Privacidade, individualismo e autoritarismo de Estado: as armadilhas postas no processo penal para não fazer valer o direito à intimidade

Privacidade, individualismo e autoritarismo de Estado: as armadilhas postas no processo penal para não fazer valer o direito à intimidade

lady justice

Neste ensaio, abordo o individualismo como uma das raízes fundamentais que contribuem para a compreensão danosa da noção de privacidade e sua complexa relação com o autoritarismo de Estado. Apesar do aparente paradoxo, exploro como o individualismo pode se manifestar em uma dependência colonial e racial, e como essa dinâmica impõe armadilhas sobre o processo penal.

Através de uma análise crítica, este estudo examinará os mecanismos pelos quais o individualismo influencia as estruturas de poder do Estado por meio do processo penal, bem como suas ramificações. Dessa forma, pretendo contribuir para um entendimento mais amplo e aprofundado dos desafios enfrentados na proteção dos direitos individuais e coletivos frente às crescentes demandas por segurança e controle estatal.

Para conceituar individualismo, uma boa referência é Tocqueville, “o primeiro a escrever sobre a crença na autonomia como liberdade” e esta como a “meta do individualismo”.1 Para isso, precisou reposicionar o sentido de individualismo, o que fez diferenciando-o de egoísmo.

“O individualismo é um sentimento pacífico e moderado, que leva cada cidadão a se isolar da massa de seus semelhantes e a se recolher no círculo de seus familiares e amigos. Além disso, havendo criado essa pequena sociedade para seu bem-estar imediato, ele deixa de bom grado que a sociedade maior siga seu caminho”.2

Ao dissociar do egoísmo, Tocqueville impõe um valor positivo sobre a pretensão do estar só, de se voltar para si e não para o coletivo. Esses anseios por desenvolvimento pessoal podem ser devastados caso o espaço íntimo do indivíduo seja invadido por forças externas, tal como um ruído estridente que perturba a linha de pensamento. Em resposta a essa intrusão, surge o desejo de apropriação e igualdade, buscando evitar que qualquer entidade social exerça poder sobre os indivíduos que buscam o “estar só”. É assim que emerge a concepção de um ‘individualismo democrático.3

Segundo Tocqueville, os homens buscam privacidade para desfrutar dos resultados de seu trabalho, e essa experiência de gozo privado molda seus desejos.4 Qualquer impulso para sair do espaço de desfruto pessoal ou familiar só surgirá quando houver uma identificação racional dos interesses privados com os da cidadania, o que desencadearia a participação política e democrática daqueles que desenvolveram autonomia e liberdade em seu espaço privado, tornando-se o lugar da construção da virtude.5

Ocorre que a América de Tocqueville enfrentava um desafio quase intransponível: a questão dos negros e índios, grupos marginalizados e excluídos da sociedade.6 Tocqueville retratava o escravo negro como uma figura degradada e abjeta, que suscita aversão e repulsa. Ele é visto como um símbolo de uma humanidade castrada e atrofiada, emitindo uma aura envenenada e de horror.7 De nada adianta tornar livre o negro, pois este nunca conseguirá se colocar diante do “europeu”, senão na figura de um estrangeiro. Em Tocqueville, eventual conquista de igualdade formal não tornaria o negro igual no exercício de direitos, do trabalho, nos prazeres e até mesmo na morte.8 “Em outras palavras, o alforriamento dos escravos não apaga nenhuma das manchas de ignomínia que os maculam em decorrência de sua raça – ignomínia que faz com que negro necessariamente rime com servidão”9

Em crítica, Mbembe, sobre a democracia liberal, diz que a igualdade formal pode coexistir com o preconceito arraigado, que leva o opressor a continuar desprezando aquele que outrora foi considerado seu inferior, mesmo após a libertação da escravidão. Na verdade, essa igualdade permanece apenas como uma mera ilusão, a menos que o preconceito seja erradicado. A lei pode proclamar a igualdade formal, mas sem a superação do preconceito, essa igualdade permanece apenas no âmbito das palavras, sem efetivamente se concretizar na prática.10

No individualismo, há uma dificuldade evidente em se reconhecer forças estruturais, já que esta exige um nível de complexidade que transcende a relação indivíduo-indivíduo. Daí também parte da dificuldade de se reconhecer o racismo institucional11 produzido pelas polícias e também o racismo estrutural pelo qual essas instituições estão comprometidas.

