Recentemente, a Lei Federal n. 15.035/2024 instituiu o Cadastro Nacional de Pedófilos e Predadores Sexuais e permitindo, como regra, a consulta pública do nome completo do réu, seu número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas e a tipificação penal do fato a partir da condenação em primeira instância por crimes que cita, inclusive com os dados da pena ou da medida de segurança imposta. No estudo deste mês, serão abordados os principais contornos prescritivos da Lei n. 15.035/2024 e como o Supremo Tribunal Federal decidiu na ADI n. 6.620/MT, oportunidade em que foram discutidos possíveis vícios de constitucionalidade de um cadastro público semelhante, criado pelo Estado de Mato Grosso.
Entre março de 2008 a dezembro de 2010, o Brasil acompanhou, no âmbito do Senado Federal, a deflagração, o desenvolvimento e o encerramento das atividades da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) criada com “o objetivo de investigar e apurar a utilizacão da Internet para a prática de crimes de ‘pedofilia’, bem como a relação desses crimes com o crime organizado” (Brasil, 2010).
Naquela ocasião, a denominada “CPI da Pedofilia” teve como objeto temático a vitimização de crianças e adolescentes no ciberespaço, uma realidade brasileira demasiadamente preocupante. Fatores conjuntivos como a crescente facilidade de acesso desse público à rede mundial de computadores; a ausência de fiscalização dos responsáveis em relação ao material acessado por esses vulneráveis e com quem eles interagem; a inclusão tecnológica dissociada de uma política pública de enfrentamento de cibercrimes e de identificação e punição de criminosos que se valem da internet para praticar crimes contra a dignidade sexual, tendo como alvo esse público, incrementam o risco da prática de crimes pedofílicos, inclusive através de organizações criminosas nacionais e transnacionais.
O relatório final da “CPI da Pedofilia” – de sugerida leitura – trouxe, em síntese, um panorama geral do problema da pedofilia no exterior e como as legislações estrangeiras tratam o tema; elencou projetos de lei do Senado derivadas das discussões; e apresentou diversas recomendaçoes e providências com o fim de enfrentamento eficaz contra crimes praticados contra criancçs e adolescentes, no mundo virtual e no real (Brasil, 2010).
Passada mais de uma década da conclusão da “CPI da Pedofilia”, o problema continua a ser uma realidade assombrosa no país. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), conforme dados divulgados na segunda edição do relatório Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil, entre 2021 a 2023, o Brasil totalizou 164.199 casos notificados de violência sexual (apenas em relação a estupro e estupro de vulnerável) contra crianças e adolescentes até 19 anos de idade (UNICEF; FBSP, 2024).
As estatísticas evidenciam a necessidade de reforço constante do compromisso do Brasil na promoção e a defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes consolidados na Convenção sobre os Direitos das Crianças (e seus protocolos facultativos, dentre eles Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança sobre a Venda de Crianças, a Prostituição Infantil e a Pornografia Infantil), na Constituição Federal (art. 227) e na Lei n. 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente).
Nessa linha, a Lei n. 15.035/2024, por meio do viés preventivo, exsurge no ordenamento jurídico nacional como relevante instrumento de proteção desse grupo socialmente vulnerável, pondo-o a salvo de delitos cometidos no meio digital e não digital, em cumprimento fiel àquelas normativas. Os crimes tipificados nos arts. 213 (estupro), 216-B (registro não autorizado da intimidade sexual), 217-A (estupro de vulnerável), 218-B (corrupção de menores), 227 (mediação para servir a lascívia de outrem), 228 (favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual), 229 (casa de prostituição) e 230 (rufianismo) do Código Penal (CP), a que alude a Lei n. 15.035/2024, foram eleitos pelo legislador brasileiro como aqueles cujos agentes terão seus dados identificadores e da sanção penal sofrida expostos no Cadastro Nacional de Pedófilos e Predadores Sexuais (Brasil, 2024).
A Lei n. 15.035/2024 tem o mérito de acrescentar ao art. 234-B, do CP, a previsão de ampla publicidade de dados identificadores do réu no cadastro nacional, como nome completo do réu, seu número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) e a tipificação penal do fato a partir da condenação em primeira instância, podendo o juiz fundamentadamente determinar a manutenção do sigilo (Brasil, 2024). Na hipótese de o réu ser absolvido em instância recursal, será restabelecido o sigilo sobre os dados identificadores. Nota-se que a absolvição não gera, conforme a literalidade dessa normativa, o direito subjetivo à exclusão no cadastro, mas o sigilo posterior destes como medida prioritária. Seguindo, a lei prevê, outrossim, que o réu condenado passará a ser monitorado por dispositivo eletrônico (Brasil, 2024), muito a depender do regime prisional em que se encontra, por óbvio, sem prejuízo da regulamentação constante nos arts. 146-B a 146-E, da Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210/1984). De todo modo, prevalece o caput do art. 234-B, que assegura o segredo de justiça a processos em que se apuram crimes contra a dignidade sexual.
