Promotora pede absolvição, mas os jurados condenam mesmo assim: um debate sobre verdade, poder e dialética no processo

Promotora pede absolvição, mas os jurados condenam mesmo assim: um debate sobre verdade, poder e dialética no processo

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INTRODUÇÃO

Certa feita, uma promotora de justiça, temendo uma derrota perante o tribunal do júri, dada a notável fragilidade probatória da causa, pediu ao juízo que impronunciasse o réu. Melhor impronunciar e esperar novas provas do que correr o risco de uma absolvição definitiva em plenário, pensou ela. Ignorando o promotor, o juiz pronunciou o acusado, levando seu julgamento ao conselho de sentença.

Diante das sete pessoas do povo que julgaram o caso, passada a palavra à acusação para sua sustentação oral, gritou a promotora com a mão dirigida para o juiz: “Agora, com vocês, a acusação!”.

Após o climão que se instaurou, a promotora requereu às sete pessoas do júri que absolvessem o acusado diante da falta de provas. Embora acreditasse, por mera convicção pessoal, de que o sujeito era o culpado pelo horrendo fato em discussão, sentia que uma condenação assentada em tão frágeis evidências estaria em contradição com um direito de base democrática e racional, o que ainda acreditava e lutava a promotora.

A defesa esteva feliz. “Convenci até a promotora”, pensou ingenuamente o jovem e sortudo advogado por ter uma adversária com tal brio. Acompanhou a acusação no pedido absolutório.1

Tinham os jurados o poder de condenar o réu, a despeito do pedido absolutório de ambas as partes?

 

PARTE 1

Sim. Porém, é muito improvável que o façam. A convicção do conselho de sentença, que precisa de ao menos 4 dos 7 que o compõe, teria de buscar uma conclusão diferente de toda linha argumentativa construída pelas partes naquele procedimento. Ora, se a própria acusação entende que não produziu prova suficiente para o decreto condenatório, com base em que se permitiriam a contrariá-la?

A possibilidade de condenação – no júri – após pedido absolutório pela acusação não é um problema relevante porque ele não se observa na prática.

Aliás, tal possibilidade deve existir e permanecer, pois, após um processo válido, é o poder-saber popular, institucionalizado em plenário do júri, que deve exercer controle sobre a burocracia, não o contrário.  A soberania do veredicto a partir de um ideal popular de legitimidade que me sustenta aqui.

A soberania do veredicto de um júri popular é exercício de poder direto, de natureza jurisdicional, qualificado pela prescindibilidade de fundamentação, o que é ao mesmo tempo causa e consequência desse poder. Não se trata de poder incondicional e ilimitado, pois a decisão do conselho de sentença é condicionada não só à acusação prévia, confirmada e limitada na pronúncia no plano material, e posterior um devido processo legal, no plano processual. Além disso, há o fator colegialidade, que mitiga a possibilidade de erro. No júri, uma só pessoa não é capaz de efetivar o erro, sempre sendo necessário ao menos quatro de sete. Trata-se do controle revisional horizontal da decisão.

A raridade de tal possibilidade – condenação em júri após ambas as partes concordando pela absolvição – é mais um sintoma do acerto do argumento contra o art. 385 do que algo que lhe pesa contra. Se e quando ocorre, temos é uma evidência de uma correção feita diretamente pelo povo ali representado sobre a burocracia judicial. Claro, não se trata de um sistema perfeito e que não deve ser aprimorado, mas se desejamos um poder jurisdicional mais próximo da materialidade histórico-social, devemos assumir algum grau de contradição.

O juiz singular, togado, concursado, não substitui e muito menos representa o poder popular. Dentre suas nobres funções, não está incluído o poder correcional e derrogatório das atividades e decisões do Ministério Público.

 

PARTE 2

Distante da raridade desse tipo de ocorrência no júri, estão as situações em que o juiz singular condena a despeito do pedido absolutório pela acusação. Aqui, faz-se valer o art. 385 do CPP, artigo de matriz inquisitorial e que recentemente foi mais uma vez declarado compatível com a Constituição Federal pelo STJ.2

Ao contrário do poder de fato que se exerce na jurisdição de base popular, as condicionalidades imposta ao juiz concursado são e devem ser maiores. O próprio dever de fundamentação é uma dessas condições, das mais importantes, inclusive.

