A história do sino remonta a períodos muito anteriores ao nascimento de Cristo e teria sido inventado na China como meio de comunicação, marcar horas e avisar os trabalhadores sobre o fim do turno de trabalho. A palavra sino vem do latim signum, que significa sinal. No catolicismo, os sinos começaram a ser usados no ano 400, em mosteiros da região da Campânia, no sul da Itália, daí surgiram as expressões campana como sinônimo de sino e campainha. Com o passar do tempo, eles começaram a adornar as torres das igrejas e com isso, cresceram em tamanho e potência para alcançassem lugares mais distantes.1 Os sinos na igreja tinham a função de marcar as horas, avisar sobre o começo de uma missa ou anunciar acontecimentos importantes. Na Igreja Católica, os sinos devem ser abençoados em um ritual denominado de benção dos sinos.
Percebe-se que os sinos e a igreja, não só a católica mas quase todas, possuem uma importância muito grande nos rituais.
No último dia 14 de novembro de 2021, o Padre Diego de Carvalho da Paróquia Nossa Senhora da Conceição, no município de Guarapari, no Espírito Santo, surpreendeu os fiéis, ao informar que está sendo processado por um morador vizinho que sente incomodado com o barulho do Sino. 2
Segundo o Padre, o sino toca às 6:00, 9:00, 12:00, 15:00 e 18:00 que seriam horas canônicas da igreja e é parte integrante dos rituais. Outros casos também ocorreram em outras cidades do país. 3
Mas o que isso tudo tem a ver com o direito civil? O Código Civil no capítulo V, do livro III, que trata do direito das coisas, especificamente sobre direito de vizinhança, no art. 1.277 dispõe que “O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha.” No caso em discussão, trata-se de violação ao sossego, já que o sino produz um barulho que incomoda os vizinhos ou especificamente este vizinho. O sossego é bem jurídico inestimável, componente dos direitos da personalidade, intrinsecamente conectado ao direito à privacidade. Segundo Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias, “o direito ao sossego não pode ser conceituado como a completa ausência de ruídos, mas a possibilidade de afastar ruídos excessivos que comprometam a incolumidade da pessoa.” 4
O limite entre uso normal e o uso anormal da propriedade não pode ser teorizado, pois a intensidade do dano causado só pode ser aferida no caso concreto.
A doutrina aponta 3 possíveis critérios de aferição dos problemas relacionados ao direito de vizinhança, o que se verifica no parágrafo único do art. 1.277, isto é, “proíbem-se as interferências considerando-se a natureza da utilização, a localização do prédio, atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança. ”
O primeiro critério, seria o critério do homem médio. O limite do tolerável estaria na média das pessoas, já que não se pode admitir desavenças pessoais ou sensibilidade extrema de uma das partes, mas é claro que não dá para se estabelecer uma resposta a priori.
O segundo critério é o critério da zona de conflito, ou seja, onde o imóvel está localizado, regiões centrais e industriais tendem a ser mais barulhentas e não é possível eliminar completamente a perturbação.
E o último critério, é o critério da pré-ocupação no qual aqueles que se estabeleceram primeiro tendem a determinar o padrão social da região.
Além desses critérios, o Código Civil ainda dispõe no art. 1278 que “O direito a que se refere o artigo antecedente não prevalece quando as interferências forem justificadas por interesse público, caso em que o proprietário ou o possuidor, causador delas, pagará ao vizinho indenização cabal” e também, ainda que por decisão judicial devam ser toleradas as interferências, poderá o vizinho exigir a sua redução, ou eliminação, quando estas se tornarem possíveis.
Percebe-se que o art. 1277, complementado pelos artigos seguintes deixam uma margem de interpretação muito ampla, pois em situações que envolvem direitos de vizinhança quase nunca é possível se estabelecer soluções apriorísticas.
É importante ressaltar que os sinos não cumprem mais a função para a qual foram criados. A cidades cresceram, se multiplicaram e a diversidade também aumentou, desse modo, é natural que os problemas apareçam já que os centros urbanos hoje são cada vez mais habitados por uma pluralidade de pessoas. A grande concentração de pessoas em um mesmo espaço é geradora de conflitos constantes.
