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Princípio Da Dignidade Da Pessoa Humana: Moradoras De Rua E Imputação De Incapacidade Para Exercício Da Maternagem, Uma Reflexão

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Em continuidade às ponderações de nosso derradeiro artigo acerca da feminização da pobreza, o questionamento a propósito da perda de guarda dos respectivos filhos menores e de modo ulterior, do poder familiar por mulheres que residem nas ruas em situação de risco potencial, induz à feitura de diversas considerações.

Como vimos, o cenário nacional no que tange a políticas públicas para redução de diferenças acentuadas de condições objetivas de inserção no mercado de trabalho e exercício pleno de direitos por pessoas do gênero feminino, em cotejo com diversas do gênero masculino, destaca-se pela escassez.

Como fruto pós pandêmico, sem findar o próprio contexto pernicioso pelo surgimento de variantes, assistimos ao aumento vertiginoso da população de rua em todas as cidades brasileiras.  Consoante explana o Relatório de Pesquisa “Primeira Infância e Maternidade nas ruas da cidade de São Paulo”1 a bibliografia em relação às mulheres de rua revela que são minoria numérica e que chegam a esse contexto em virtude de ruptura de vínculos familiares, pobreza, dependência química e violência doméstica familiar. Acrescente-se a miséria estendida a inúmeras pessoas em decorrência da pandemia com perda de fonte de rendimentos impossibilitando-as de suprir suas necessidades básicas com habitação, sustento, saúde, dentre outras, incluindo-se nessa categoria, por evidência, mulheres. Essa observação impõe uma primeira advertência: não há que se confundir população de rua com drogaditos, alcoólatras e ou criminosos.  Não se tratam de sinônimos.

No que tange à pessoa de gênero feminino, dentre os múltiplos fatores que podem ensejar sua alocação nas ruas sob configuração de indigência material e abandono encontra-se, frequentemente, a violência doméstica. Famílias desestruturadas, carência de recursos financeiros, abusos múltiplos (psicológicos, físicos, sexuais, patrimoniais) não raras vezes estimulam o abandono de lares disfuncionais e agressivos por nada além de crianças. Meninas fogem para as ruas em busca de uma liberdade ilusória ou simplesmente para sobreviver à violência e ao abuso. E encontram com exacerbada frequência, livres das paredes que as cercam não raras vezes de tábuas, mais violência. Para além das mazelas advindas da instabilidade de tal dinâmica existencial, tais como submissão à oscilação de intempéries, insegurança alimentar grave (experiências de fome), a despeito de relacionamentos sexuais consentidos, a eclosão de estupros é bastante usual. E a gravidez da mulher em situação de rua é uma constante.

Como bem discorre Valeska Zanello2 “as trajetórias dessas mulheres foram marcadas por uma série de violências estruturais, tais como pobreza, desproteção da infância, trabalho infantil e baixa escolaridade, exploração sexual e prostituição, trabalhos precários e dificuldades na geração de renda” (Richwin & Zanello).  Acrescenta a autora, a partir de resultado de pesquisa de campo, que perante o quadro de moradia de rua a maternidade apresenta potencial para promoção de reorganizações subjetivas e resgates identitários das mulheres em benefício próprio, o que também se efetiva em relação à prole. O Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, por seu turno, já emitiu nota técnica, a partir de questionamento da Defensoria Pública, de que há importância primordial do vínculo familiar no início da vida humana, devendo-se optar em última instância pelo acolhimento institucional do incapaz, sendo inapropriado pressupor-se a incapacidade para maternagem (ou seja, exercício efetivo das funções de cuidado em prol do menor) em virtude do uso de drogas3 .

O que criticam diversos profissionais das áreas de Psicologia, Assistência Social e Direito é a consideração generalizada, estigmatizada e sem prévia apuração na hipótese concreta, de que a usuária de drogas, por essa imputada contingência, não ostente capacitação para exercer a maternagem, ainda que sob dinâmica conjunta de auxílio de família extensa e rede de apoio. É igualmente rechaçada a comunicação sistemática às Varas da Infância e Juventude por maternidades do nascimento de crianças, filhas de aparentes moradoras de rua com sintomas de drogadição ou imputação a propósito, sem todavia ocorrer ajustada oitiva e análise da genitora, inclusive com sua submissão a testes clínicos, previamente à institucionalização do infante. Comumente são de plano consideradas mães negligentes pela permanência em via pública e apontado uso de substâncias entorpecentes, não lhes sendo franqueado o acesso aos recém nascidos, o que fatalmente finda por agravar as condições de saúde física e mental das mães, já marcadas por traumas e iniquidades múltiplas, as quais não somente deixam de receber  amparo por intermédio do implemento de políticas públicas para superarem a situação de  moradia de rua e cuidarem dos próprios filhos como até mesmo recaem em estados de profunda depressão, com aceleração no processo de uso de substâncias entorpecentes, dentre outras.

É ademais irrefutável que a maior parte de moradoras de rua é negra o que revela o preconceito racial sob o influxo da cultura, mediante tratamentos não paritários, fatores historicamente verificados.  Temos então violências estruturais gerando mais iniquidade.

De certo o embasamento para a institucionalização de recém nascidos filhos de moradoras de rua é justamente o princípio do melhor interesse do incapaz, adotando-se tal postura com o escopo de garantia de segurança, alimentação e mantença de saúde do ser de tenra idade. Porém, a mesma não deve resultar de suposição de incapacidade de maternagem sem apreciação individualizada na hipótese concreta com interconexão entre órgãos de rede de prestação de serviços públicos e busca da família extensa da moradora de rua a fim de agregar esforços para implementação de condições que propiciem a formação de vínculo salutar entre mãe e filho.

Não há dúvidas quanto a absoluta ausência de dignidade humana na moradia de rua cuja solução não abstrai a atuação estatal hábil e efetiva, sob a premissa de respeito aos direitos individuais por intermédio, inclusive, de eventual realização de campanhas públicas de conscientização 4 . Nem se questiona o poder de cabal deterioração humana no consumo das drogas ilícitas, em especial o crack, capaz de ensejar danos de naturezas física e cognitiva em detrimento da usuária. Mas é forçoso que admitamos a imprescindibilidade de devida implementação de políticas públicas em prol das moradoras de rua gestantes com a impostergável constatação de suas condições subjetivas para exercício da maternagem  por ocasião do nascimento de seus descendentes, em proveito dos últimos e de si mesmas, considerando-se as estruturas coletivas de apoio a tal desiderato através de familiares, profissionais de saúde, psicólogos, assistentes sociais, etc. Somente assim estaremos acatando os direitos de referidas mulheres como também o direito à convivência familiar de crianças e adolescentes, patenteado no artigo 227 da Carta Magna.

Referências

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1.  https://bit.ly/3ZSvtY2, acessado em 03/01/2021, Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017, pg 51;

2.  Richwin, Iara Flor, Zanello, Valeska, “A(s) Maternidade (s) de Mulheres em Situação de Rua: Entre Violações e Possibilidades de Reparação Subjetiva”, Psicologia Clínica , Rio de Janeiro, Vol 34, n. I, pg 79 – I04, JAN-ABR/2022

3.  https://bit.ly/3ZUapR7, acessado em 03/01/2023, pg 53;

4.  http://glo.bo/3XCDMWz, “Não dar esmolas é a melhor ajuda: conheça os programas de acolhimento da Prefeitura de Florianópolis”, 29/05/2019;

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