Não é por acaso que, quando se faz algum tipo de análise sobre os efeitos racistas de práticas institucionais, é comum se observarem respostas defensivas que apelam para o individual, sendo que os indivíduos que mais explicitamente praticam racismo não são vistos como exemplares da instituição, mas exceção.

Conforme a proposição de Ortegal, até mesmo o reconhecimento do racismo pode ser insuficiente se não for confrontado em relação ao seu efeito mais crucial, que é o genocídio negro. Essa categoria é a que revela a natureza ativa e intencional do racismo, não se limitando a ser apenas um resultado secundário da desigualdade social ou da luta de classes, mas transcende as reproduções individualmente identificáveis.12

Na questão dos algoritmos aplicáveis à segurança pública, isso se torna mais agudo, pois discriminação algorítmica dificilmente virá de uma intencionalidade individual, mas de mecanismos sociais no nível da estrutura, agora somados com as novas tecnologias.13

Nesse sentido, em palavras mais simples, se no âmbito da segurança pública é possível ainda tomar a dimensão do racismo e de como ele é operado pelo sistema de justiça criminal, no âmbito do processo penal, onde ocorre a criminalização no nível individualizado e formalizado, o racismo será mais difícil de ser observado e revelado para ser posto em debate. E mesmo quando isso acontece de algum modo, como em determinada ação policial baseada explicitamente nas características físicas de uma pessoa negra, os tribunais ainda terão dificuldade de colocar em operação os institutos de processo penal, como seu arcaico sistema de nulidades.

A igualdade política formal, que era propagada como um discurso universalista, revelou-se hipócrita no cotidiano e serviu de base para uma divisão na concepção de humanidade no âmbito do direito e de seus institutos. De um lado, havia os conquistadores, a quem eram atribuídos os valores da humanidade, e do outro, os conquistados, considerados selvagens em seu estado de natureza, justificando assim intervenções ditas civilizatórias.14

No Brasil, “o dilema das raças”, como explicitamente colocado por Tocqueville, não foi algo estranho. Também aqui, foi necessário conciliar valores liberais e individualistas, destinados a uma classe político-social, ao mesmo tempo em que à outra era concedido o autoritarismo de Estado.15 Assim, a adesão a princípios do liberalismo em terra colonial obrigou a formação de regimes duais.16

Como coloca Abath, as relações sociais no Brasil foram moldadas por uma combinação de violência brutal do sistema escravista de um lado e o favoritismo do outro, ambas ocorrendo sob o disfarce de legalidade e liberalismo presentes nas constituições.17 Apesar das discussões processuais fundamentadas em um liberalismo jurídico de base democrática que se preocupa com as liberdades individuais, a omissão em abordar a criminalização das camadas populares no Brasil permite-nos concluir que continua a prevalecer essa separação entre uma teoria liberal e moderna e uma prática cotidiana violenta.18 É a dualidade colonial, ensina por Fanon.

Essa “contradição” pode ser comparada àquela observada no contexto do Haiti revolucionário, que é agora compreendida menos como uma contradição efetiva e mais como a própria construção desse liberalismo em territórios coloniais, conforme indicado por Mbembe.

A adesão de valores liberais não poupou os teóricos do autoritarismo brasileiro, como Oliveira Vianna, de pensar um projeto nacional centralizado a partir de uma elite tecnocrática19 para a continuidade do escravismo.20 Uma parte fundamental da origem do processo penal brasileiro está enraizada em um “liberalismo conservador e reacionário”,21 mas que possuía a estranha habilidade de coexistir com o discurso positivista, embora de forte tom tecnocrático e até eugenista.

Não é a toa que conseguimos conciliar um processo civil com forte tom “conciliatório”, centrado no interesse das partes e que valora negativamente a interferência judicial/estatal, com um processo penal publicista, de matriz autoritária, com incisivos poderes jurisdicionais sobre as partes, especialmente em face do réu, ainda que esse modelo tenha perdido espaço.

