A pouco menos que um ano, publicamos matéria nesta coluna com menção ao fato de ex-jogador da seleção brasileira haver sido acusado de violência sexual contra mulher, em território espanhol, nas dependências de casa noturna, com veiculação de informes sobre a incidência de diploma legal daquele país (que entrara em vigor nos idos 2022), popularmente denominado “Só sim é sim”, o qual instituiu penalidades mais severas para crimes cometidos contra mulheres, oriunda a legislação de grave caso de violência sexual consumada em 2016, alusivo a estupro coletivo da vítima.1 O artigo 178 do aludido diploma legal estabeleceu que, para consideração da prática sexual como consensual, tem-se como imprescindível o exercício pela vítima de atos expressos a demonstrar manifestação muito clara e livre de sua vontade.
No caso paradigmático, em vias de julgamento no território estrangeiro, a indigitada vítima recebeu imediato apoio e encaminhamento pelo estabelecimento em que se encontrava por ocasião do indigitado delito, tanto em termos de socorro como no que pertine ao acionamento das autoridades competentes. Tratou-se da implementação de protocolo denominado “Ask for Angela” e “No Callem”. Por intermédio do protocolo executado, a vítima ao indagar a algum funcionário por “Angela” formaliza pedido de ajuda e a receberá do funcionário do estabelecimento, com discrição.
De ver-se que no estado de São Paulo já vigoram as Leis 17621/23, de 03 de fevereiro de 2023, que estabelece obrigação a bares, restaurantes e casas noturnas e de eventos de adotar medidas de auxílio à mulher que se sinta em situação de risco (mediante oferta de acompanhante até veículo ou diverso meio de transporte ou ainda, comunicação à polícia, com a aposição de cartazes em banheiros ou ambientes outros noticiando às usuárias a disponibilidade do estabelecimento para auxílio à mulher sob situação de risco ou meios diferenciados de comunicação à vítima) e Lei 17635 de 17 de fevereiro de 2023 (que estabeleceu prazo de sessenta dias para início da vigência a partir da publicação), a qual preconizou o dever de capacitação de todos os funcionários de empresas enquadradas como bares, restaurantes, boates, clubes noturnos ou casa de espetáculos ou similares, para habilitação com o escopo de identificação e combate ao assédio sexual e cultura do estupro praticados contra mulheres, impondo a obrigação de comunicação expressa, em local visível , de dados do funcionário ou funcionária responsáveis pelo atendimento e proteção à mulher que se sinta em situação de risco. Houve expressa previsão, ademais, da imposição de sanções tais como multa, suspensão de autorização para funcionamento e outras em caso de inobservância pelos estabelecimentos de tais normas, reportando-se à oportuna regulamentação legal quanto a detalhamento técnico de sua execução e critérios à capacitação dos funcionários.
Consigne-se, posto oportuno, que em 14 de março de 2023 o Conselho Nacional de Justiça erigiu a obrigatoriedade de observância das diretrizes do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero pelo Poder Judiciário , editando Ato Normativo (anteriormente a Recomendação 128 do CNJ apenas sugeria a adoção do referido Protocolo).
Relevante e atual o conteúdo, ademais, de entrevista outorgada por empresário da noite paulista ao jornal O Estado de São Paulo em 20 de fevereiro de 2023 no sentido de recomendar restrições a open bar e entrada graciosa de mulheres em determinados dias e horários, sem vigilância em áreas vip, com objetivo de evitar a fragilização do público feminino pela ingestão menos controlada de substâncias alcoólicas, dificultando a auto defesa em situações de risco de agressões sexuais. Houve menção à cultura em voga que alberga o assédio, à necessidade de educação e enfrentamento das desigualdades sociais e treinamento inclusivo de funcionários para melhor identificar e acolher eventuais vítimas.
Justamente o protocolo “No Callem”, aplicado no episódio de imputação de crime sexual à jogador de futebol brasileiro e amplamente veiculado pelos meios de comunicação, deu ensejo a publicação da Lei 14.786/23, sancionada pelo presidente da República, com entrada em vigor após decorridos 180 (cento e oitenta) dias da publicação, ocorrida em 28 de dezembro de 2023, estabelecendo o protocolo “Não é Não”.
A similitude entre os protocolos é irrefutável. Consoante o artigo 2º do diploma legal, o protocolo será implementado no ambiente de casas noturnas e boates, em espetáculos musicais realizados em locais fechados e em shows, com venda de bebida alcoólica, para promoção da proteção das mulheres e para prevenção e enfrentamento do constrangimento e da violência contra aquelas. O parágrafo único do dispositivo elimina a inclusão cogente de cultos e outros eventos realizados em locais de natureza religiosa.