De outro lado, a tradição do sino da igreja é um importante elemento da religião e da cultura, sendo parte integrante de praticamente todos os municípios brasileiros.
Diante desse conflito de interesses o judiciário pode tentar várias alternativas para a solução do conflito, Já que não há interesse em se restringir a liberdade de culto ou crença. Pode-se por exemplo tentar reduzir o número de vezes que o instrumento toca por dia, ou até mesmo o tempo das badaladas. Pode-se evitar que os sinos sejam acionados aos finais de semana e feriados em horários muito cedo ou tarde. Também é possível a redução da intensidade do som, como ocorreu em Brasília, no Distrito Federal. 5
O importante é entender que em casos de direito de vizinhança as soluções devem ser construídas no caso concreto, com a participação das partes envolvidas. Existe o direito protegido constitucionalmente da liberdade de culto e seus instrumentos, mas também existe o direito ao sossego. A solução adequada será aquela que conseguir preservar, na medida do possível os direitos fundamentais de ambos. Sabe-se que a religião é um aspecto importante da vida das pessoas, assim como o sossego, mas não temos como negar que a função dos sinos hoje, principalmente em cidades maiores é meramente ritualística, já que os meios de comunicação evoluíram e o sino, como um meio de comunicação já não cumpre a função de outrora.
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Referências
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1. A HISTÓRIA dos sinos. Sinos e campanarios: em resgaste da arte sineira. 2014. Disponível em: https://bit.ly/3BjUO14. Acesso em: 17 nov. 2021.
2. MORADOR processa padre por barulho de sino, em Guarapari, ES. G1. 2021. Disponível em: https://glo.bo/36dj3mm. Acesso em: 16 nov. 2021.
3. MORADOR processa, e a justiça condena Igreja do DF por barulho de sinos. G1. 2016. Disponível em: https://glo.bo/3gKWrvn. Acesso em: 19 nov. 2021.
Mulher processa Padre por barulho em sino de Igreja em Campo Novo, RS. VIAGORA. 2012. Disponível em: https://bit.ly/3HQkHZ0. Acesso em: 19 nov. 2021.
MPE determinou fiscalização em igreja após receber denúncia do barulho de sino. Correio24horas. 2014. Disponível em: https://glo.bo/3gMjN3H. Acesso em: 19 nov. 2021.
4. FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Reais. 17 ed. Salvador: Juspodvm, 2021, p. 754.
5. DIREITO CONSTITUCIONAL. AÇÃO DE CONHECIMENTO. OBRIGAÇÃO DE FAZER. BADALO DE SINO DA IGREJA. LIBERDADE DE CULTO. CESSAÇÃO. PERTURBAÇÃO DO SOSSEGO. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS. HARMONIZAÇÃO. LIMITAÇÃO SONORA. I – O direito ao sossego é correlato ao de vizinhança e está ligado à garantia de meio ambiente sadio, pois envolve a poluição sonora, merecendo proteção constitucional e amparo na legislação ordinária (CF/88, art. 225, Código Civil, art. 1.227, Lei das Contravenções Penais, art. 42). Por seu turno, a liberdade religiosa também é um direito fundamental previstos na Constituição da República (CF/88, art. 5º, VI). II – O Conselho Especial deste Tribunal declarou a inconstitucionalidade do inciso III do art. 10 da Lei Distrital nº. 4.092/2008, que excluiu do limite máximo a emissão de sons e ruídos produzidos por sinos de igrejas ou templos, utilizados no exercício de culto ou cerimônia religiosa. III – A fim de assegurar a aplicabilidade de ambos os princípios constitucionais, cabível a limitação do volume dos sinos em 50 dB, nível de intensidade sonora que a Organização Mundial de Saúde considera aceitável para não provocar danos às pessoas, cujo limite, outrossim, é o recomendável pelas normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT para tempos e igrejas (NBR 10.152). IV – Deu-se provimento ao recurso. TJDF -6ª TURMA CÍVEL PC Relator(a): JOSÉ DIVINO APC Processo: 20100110669750 28/09/2016.