Aliás, é notável o avanço da compreensão do direito à privacidade no campo civil em relação ao do penal. Doneda22 há muito apontou que o direito à privacidade não pode mais ser compreendido em torno da propriedade privada, mas sim relacionado à personalidade. Zanatta e Souza destacam que a ideia de um direito à privacidade de grupo ou coletiva tem raízes antigas, iniciando-se nos anos 1970, mas que ganhara maior desenvolvimento nas últimas duas décadas.23 A doutrina civilista já consolidada sobre direitos difusos tem facilitado a discussão judicial sobre o tratamento abusivo de dados.24

Assim, enquanto a legislação civil e processual civil têm encontrado resultados visíveis no contexto de proteção de dados, a legislação processual penal demonstra uma adesão quase nula, ainda dando ares de que a área da segurança pública – referida aqui a ações que antecedem o processo de criminalização individual – não verá tão cedo um direito à privacidade, atualizado à vida mediada por dados, com alguma força normativa.

Considerando ainda a questão da proteção de dados pessoais, a concepção de privacidade vai muito além de simplesmente garantir o isolamento ou a tranquilidade do indivíduo. Ao contrário do que seria seu propósito inicial de proporcionar os meios necessários para a construção e fortalecimento de uma esfera privada individual, um direito mais atualizado de privacidade deveria centrar-se no paradigma de vida baseada em relações e solidariedade, na tutela da privacidade exercida sobre um valor positivo do social, impulsionando o potencial de comunicação e de relacionamento do indivíduo.25 “O objetivo, portanto, não é o de favorecer a solidão, mas o de garantir a igualdade”.26

Dentre os desafios trazidos pelas novas tecnologias no contexto do processo penal e do policiamento, a superação das implicações do individualismo emerge como um dos mais sensíveis. Trata-se, dentre outras questões, de reconhecer que as experiências da intimidade e das relações com o poder público acontecem efetivamente na esfera coletiva, incluindo o mundo digital. Para além da importância de se compreender a tutela coletiva de direitos no âmbito da privacidade, porém, urge a necessidade de se aderir ao processual penal novos valores, mas que traga consigo também instrumentalidade prática.

Para o processo penal, a chave reside na criação e aplicação de instrumentos legais que condicionem e racionalizem o exercício do poder punitivo, proporcionando uma proteção mais efetiva e enfim trazer força normativa ao direito à privacidade, para além da letra constitucional, a ser tida por morta se não for atualizada sua doutrina correspondente.

O processo-crime como resultado do processo de criminalização individualizada assentada sobre uma epistemologia de matriz individualista cria uma barreira praticamente intransponível para se conceber o processo penal e seus institutos enquanto meio de proteção efetiva do direito à privacidade, pois isso dependerá de uma superação da real, porém não única, relação indivíduo-Estado.

Em menos palavras, isso significa que a segurança pública, que inclui as atividades de policiamento a partir de dados em massa, tende a ser campo livre para a afronta à privacidade.27

 

Referências

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1. SENNETT, R. Autoridade. 4. ed. Rio de janeiro: Record, 2016b, p. 159.

2. Idem. No original, na obra Democracia na América: Individualism is a mature and calm feeling, which disposes each member of the community to sever himself from the mass of his fellow-creatures; and to draw apart with his family and his friends; so that, after he has thus formed a little circle of his own, he willingly leaves society at large to itself.

3. SENNETT, R. Autoridade. 4. ed. Rio de janeiro: Record, 2016b, p. 160.

4. VIEIRA, D. L. A virtude na democracia de Tocqueville. 2014. 135 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2014, p. 119.

5. Idem, p. 42.

6. MBEMBE, A. Crítica da Razão Negra. São Paulo: n-1 edições, 2018. p. 148.

7. Idem, p. 150.

8. Idem, p. 152.

9. Idem, p. 151.

10. Idem, p. 152.

11. “racismo institucional, também conhecido como racismo sistêmico, e que contempla ainda a perspectiva do racismo estrutural. Esta dimensão está associada a questões materiais e de acesso a poder. Sua complexidade está no fato de que geralmente não é possível identificar um indivíduo a operar esse tipo de racismo, que se encontra difuso nas dinâmicas institucionais e políticas, em processos históricos e na escassez de acesso à informação e outros recursos”. ORTEGAL, Leonardo. Relações raciais no Brasil: colonialidade, dependência e diáspora. Serv. Soc. (133) Sep-Dec 2018, doi.org/10.1590/0101-6628.151, p. 422.

