Quanto valem vidas precarizadas?

Quanto valem vidas precarizadas?

ciseterobrutalidade

As recentes e brutais execuções de Alice Martins Alves e Christina Maciel Oliveira, em Belo Horizonte, evidenciam que a morte continua a ser preanunciada como destino para corpos que desestabilizam as normas hegemônicas e excludentes de gênero. Alice, mulher trans de 33 anos, foi covardemente agredida, submetida a sucessivos abandonos e teve sua vida abreviada pela convergência entre misoginia, transfobia e uma cadeia de negligências institucionais que estruturam um contínuo sistema de violação. Christina, mulher trans de 45 anos, executada à luz do dia, não encontrou qualquer forma de proteção política; ao contrário, teve sua morte transformada em espetáculo, registrada para validar o pacto da ciseternorma por meio da normalização da imagem degradada de presenças políticas situadas para além das fronteiras dos seus muros.

O pacto da ciseterobrutalidade é articulado pela masculinidade hegemônica, que posiciona corpos dissidentes como abjetos, traidores e inimigos de uma ordem moralidade restritiva. A cena envolvendo Alice demonstra isso de maneira contundente: seus insistentes pedidos de socorro não foram ouvidos porque ela era percebida a partir da distância intransponível produzida pelos discursos humanistas coloniais que, embora proclamem universalidade, não abarcam todas as vidas. A mesma sociedade que despreza a voz de Alice escuta, ainda que de forma hostil, o homem cisgênero que atravessa o caminho de seus agressores, pois o pacto da masculinidade ciseterobrutal distribui reconhecimento de forma desigual e seletiva. A letalidade, inclusive no país que há décadas atinge pessoas trans, continua a ser a linguagem que coordena esse inacesso ao reconhecimento.

Essa mesma lógica se revela na execução de Christina, realizada em praça pública, à luz do dia, diante de testemunhas que não foram mobilizadas nem constrangidas pela violência extrema a que ela foi submetida. A indiferença coletiva não é mera falha moral: é a evidência de um sistema que administra a precariedade, regula a comoção e determina quais mortes podem circular como espetáculo sem ameaça à “estabilidade social”.

O desprezo diante dos reiterados pedidos de socorro de Alice e a imunidade imoral que permitiu a execução sumária de Christina revelam que uma vida precarizada é produzida e gerenciada para além dos limites da dignidade humana, limites que nunca foram neutros ou universais. A dignidade, tomada como princípio abstrato, não alcança presenças previamente marcadas como descartáveis pelos mesmos dispositivos que as marginalizam. Assim, o sistema que executa sob o pretexto da defesa de uma suposta ordem moral expõe sua própria perversidade: vidas precarizadas desnudam a brutalidade, a dissimulação e a imoralidade das estruturas que as produzem para garantir sua continuidade de poder.

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