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Quando a esmola é demais, o santo desconfia

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Iniciar esse texto com um ditado popular é extremamente esclarecedor já que nos últimos anos, o mercado de consumo foi inundado com promoções da Hurb – Hotel Urbano e 123 Milhas.

Essas duas empresas tornaram-se nacionalmente conhecidas por oferecer descontos em pacotes de viagens extremamente agressivos. O Hurb é a maior empresa de tecnologia de viagens sediada no Brasil. Ela foi fundada em janeiro de 2011 pelos irmãos João Ricardo Mendes e José Eduardo Mendes com o amigo Antônio Gomes. O Hurb estava avaliado em R$ 2,6 bilhões ou aproximadamente US$ 590 milhões quando a Booking Holdings comprou um pequeno percentual por US$ 60 milhões em 2016. A empresa foi fundada como site de compras coletivas e depois passou a atuar como uma agência de viagens on-line com foco em pacotes de curto prazo fora de temporada, com preços até 40% menores.

Em meados de março de 2023, hotéis e pousadas começaram a suspender reservas feitas pela empresa após reiterados atrasos e falta de pagamento. Nesse mesmo período, clientes da empresa começaram a relatar nas redes sociais e nas páginas de reclamação, problemas nas reservas, voos e hospedagens.

No site Reclame Aqui a empresa recebeu quase 160 mil reclamações de consumidores, sendo classificada como regular pelo mesmo site com nota 6, no geral. Só nos últimos 6 meses, foram 60229 reclamações, com índice de solução de 17.4%.

Além do não cumprimento das ofertas, o CEO da empresa entrou em atrito direto com os consumidores o que levou à sua renúncia no dia 24 de abril de 2023.

Já a 123 Milhas é uma plataforma online que disponibiliza passagens aéreas nacionais e internacionais que podem ser milhas. Fundada em Belo Horizonte, em 2016 pelos sócios Ramiro Júlio Soares Madureira e Augusto Júlio Soares Madureira. Em pouco tempo, se transformou na maior agência online de venda de passagens aéreas no Brasil. A empresa nasceu do elo entre aqueles queriam vender milhas aéreas com aqueles que procuravam passagens aéreas.

No site Reclame aqui, a empresa possui quase 170 mil reclamações, sendo 35 mil dessas reclamações nos últimos 6 meses.

Os problemas na 123 milhas começaram no dia 18 de agosto de 2023, quando a empresa anunciou a suspensão da emissão de passagens e pacotes da linha promo123, com embarques entre setembro e dezembro de 2023. Desde então a empresa virou alvo de órgãos de proteção do consumidor.

Na terça-feira, dia 29 de agosto de 2023, 123 Milhas ajuizou um pedido de Recuperação judicial, na 1ª Vara empresarial de Belo Horizonte, depois de uma enxurrada de ações na justiça brasileira, mais de 16 mil processos, totalizando mais de 232 milhões de reais em indenizações. O pedido de recuperação judicial foi aceito pela justiça mineira.

Segundo reportagem do Estado de Minas, os problemas da 123 Milhas não se restringem aos consumidores, existem credores pessoas jurídicas como o consórcio Empreendedor do Catuaí Shopping Center Maringá, de R$ 341 mil e pela Kijeme Travel Hoteis, dono do resort La Torre em Porto Seguro (BA), no valor de R$ 256 mil. 1

Além disso, na esfera trabalhista são 914 credores que juntos somam R$ 16,7 milhões de reais. Depois do pedido de recuperação judicial, a empresa realizou uma demissão em massa.

Para especialistas no setor de turismo, o erro da 123milhas foi dar início à venda de passagens e pacotes “flexíveis” (sem data definida e, por isso, mais baratos), este modelo de negócio é considerado de altíssimo risco, uma vez que não é possível prever os preços das passagens.

Esse é o cenário de duas das maiores empresas de viagens do País.

A pergunta que se faz, é, apesar de serem empresas lastreadas em tipos de negócios diferentes na origem, esses negócios dessas empresas seriam sustentáveis em longo prazo? É notório que muitos consumidores aproveitaram-se das promoções oferecidas por essas empresas nos últimos anos, até que os problemas aparecessem em ambas. Ou seja, no início do negócio, tudo parecia ser crível, já que as pessoas realmente recebiam os serviços contratados.