Outra condição, e aí já imposta pelo próprio sistema acusatório constitucional, positivada no art. 3º-A do CPP, é a vedação da substituição, pelo juízo, da atuação probatória do órgão de acusação. Em uma interpretação lógica e sistemática, atuação probatória inclui necessariamente a valoração sobre a prova produzida. Não estou dizendo que o juiz deve adotar de modo integral a valoração, em bloco, de uma das partes.

Ocorre, porém, que o processo é dialético. Isso não é trivial. Quer dizer que a dialética processual é uma técnica procedimental de alcance e determinação da verdade, seja estabelecendo fronteiras interpretativas (subjetivo-interpretativa), seja impondo limites à autoridade de quem julga (condicionamento do poder jurisdicional).

Sem pedido de condenação pelo MP, a narrativa acusatória cai no colo de quem julga. Como exercer contraditório sobre algo que só surge na sentença? É impossível.

Contra juiz não há contraditório.

A saída pra eventual discordância do juízo sobre o trabalho de membro do MP deve ser a invocação do MP-instituição. Ou seja, fazer os autos “subirem” pra apreciação superior dentro do Ministério Público. E não fazer o juiz o trabalho de “correção” da atividade ministerial. Devia-se aplicar o famoso artigo 28 (o antigo 28!).

Idealmente, a autoridade julgadora que assim procede deveria ser afastada dessa posição na causa, pois, ao fazê-lo, indica seu posicionamento, que transcende às partes e ao processo e assim viola sua imparcialidade, ainda que em prol de sua convicção sobre a devida aplicação do direito. Dessa forma, reformando o MP a posição de seu membro, um novo juízo deveria ser chamado à causa. Esse contorno procedimental, embora evidentemente mais burocrático, racionaliza melhor o exercício do poder punitivo, pois reflete a institucionalidade de modo mais amplo, menos pessoalizado e menos voluntarista, tanto no nível do MP quanto no nível do Judiciário.

Mas me permita avançar na questão da verdade. Afinal, é na filosofia que o debate sobre o artigo 28 encontra seu devido e adequado terreno.

 

PARTE 3

O mundo dos fenômenos existe para além de nossas percepções.

Uma árvore que cai em uma mata isolada, uma ilha inabitada que é engolida pelo oceano, ou dois asteroides que se chocam são fenômenos da natureza que existem independentemente das percepções e da intelecção humana, isso é inegável.

Contudo, chamar árvore de árvore, ilha de ilha e asteroide de asteroide implica antes uma atribuição de significantes, de modo tal que a compreensão dos significados depende ainda do compartilhamento desses conceitos entre pessoas.

Daí que, “lá fora”, isto é, no mundo dos objetos e dos fenômenos, não existe verdade, mas apenas isto, objetos e fenômenos. A verdade é algo que se encerra no campo da linguagem, da comunicação, na atribuição deliberada e compartilhada de sentidos.

Não se trata de assumir um relativismo extremo e cínico. Trata-se apenas de reconhecer que não existe A Verdade, ou qualquer noção de verdade divina ou natural. No mundo humano, é na linguagem e na cultura, no social e na história, que a vida se desenvolve. Quanto aos objetos e fenômenos, embora existam independentemente de nós, é no como nos dirigimos a eles que a verdade se manifesta, não neles em si. A verdade é, portanto, um movimento de sentidos, é dinâmico e sempre contextual.

Tanto é assim que cada instituição no sistema de justiça criminal – todas ocupadas por pessoas de mesma biologia e de similar capacidade intelectiva, diga-se – possuem visões distintas e tomam posições únicas sobre os eventos humanos. Elas possuem, cada uma, um ethos, que orienta e norteia a forma com que seus membros observam o mundo e, assim, entendem por verdade. Quando o assunto é standart probatório, por exemplo, o sarrafo de uma promotora de justiça tende a ser distinto de um policial militar ou mesmo de um perito da civil. Esse nível de exigência é determinado, dentre outros elementos, (a) pelo fator individual da promotora, (b) pelo fator institucional (padrão da instituição) e (c) por fatores externos, como o nível de prova exigido normalmente pelo juízo local e até em consideração às possíveis inserções defensivas no processo.

