária de tempo, das despesas com veterinário, internações e medicamentos, e quanto às despesas com alimentação e higiene, pelo projeto, estas seriam arcadas por quem estiver exercendo a custódia.2
Existem inúmeras propostas legislativas tramitando no Brasil relacionadas aos direitos dos animais domésticos, mas faço coro à linha de pensamento de Fernando Simão, pois entendo que até o momento, os animais ainda são “coisa” na legislação brasileira,3 e não entes familiares de segundo escalão.
Por certo que, em países da Europa, é encontrado tratamento jurídico diferenciado, como na Áustria, Alemanha, Suíça e Holanda, países que situam animais em uma categoria intermediária entre coisas e pessoas, para esses países “os animais não são coisas”. E, França e Portugal entendem que os “animais são seres vivos dotados de personalidade”.
Mesmo sem alteração legislativa, nossos Tribunais já têm recebido demandas familiarista, as quais incluem questões relacionadas aos animais domésticos e, em alguns casos, os Juízos aplicam uma analogia da legislação atinente à guarda compartilhada de crianças e adolescentes, para os conflitos familiares que envolvam pets. Tal fato é justificado nestas decisões em razão das relações que se formam entre os cônjuges e seus animais de estimação, baseadas no amor, no carinho e no afeto.
Um dos primeiros decididos no Brasil ocorreu no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em sede de recurso, discutia-se sobre a posse do animal (cadela Nina Simone) e os vínculos emocionais e afetivos construídos ao longo do relacionamento. A decisão reconheceu a conexão afetiva do ex-marido com o pet e determinou um regime de visitação ao cachorro. O curioso é que a análise de provas se deu com uma visita do pet ao fórum, a fim de verificar os vínculos afetivos com as partes.4
Apesar de guardar semelhanças com uma ação de guarda e convivência de crianças, neste caso, por se tratar de “coisa” pela legislação, esse “pet filho” pode ter sua custódia renunciada por um de seus proprietários em uma ação de partilha de bens, por exemplo, e, assim, o pet não seria mais de responsabilidade deste cônjuge renunciante, o que deixaria o outro cônjuge com a responsabilidade absoluta das despesas oriundas da custódia do animal.
Porém, nos casos de filhos, a abdicação sobre o direito à guarda compartilhada (por exemplo) não exime do genitor o dever de convivência e amparo moral e financeiro (alimentos).
As despesas com os cuidados com o pet (banhos frequentes, tosas, veterinário e alimentação específica), nos casos de divórcio, têm sido analisadas de forma semelhante àquelas empregadas para fixação de “pensão alimentícia” para os filhos.
O Superior Tribunal de Justiça, em julgamento realizado na análise do RESp 1.713.167/SP, o Ministro Luís Felipe Salomão destacou em seu voto que a competência para a resolução de demandas de animais domésticos seria a das Varas de Família, e assim ele justifica:
“O Código Civil, ao definir a natureza jurídica dos animais tipificou-os como coisas e, por conseguinte, objetos de propriedade, não lhes atribuindo a qualidade de pessoas, não sendo dotados de personalidade jurídica nem podendo ser considerados sujeitos de direitos”. “O regramento jurídico dos bens não se vem mostrando suficiente para resolver, de forma satisfatória, a disputa familiar envolvendo os pets, visto que não se trata de simples discussão atinente à posse e à propriedade”. “A ordem jurídica não pode, simplesmente, desprezar o relevo da relação do homem com seu animal de estimação, sobretudo nos tempos atuais. Deve-se ter como norte o fato, cultural e da pós-modernidade, de que há uma disputa dentro da entidade familiar em que prepondera o afeto de ambos os cônjuges pelo animal. Portanto, a solução deve perpassar pela preservação e garantia dos direitos à pessoa humana, mais precisamente, o âmago de sua dignidade”.
Essa decisão, proferida em junho de 2018, de forma inédita, o STJ aplicou os artigos 1.583 a 1.590 do Código Civil por analogia, reconhecendo assim o direito dos ex-companheiros em terem a guarda e o direito de visitação ao animal de estimação, adquirido na constância da união,5 sendo desde então paradigmática no entendimento dos demais tribunais pelo país.
Casos como estes são cada vez mais frequentes, visto que a pós-modernidade leva muitos casais a preferirem “pet filhos” a filhos de verdade, assim, acredita-se que em breve haverá alterações legislativas profundas relativas à capacidade postulatória dos animais domésticos e seus direitos afins. O que gerará o enfrentamento de um segundo grande desafio, definir quais animais serão considerados “capazes” de postular em juízo.
A preocupação se justifica, uma vez que, conforme for a evolução do direito, não seria estranho imaginar a criação de previdências para cães que prestam serviços para a polícia e para portadores de deficiência visual, pois esses animais “trabalham” e depois de algum tempo precisam ser “aposentados”, ou ainda cavalos de montaria da Polícia Militar etc. O leque de direitos que pode resultar de qualquer alteração legislativa neste sentido é um espiral sem fim, vamos acreditar que nossos legisladores estejam preparados para enfrentar sabiamente este tema.
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Referências
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1. Informações obtidas no site: https://bit.ly/3wrFSw3.
2. https://bit.ly/3yD0GmS
3. Arts. 82, 445, § 2º, 936, 1444, 1445 e 1446 do Código Civil brasileiro.
4. Informação obtida em 09.05.22 no link: https://bit.ly/3w7unL5.
5. https://bit.ly/3FJMcU0