Suspeita-se que esses negócios com altas promoções com preços agressivos bem abaixo do mercado seja um esquema de pirâmide financeira. A pirâmide financeira é um modelo de negócios proibido, no qual o sistema só se sustenta enquanto houver pessoas recrutando outras pessoas para manter a base da pirâmide que é insustentável, por si só.

Os sócios da 123 Milhas, foram convocados a depor na CPI das Pirâmides Financeiras na Câmara dos Deputados.

Segundo o Código de Defesa do Consumidor, toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado. Trata-se do princípio da vinculação da oferta e publicidade.

O art. 35 do mesmo diploma legal, dispõe que se o fornecedor de produtos ou serviços recusar cumprimento à oferta, apresentação ou publicidade, o consumidor poderá, alternativamente e à sua livre escolha: exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou publicidade; aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente ou rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente antecipada, monetariamente atualizada, e a perdas e danos.

Ocorre que a 123 Milhas ofereceu apenas uma opção aos consumidores, o voucher com correção monetária de 150% do CDI – acima da inflação e dos juros de mercado, violando frontalmente o CDC.

Essa informação gerou uma reação em cadeia fazendo com que os consumidores do país desconfiassem da estabilidade da empresa, gerando um número absurdo de ações judiciais com pedidos liminares. Entretanto, depois do pedido de recuperação judicial aceito pela justiça mineira, a situação se complicou, uma vez que o pedido de recuperação judicial suspende, por no mínimo 180 dias, toda e qualquer ação contra a empresa.

Agora, a empresa apresentará um plano de recuperação judicial que pode ser aceito pelos credores ou pode levar a falência da mesma.

Nenhuma das duas saídas é boa para os consumidores. Por qualquer perspectiva que se olhe o problema, a vida dos consumidores dessa empresa é extremamente desanimadora.

Há ainda aqueles que nem sequer acabaram de pagar a viagem contratada, por exemplo, parcelada no cartão de crédito. Para esses, existe a possibilidade de solicitar seu cancelamento perante a empresa do cartão, ou se houver negativa da empresa, ajuizar uma ação com base no art. 54-G, I, do Código de Defesa do Consumidor. Esse artigo dispõe que sem prejuízo do disposto no art. 39 deste Código e na legislação aplicável à matéria, é vedado ao fornecedor de produto ou serviço que envolva crédito, entre outras condutas a de realizar ou proceder à cobrança ou ao débito em conta de qualquer quantia que houver sido contestada pelo consumidor em compra realizada com cartão de crédito ou similar, enquanto não for adequadamente solucionada a controvérsia, desde que o consumidor haja notificado a administradora do cartão com antecedência de pelo menos 10 (dez) dias contados da data de vencimento da fatura, vedada a manutenção do valor na fatura seguinte e assegurado ao consumidor o direito de deduzir do total da fatura o valor em disputa e efetuar o pagamento da parte não contestada, podendo o emissor lançar como crédito em confiança o valor idêntico ao da transação contestada que tenha sido cobrada, enquanto não encerrada a apuração da contestação.

É importante também ressaltar que o Código de Defesa do Consumidor prevê em seu art. 28, a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica da empresa, com base na teoria menor, que exige apenas o inadimplemento de uma prestação.

Essas são possibilidades disponíveis aos consumidores, mas que provavelmente não ressarcirão totalmente seu prejuízo financeiro e moral.

Sobre esses casos, algumas perguntas podem ser levantadas para aperfeiçoamento do nosso mercado de consumo. Os órgãos de defesa do consumidor foram negligentes na fiscalização dessas empresas? Esse tipo de negócio era sustentável em longo prazo? Os sócios estavam cientes do risco desse negócio? Eles transmitiram esse risco integralmente aos credores? Essas são perguntas que devem ser respondidas para se tentar aperfeiçoar o mercado de consumo brasileiro.

 

Referências

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1. 123milhas é alvo de mais de 16 mil ações judiciais. Disponível em: site. Acesso em: 04.09.2023.

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