O próprio pensamento científico não se propõe na tarefa de alcançar a verdade. Proposições científicas de ampla aceitação na comunidade são elevadas a teorias ou a leis, sempre na condição de resposta parcial, mas ainda sujeita à refutação.

A verdade sobre um homicídio é uma coisa muito distinta daquela sobre um estelionato e um furto no repouso noturno, e a construção da verdade sobre a torpeza se dá de modo distinto também daquela construída sobre vantagem indevida. Ou seja, há níveis diversos para cada tipo penal, circunstância do crime e ilicitude. Uma “teoria da verdade” em um processo de homicídio deve ser diferente de “uma teoria da verdade” em um crime de corrupção ativa, tráfico, estelionato ou crime licitatório. A teoria geral do processo deve considerar essas nuances para enriquecer o debate sobre o assunto processo e verdade.

Quem tem mais cautela já não fala mais em verdade absoluta no processo. Suavizam o carregado termo “verdade real” no sentido de que o princípio indica a ideia de “aproximação do que realmente aconteceu”. O erro fenomenológico permanece. Essa assertiva pressupõe um sujeito que, ao mesmo tempo em que reconhece a impossibilidade de se dizer sobre a verdade absoluta, não deixa de considerá-la como existente, ainda que inalcançável, tal como Platão. Comum, ainda, reconhecer que verdade real admite a ideia de verdade relativa, mais uma vez caindo no mito da “aproximação” e sem deixar, no fundo, de pressupor epistemologicamente numa verdade que existe para além dos sujeitos.

No entanto, é preciso dizer de forma bastante peremptória. O princípio da verdade real, sobrevivendo à custa de desconhecimento científico e filosófico, bem como a partir de eufemismos astuciosos, deve ser finalmente enterrado na história do direito processual penal, uma vez que representa em si o mais altivo princípio inquisitivo.3

 

PALAVRAS FINAIS

A diferença com o júri é que o que sustenta nele a possibilidade de condenação após pedido de absolvição pelo MP é o exercício do poder popular, a soberania do veredicto circunscrita ao que é apresentado perante o conselho de sete, capaz até mesmo de superar a burocracia judicial.

Aos juízos comuns, o que sustenta tal possibilidade é uma epistemologia atrasada de efeitos autoritários, que dispõe ao juiz a função de revisor do órgão acusatório. É segunda camada acusatória que arrebenta a dialética processual, compreendida esta não só como técnica procedimental de alcance à verdade, mas também como mecanismo condicionante do arbítrio punitivo no poder jurisdicional penal.

 

Referências

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1. O caso é inventado, embora embasado em histórias que ouvi de tribunal do júri, espaço onde o exagero é mais tolerado, pois, afinal, não deixa de bem representar o absurdo do possível.

2. REsp 2.022.413 (STJ – 6T)

3.A alternativa epistemológica entre os dois modelos – um estritamente juspositivista e o outro tendencialmente jusnaturalista – se manifesta, portanto, no distinto tipo de “verdade jurídica” por eles perseguida. A verdade a que aspira o modelo substancialista do direito penal é a chamada verdade substancial ou material, quer dizer, uma verdade absoluta e onicompreensiva em relação às pessoas investigadas, carente de limites e de confins legais, alcançável por qualquer meio, para além das rígidas regras procedimentais. É evidente que esta pretendida “verdade substancial”, ao ser perseguida fora de regras e controles e, sobretudo, de uma exata predeterminação empírica das hipóteses de indagação, degenera em juízo de valor, amplamente arbitrário de fato, assim como o cognitivismo ético sobre o qual se baseia o substancialismo penal resulta inevitavelmente solidário com uma concepção autoritária e irracionalista do processo penal”. FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal, 2014, p. 48.

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