Ademais, a Lei n. 15.035/2024 determina a criação do Cadastro Nacional de Pedófilos e Predadores Sexuais, sistema desenvolvido a partir dos dados constantes do Cadastro Nacional de Pessoas Condenadas por Crime de Estupro. Trata-se da previsão do art. 2º-A da Lei n. 14.069/2020, que instituiu o Cadastro Nacional de Pessoas Condenadas por Crime de Estupro (Brasil, 2024).
Havia, de início, a previsão de acréscimo como parágrafo único ao art. 2º-A da Lei n. 14.069/2020, para determinar que “as informações a que se refere o caput deste artigo serão inseridas no Cadastro Nacional de Pedófilos e Predadores Sexuais a partir do trânsito em julgado da sentença condenatória e ficarão disponíveis para consulta pública pelo prazo de 10 (dez) anos após o cumprimento integral da pena, salvo em caso de reabilitação” (Brasil, 2024). Entretanto, esse dispositivo foi vetado pelo Presidente da República1, sob o seguinte fundamento:
Em que pese a boa intenção do legislador, a medida incorre em vício de inconstitucionalidade, pois a extensão do prazo para manter disponíveis os dados dos condenados no Cadastro Nacional de Pedófilos e Predadores Sexuais, para além do período de cumprimento da pena, viola princípios e normas constitucionais, como a proporcionalidade e o devido processo legal, nos termos do disposto no inciso LIV do caput do art. 5º da Constituição; a dignidade da pessoa humana e a integridade física e moral do condenado, nos termos, respectivamente, do disposto no inciso III do caput do art. 1º e no inciso XLIX do caput do art. 5º da Constituição; e os direitos à intimidade, vida privada, honra e imagem, nos termos do disposto no inciso X do caput do art. 5º da Constituição.
Apesar da clareza da Lei n. 15.035/2024 e de seus elogiáveis desideratos e aplicabilidade, um ponto de sua redação exsurge como tema destacado de debate, que é a inserção de dados identificadores de pessoas acusadas, ou seja, presumivelmente inocentes e não submetidas a um juízo condenatório definitivo, no Cadastro Nacional de Pedófilos e Predadores Sexuais.
Como antecipado alhures, em abril deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF), na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 6.620/MT, deparou-se com questionamentos sobre a constitucionalidade formal e material da Lei n. 10.315/20152 , que criou, no âmbito do Estado de Mato Grosso, um cadastro de pedófilos que armazena dados pessoais do agente (este compreendido nessa categoria o suspeito, indiciado ou já condenado por qualquer dos crimes contra a dignidade sexual previstos no CP quando praticados contra a criança e/ou adolescente), circunstâncias em que o crime foi praticado, bem como grau de parentesco e/ou relação entre este e a vítima e idade da vítima. Segundo a lei mato-grossense, o Cadastro Estadual de Pedófilos será disponibilizado no sítio eletrônico da Secretaria de Estado de Segurança Pública, de forma que qualquer internauta poderá ter acesso a ele, no entanto, somente em relação ao nome e foto dos agentes já condenados e até que obtenha a reabilitação judicial. Também prevê que qualquer Delegado de Polícia, Investigador de Polícia e demais Autoridades pontuadas pela Secretaria de Estado de Segurança Pública terão acesso ao conteúdo integral desse cadastro (Brasil, 2024). Os grifos serão úteis no futuro para a compreensão da direção adotada pelo STF por ocasião do julgamento da referida ADI.
Na oportunidade, o Governador do Estado de Mato Grosso (requerente) arguiu a inconstitucionalidade formal da Lei n. 10.315/2015, sob o argumento de que: a) ela instituiu um novo efeito da condenação criminal e, com isso, versou sobre matéria de Direito Penal, afetando a competência legislativa privativa da União (art. 22, I, da CF); b) e impôs à Secretaria de Segurança Pública do Estado de Mato Grosso a obrigação de criar, manter e atualizar os respectivos cadastros, invadindo reserva de iniciativa privativa do Governador do Estado para propor leis e emendas que dispõem sobre criação e atribuições de órgãos e entidades da Administração Pública estadual (art. 61, § 1º, II, “e”, c/c art. 84, III, da CF) ((Brasil, 2024).
