No Brasil, a violência contra a mulher continua sendo um assunto bastante alarmante e assustador. Os números são perturbadores e demonstram uma realidade sombria que requer uma profunda reflexão e ação imediata.
Estudos realizados pela Fundação Perseu Abramo e pelo Serviço Social do Comércio (Sesc), apontaram que “cinco mulheres são espancadas a cada dois minutos no país. Além disso, durante suas vidas, uma em cada cinco mulheres reportaram já ter sofrido algum tipo de violência cometida por algum homem, conhecido ou desconhecido. Nesse sentido, o parceiro (marido ou namorado) é responsável por mais de 80% dos casos reportados (Venturi e Godinho, 2013)”. (SOARES; TEIXEIRA, 2022, p. 264).1
E como se não fosse o bastante o caos causado às vítimas, alguns agressores procuram o Poder Judiciário, após cometerem atos de violência contra sua parceira, a fim de exigir a devolução dos presentes que haviam dado durante o relacionamento. Essa prática é não apenas absurda, mas também imoral e ilegal, considerando o cenário de violência e abuso.
Com o devido respeito, mas a partir do momento no qual estamos diante de uma situação de violência doméstica, a exigência por parte do agressor no tocante à devolução dos presentes torna-se um ato indiscutível de revitimização da mulher, que já foi submetida a um sofrimento imensurável, chega a ser uma forma de abuso do direito de ação, devendo ser reprimido de plano pelo Magistrado, inclusive com a pena de litigância de má-fé.
Sobre a litigância de má-fé, defende o presente trabalho que é possível aplicá-la com fulcro no artigo 80, incisos III, V e VI, no TRT-3,2 por exemplo, um policial foi multado após mover uma trabalhista em face da antiga esposa, o mesmo ocorreu no TRT-4,3 os números de processo foram ocultados para preservar as vítimas, logo não há dúvidas de que, além da improcedência, devemos aplicar a sanção de litigância de má-fé.
Não podemos nos esquecer que a Constituição Federal brasileira é clara ao estabelecer como um dos fundamentos da República a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e como um dos objetivos do Brasil a promoção do bem de todos, sem preconceito de sexo e qualquer outra forma de discriminação (art. 3º, IV).
Ora, partindo da premissa constitucional, temos que permitir que um agressor exija a devolução de presentes da vítima de violência doméstica contraria esses preceitos basilares da sociedade brasileira e constitui uma afronta ao princípio da dignidade humana.
Além de toda a parte principiológica, ao estudarmos o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em decisões recentes, temos que corretamente é rechaçada qualquer tentativa de o agressor obter vantagens financeiras ou patrimoniais sobre a vítima de violência doméstica.
Temos um caso interessante, um agressor que foi retirado do lar em função do crime de violência doméstica, decidiu que seria juridicamente cabível cobrar alugueis de sua vítima, prontamente o STJ destacou que impor à vítima de violência doméstica qualquer obrigação pecuniária em favor do agressor constitui uma proteção insuficiente aos direitos constitucionais da dignidade humana e da igualdade. Vejamos:
(…) 3. Contudo, impor à vítima de violência doméstica e familiar obrigação pecuniária consistente em locativo pelo uso exclusivo e integral do bem comum, na dicção do art. 1.319 do CC/2002, constituiria proteção insuficiente aos direitos constitucionais da dignidade humana e da igualdade, além de ir contra um dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro de promoção do bem de todos sem preconceito de sexo, sobretudo porque serviria de desestímulo a que a mulher buscasse o amparo do Estado para rechaçar a violência contra ela praticada, como assegura a Constituição Federal em seu art. 226, § 8º, a revelar a desproporcionalidade da pretensão indenizatória em tal caso. (…) 5. Outrossim, a imposição judicial de uma medida protetiva de urgência – que procure cessar a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher e implique o afastamento do agressor do seu lar – constitui motivo legítimo a que se limite o domínio deste sobre o imóvel utilizado como moradia conjuntamente com a vítima, não se evidenciando, assim, eventual enriquecimento sem causa, que legitimasse o arbitramento de aluguel como forma de indenização pela privação do direito de propriedade do agressor. 6. Portanto, afigura-se descabido o arbitramento de aluguel, com base no disposto no art. 1.319 do CC/2002, em desfavor da coproprietária vítima de violência doméstica, que, em razão de medida protetiva de urgência decretada judicialmente, detém o uso e gozo exclusivo do imóvel de cotitularidade do agressor, seja pela desproporcionalidade constatada em cotejo com o art. 226, § 8º, da CF/1988, seja pela ausência de enriquecimento sem causa (art. 884 do CC/2002). (STJ, REsp n. 1.966.556/SP, DJe de 17/2/2022).4
Assim, é impensável que um agressor, que em seu desfavor pesam medidas protetivas, tenha a audácia de exigir a devolução de presentes ou qualquer outro benefício financeiro da vítima. Essa prática não encontra amparo no ordenamento jurídico brasileiro e deve ser veementemente repudiada.
Em razão de todo o exposto, no atual cenário, considerando que os números referentes à violência doméstica são alarmantes, considerando a não revitimização, temos que a Sociedade, a Polícia e o Poder Judiciário devem proteger as vítimas de violência doméstica de todas as formas possíveis. A proteção não se limita apenas a segurança física, mas também a psicológica, patrimonial e moral.
O Poder Judiciário deve, de pronto, repelir qualquer tentativa de o agressor obter vantagens financeiras sobre a vítima, em conformidade com os princípios constitucionais e o REsp n. 1.966.556/SP.
Por fim deve ser dito o óbvio: A proteção da dignidade da mulher e de seus filhos deve sempre prevalecer sobre qualquer interesse econômico ou patrimonial do agressor, assegurando-lhes uma vida livre de violência e abusos.
Referências
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1. SOARES, Laís de Sousa Abreu; TEIXEIRA, Evandro Camargos. Dependência econômica e violência doméstica conjugal no Brasil. Revista Planejamento e políticas públicas – PPP, n. 61, jan.-mar. 2022.
2. TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 3ª REGIÃO. Policial é multado por ajuizar ação trabalhista apenas para se vingar da ex-esposa. Disponível em: https://portal.trt3.jus.br/internet/conheca-o-trt/comunicacao/noticias-juridicas/policial-e-multado-por-ajuizar-acao-trabalhista-apenas-para-se-vingar-da-ex-esposa. Acesso em: 23 ago. 2024.
3. CONSELHO SUPERIOR DA JUSTIÇA DO TRABALHO. Por litigância de má-fé, homem que ajuizou ação contra ex-esposa não tem direito à justiça gratuita. Disponível em: https://www.csjt.jus.br/web/csjt/-/por-litigancia-de-ma-fe-homem-que-ajuizou-acao-contra-ex-esposa-tem-direito-a-justica-gratuita-negado. Acesso em: 23 ago. 2024.
4. STJ, REsp n. 1.966.556/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 8/2/2022, DJe de 17/2/2022.