12. ORTEGAL, Leonardo. Relações raciais no Brasil: colonialidade, dependência e diáspora. Serv. Soc. (133) Sep-Dec 2018, doi.org/10.1590/0101-6628.151, p. 424.

13. A esse respeito, conferir Simões Gomes et al., que pontuam muito bem esse “giro interpretativo” nos estudos sobre viés algorítmico. SIMÕES-GOMES, L.; ROBERTO, E.; MENDONÇA, J. Viés algorítmico – um balanço. Estud. sociol. Araraquara, v. 25 n. 48 p.139-166, 2020, p. 157.

14. MBEMBE, A. Crítica da Razão Negra. São Paulo: n-1 edições, 2018, p. 115.

15. “Um traço comum aos nacionalistas autoritários foi o papel por eles atribuído à chamada questão racial. Nisso eles não estavam sozinhos, na medida em que o papel a ser atribuído a determinações raciais na formação da sociedade e do homem brasileiro foi objeto de uma preocupação constante de nossos pensadores, desde meados do século XIX. Essa preocupação, em si mesma, não poderia ser tida como “importada”, pois, como é sabido, o Brasil era um país majoritariamente formado por negros e pardos, no qual o sistema escravista perdurou até 1888. Desse modo, a defesa da separação de raças seria, no mínimo, muito difícil de ser sustentada” FAUSTO, B. O Pensamento Nacionalista Autoritário. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2001, p. 1920-1940, p. 23.

16. FANON, F. Os Condenados da Terra. Tradução: Serafim Ferreira. Transcrição: João Filipe Freitas.  Lisboa: Editora Ulisseia, 1961. E-book. 343 p. .

17. ABATH, M. Soberania policial no Recife do início do século XX. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2018, p. 94.

18. Idem, p. 93.

19. SILVA, R. Liberalismo e democracia na Sociologia Política de Oliveira Vianna. Sociologias, Porto Alegre, v. 10, n. 20, p. 238-269, 2008, p. 265.

20. DUARTE, E. C. P. Do medo da diferença à liberdade com igualdade: As Ações Afirmativas para Negros no Ensino Superior e os Procedimentos de Identificação de seus Beneficiários. 2011. 949 f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2011, p. 11.

21. GLOECKNER, R. J. Autoritarismo e processo penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro. 1. ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, v. 1, 2018. E-book. p. 274.

22. DONEDA, D. C. M. Da privacidade à proteção de dados pessoais: elementos da formação da Lei Geral de Proteção de Dados. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. E-book. 368 p.

23. ZANATTA, R. A. F.; SOUZA, M. R. O. A tutela coletiva na proteção de dados pessoais: tendências e desafios, In: DE LUCCA, N.; ROSA, C. Direito & Internet IV: Proteção de Dados Pessoais. São Paulo: Quartier Latin, 2019. ISBN: 9788574538389, p. 18.

24. ZANATTA, R. A. F. Tutela coletiva e coletivização da proteção de dados pessoais. In: Temas Atuais de Proteção de Dados Pessoais. Revista dos Tribunais, p. 345-374, 2020, p. 09.

25. DONEDA, D. C. M. Da privacidade à proteção de dados pessoais: elementos da formação da Lei Geral de Proteção de Dados. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. E-book., p. 37.

26. RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância – a privacidade hoje: Renovar, 2008, p. 145.

27. Este é um texto adaptado de um subcapítulo da minha tese de doutorado: GARCIA, Rafael de Deus. Processo penal e algoritmos: o Direito à privacidade aplicável ao uso de algoritmos no policiamento. 2022. 270 f., il. Tese (Doutorado em Direito) — Universidade de Brasília, Brasília, 2022. Disponível em: site.

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