Sob o aspecto material, o requerente alegou que a lei citada padece de vício de constitucionalidade, porque: a) viola o princípio da separação dos poderes (art. 2º da CF) por parte do Poder Legislativo daquele Estado, que não teria observado a independência orgânica do Poder Executivo ao impor obrigações e atribuições à Secretaria de Segurança Pública; b) ofende garantias fundamentais individuais do réu condenado, notadamente ao postulado da dignidade humana (art. 1º, III, da CF), da proibição ao tratamento desumano e degradante (art. 5º, III, da CF), aos princípios da função social da pena (art. 5º, XLVII, da CF) e da integridade física e moral (art. 5º, XLIX, da CF), bem assim aos princípios da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem (art. 5º, X, da CF) e da responsabilidade pessoal (art. 5º, XLV, da CF), aqui não só dos condenados, mas também das vítimas e familiares, igualmente expostos por meio da manutenção dos cadastros questionados nesta sede de controle concentrado (Brasil, 2024).
Entretanto, o STF refutou a maioria de tais argumentos3 e, acolhendo parte deles, declarou a inconstitucionalidade da expressão “o suspeito, indiciado ou” constante do inciso I do art. 3º da Lei 10.315/2015 de Mato Grosso e atribuiu interpretação conforme à Constituição ao inciso I do art. 4º desta lei para delimitar que a) não será dada publicidade ao nome da vítima ou a dado cuja correlação seja capaz de reconhecer o nome da vítima; b) o termo “condenados” refere-se a sentença penal condenatória transitada em julgado; c) a expressão “reabilitação judicial” refere-se ao fim do cumprimento da pena. Também foi conferida interpretação conforme ao trecho da lei estadual que estabeleceu o conteúdo integral de certas autoridades ao constante do cadastro. Nesse ponto, o STF determinou que as autoridades referidas não terão acesso ao nome da vítima ou a qualquer circunstância que possibilite a sua identificação, ressalvado ordem judicial (Brasil, 2024).
À vista do decidido na ADI 6.620/MT, a direção adotada pelo plenário do STF ao julgá-la aponta para a conclusão de que a Lei Federal n. 15.035/2024 padece de inconstitucionalidade material no tocante à previsão de inclusão do nome completo do réu, seu número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) e a tipificação penal do fato, a partir da condenação em primeira instância. Como sustentado pelo Ministro Gilmar Mendes e reiterado pela Ministra Cármen Lúcia durante as discussões , uma vez “divulgado o dado pela rede mundial de computadores não há modelo de se desfazer o mal causado àquele que não tenha sido condenado, com trânsito em julgado da sentença, e que poderá, até o final, ser inocente do que contra ele se alega” (Brasil, 2024, p. 6-24).
Constata-se, em conclusão, manifesta violação ao princípio da presunção de inocência ao dispor a Lei n. 15.035/2024 desse modo, em referência ao trecho acima em destaque, tratando-se, como salientado pelo Ministro Alexandre de Moraes, em seu voto, como “medida excessiva, por difundir, ainda que de forma restrita, informação a respeito de pessoa que ainda não foi submetida a um juízo condenatório” (Brasil, 2024, p. 21).
Espera-se que essa questão, extraída da redação da Lei n. 15.035/2024, seja levada ao judiciário tanto no controle difuso, quanto no concentrado em breve.
Notas
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1. Veto presidencial mantido posteriormente pelo Congresso Nacional.
2. Na mesma, ADI também foi arguida a inconstitucionalidade formal e material da Lei Estadual n. 10.915/2019, que prevê a criação de um cadastro de pessoas condenadas por crime de violência contra a mulher. Haja vista o recorte dado aqui ao tema, optou-se por excluir do estudo aspectos e debates incidentes no decurso do acórdão correspondente no que concerne a essa lei.
3. Para maior aprofundamento quanto à fundamentação levantada pelo STF na ADI para refutar os argumentos elencados pelo requerente, sugere-se a leitura integral do acórdão.
Referências
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BRASIL. Senado Federal. Agência Senado. CPI da Pedofilia encerrou atividades com 14 projetos apresentados; dois já viraram lei. Disponível em: link. Acesso em: 9 dez. 2024;
BRASIL. Senado Federal. Relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI da Pedofilia. Senado Federal: Brasília, 2010. Disponível em: link. Acesso em: 9 dez. 2024.
FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA (UNICEF). FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (FBSP). Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil (2021-2023). 2ª ed. São Paulo: UNICEF; FBSP, 2024. Disponível em: link. Acesso em: 9 dez. 2024;
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Secretaria Especial para Assuntos Jurídicos. Lei Federal n. 15.035/2024. Disponível em: link. Acesso em: 10 dez. 2024.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Secretaria Especial para Assuntos Jurídicos. Lei Federal n. 14.069/2020. Disponível em: link. Acesso em: 10 dez. 2024.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Secretaria Especial para Assuntos Jurídicos. Mensagem n. 1.527, de 27 de novembro de 2024. Disponível em: link. Acesso em: 10 dez. 2024.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.620/MT. Rel. Plenário. Relator: Min. Alexandre de Moraes. Dje. Brasília, 20 jun. 2024. Disponível em: link. Acesso em: 7 dez. 2024.