O racismo é uma técnica, um conjunto de procedimentos ligados aos modelos políticos de execução e que dão norte às experiências sociais de hierarquização e de organização violenta dos corpos. Ademais, ele se instala nas experiências sociais indicando que há, no interior dos circuitos da ação, nas instituições, nos parâmetros de conhecimento, nos ditames do que é desejado ou belo, os vestígios coloniais de adequação entre legitimidade e brancura. A sua perversa sofisticação denota uma duplicidade que pode ser observada pela exterioridade e pela interioridade. No que tange à exterioridade, compreendemos os modelos políticos que aventam a memória colonial e seu desprezo pelo corpo racializado. Desdém que se instala de maneira multiarticulada nas relações, mitigando a humanidade de sujeitos negros e fabricando — em nome do dispositivo político da raça — abismos entre a humanidade e a desumanidade. No que diz respeito à interioridade, é possível entrever que os processos de subjetivação são conformados pelos dispositivos de poder e que, por meio desses discursos, sujeitos brancos não se percebem racializados, em relação, ou marcados, bem como impedem que sujeitos negros acessem a si mesmos através de modelos afirmativos de subjetivação, possibilidade e positividade. A raça, no processo de interioridade, funciona como uma dupla negação: a negação da localização e a negação da possibilidade. A ausência da localização perpetua a compreensão da brancura no lugar construído pelas epistemologias, políticas e moralidades coloniais, como sinônimo de humanidade, em detrimento do corpo localizado, marcado e cindido, através de processos profundos de aniquilamento da vida.
Um dos parâmetros para que possamos compreender o lugar das pessoas aliadas na luta antirracista é, de forma pontual, a continuidade ou a descontinuidade dessa dupla negação. Se perceber localizado é compreender a presença do outro como realidade e não como um vulto ou dessemelhança. Significa ouvir o que o outro, enquanto sujeito, tem a dizer e compreender sua presença na relação. A subjetividade do outro não pode ser escamoteada, as suas denúncias não podem ser enfraquecidas ou relativizadas em nome da perpetuação das vantagens e/ou privilégios de grupos hegemônicos. Se ligar ao outro, nesse sentido, indica um combate aos inimigos que se voltam — em favor da manutenção das opressões — contra todos os corpos anunciados como dissidentes. Significa inclusive, por vezes, se voltar contra as próprias estruturas que asseguram vantagens político-sociais e que retroalimentam o que chamamos de negação da possibilidade. As pessoas partidárias da causa antirracista não podem querer negociar o protagonismo, esvaziar a presença e a representatividade de sujeitos negros, pois, ao agir dessa maneira, não empreendem quebra alguma. Devem compreender a dinâmica da responsabilidade e da crítica permanente do seu lugar socialmente construído para acirrar as distâncias políticas. Nesses termos, ser aliado requer a coragem para perder o lugar de segurança que, por vezes, é constituído pela manutenção das políticas de execução. Compreendemos que a ética da aliança surge no instante em que nos localizamos —construindo, por meio do diálogo, pontes, convergências — e compreendemos as complexidades das realidades da dor de outros sujeitos, a fim de superar coletivamente as dinâmicas de opressão.