Do teor supra consignado e ressalvado entendimento diverso, é apreensível o expurgo, em seara federal, dos restaurantes e bares, posto não serem sinônimos de casas noturnas, salvo se neles forem realizados shows ou espetáculos musicais com venda de bebida alcoólica, de modo portanto mais brando do que a legislação paulista. A interpretação de cunho restritivo é de rigor ao passo que há previsão de sanções pela inobservância do protocolo.
O afastamento de cultos e outros eventos realizados em locais de natureza religiosa já foi criticado, não sem razão2 , pois estamos no amplexo de aplicação obrigatória da lei, com menção a provável baixa adesão por estabelecimentos não compelidos a tanto legalmente pois, caso optem a voluntariamente aderir ao protocolo, em hipótese de inobservância de deveres restam adstritos a penalidades indesejadas.
Não obstante, diante dos ditames da Lei 11.340/2006, dos dispositivos do Código Penal alusivos a omissão de socorro, face à viabilidade de inclusão dos responsáveis por estabelecimentos ou instituições, a título de coautoria ou participação em delitos sexuais em detrimento da vítima, sem tampouco se descurar da seara da responsabilidade civil, a qual alberga o entendimento de que tais entidades ou estabelecimentos assumem o dever de fornecimento de segurança aos clientes ou frequentadores (consideração do risco da atividade), ainda que organizações possam restar a priori afastadas da obrigação legal de adesão ao protocolo “Não é Não”, com remissão à facultatividade, parece-nos bastante explícita a circunstância de que não estarão alijadas do âmbito de aplicação da normativa em vigor.
A Lei 14.786/23 define o que é constrangimento, percebido pela mulher após manifestar sua discordância com a interação, violência (uso de força hábil a provocar lesão, morte ou dano, entre outros). Institui deveres a serem implementados quanto à pessoa da vítima tais como respeito ao seu relato, preservação de integridade física e psicológica, rapidez no acolhimento e adoção de providências, dentre outros. Elenca direitos da mulher, como os de ser adequadamente informada e afastada imediatamente, além de protegida do agressor, destacando outras obrigações dos estabelecimentos como preparo e disponibilidade de ao menos um membro da equipe para atender o protocolo “Não é Não”, manutenção em locais visíveis da forma como o protocolo pode ser acionado, com números da Polícia Militar e da Central de Atendimento da Mulher, 180, consumando medidas quando houver indícios de violência como proteção da vítima, afastamento do agressor, colaborando na identificação de testemunhas, disponibilizando imagens de câmeras de segurança a serem preservadas por ao menos trinta dias; podem ainda os estabelecimentos criar códigos próprios para acionamento pela vítima com discrição e maior segurança, retirando o agressor do estabelecimento e obstando seu reingresso até término das atividades, em casos de constrangimento. O descumprimento do protocolo poderá ensejar, de resto, de advertência a outras penalidades a serem previstas em lei às pessoas jurídicas adstritas a execução do protocolo. Os estabelecimentos passíveis de adesão voluntária ao protocolo, em hipótese de inobservância de seus termos, poderão receber advertência, perda do selo “Não é Não-Mulheres Seguras”, exclusão da lista de local seguro para mulheres além de diversas penalidades a serem previstas em lei.
Ponderando o elevado índice de violência contra a mulher em território nacional, embora benfazejo o édito do protocolo “Não é Não” , compreensível que se anteveja na disponibilização de substâncias alcoólicas para consumo por mulheres fator diferenciado, hábil a majorar vulnerabilidade das mesmas em episódios de interações sociais, tem-se que a aplicação ampla, albergando eventos religiosos e outros estabelecimentos sem a venda de bebidas alcoólicas, consistiria em medida mais apropriada à luz do contexto social brasileiro, sem embargo de farto arcabouço normativo, como mencionamos, hábil a ser invocado em eventos peculiares a violação de direitos das mulheres, quiçá mediante a prática de atos de violência. Todavia, a adesão facultativa com a imposição de penalidades em caso de infringência às disposições, mostra-se realmente como concepção de pequena eficácia para prevenção e combate à violência em prejuízo do gênero feminino, já que pouco factível, violência essa tão normalizada e rotineira no cotidiano das mulheres brasileiras.
Tornamos à imprescindibilidade de implementação de campanhas educativas para prevenção e não subalternização da temática da violência de gênero, amplamente arraigada em nossa sociedade, com imposição célere das medidas legais repressoras dos mais variados atos ilícitos.
Referências
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1. Site, matéria veiculada em 24/01/2023, entrevista ao professor de Direito Penal da USP Alamiro Velludo, acessada em 25/03/2023;
2. SOUZA, Thais Pinhata de, ROSA, Raquel, Consultor Jurídico, “O ‘Não é Não’ virou lei, mas com restrições”, 13 de janeiro de 2024, site, acessado em 21/01/2024;