Quem são os verdadeiros inimigos?

Quem são os verdadeiros inimigos?

mãos levantadas

Há uma constante tentativa de fazer, por meio de malabarismos retóricos e espantalhos políticos, com que os grupos alvejados pelas estruturas discriminatórias sejam percebidos como algozes, iminentemente perigosos e indignos de estar nos limites da humanidade. Essa prática ocorre através do esforço sistêmico de violação que pavimenta as relações sociais, fazendo com que humanidades sejam amplamente negligenciadas. A apresentação desonrosa do outro, a fim de que ele seja lançado às margens políticas, é uma das táticas coloniais que não só hierarquiza de forma subalternizada a diferença, mas faz com que toda a violência que se instala contra corpos precarizados pelas normas discriminatórias seja justificada.

Os grupos minoritários não instalam contra os mantenedores do poder, dos privilégios e das vantagens sociais um regime radical de autoridade, desautorização ou de opressão. As análises que sugerem, por exemplo, que mulheres negras podem oprimir homens negros; que pessoas negras podem “ser”1 racistas; que pessoas LGBTQIA+ não são atingidas pela ciseteronorma, tentam nos convencer, em nome das agendas hegemônicas da misoginia, do racismo e da ciseterobrutalidade2 , que os corpos alvejados detêm as ferramentas de poder para brutalizar e usar a seu favor as normas compulsórias que regulam e parametrizam a realidade. Trata-se de um contrassenso, pois é possível observar como esses modelos, de forma sistêmica e hostil, docilizam, aprisionam e fazem sangrar todos os que não se ajustam aos seus parâmetros.

No interior das discussões políticas, podemos observar, por lentes interseccionais, que alguns marcadores sociais reafirmam as zonas inóspitas e as hierarquias, inclusive entre grupos minoritários. Todavia, essa análise também admite que os sistemas hegemônicos se mantêm seguros e organizam de forma discriminatória, à luz dos seus princípios de exclusão e tipificação, os corpos. Logo, mesmo que as dinâmicas de violação que se aportam na raça, no gênero, na sexualidade e em outros marcadores que reiteram organizações no centro das relações sociais, a rotina massacrante das políticas discriminatórias atualiza de forma sistemática os seus interesses.

Vale grifar que a brancura se manifesta politicamente como um fator que regula humanidade e desumanidade, fazendo com que mulheres brancas tenham vantagens sociais em relação a homens negros; que homens negros heterossexuais assumam posições discriminatórias em relação a homens negros não-heterossexuais e a qualquer sexualidade divergente da norma heterossexual, assumindo, assim, as prerrogativas do que chamamos de ciseterorrorismo. Em nenhum desses exemplos há segurança para os sujeitos.  Não há crédito para os que insistem em manusear instrumentos que em algum momento podem se voltar contra eles, tampouco para aqueles que, nesse contexto, são atingidos por esse maquinário de violência. É importante perceber que essa lógica de hierarquização não atende a nenhum corpo anunciado à distância da norma.

Por essa razão destacamos a importância de uma ética da solidariedade. De uma adesão política que assume a ruptura, o caráter beligerante e disruptivo diante dos sistemas estruturalmente comprometidos com uma memória colonial, discriminatória e excludente. É preciso identificar quem são os verdadeiros inimigos.

 

Referências

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1. Ao compreendermos que o racismo é uma ideologia, isto é, um sistema simbólico e material que dá forma às relações, às percepções que os sujeitos têm de si e o modo pelo qual são enquadrados pelo olhar do outro, é possível inferir que esses corpos, ao serem transformados em alvo pelo sistema de racialidade, podem reproduzir valores, sentidos e perspectivas sobre o mundo, implementados pela branquitude enquanto arcabouço político. Sujeitos negros não podem ser racistas, pois, ao contrário da teia de violência orquestrada pela branquitude, não se beneficiam do apequenamento político implementado contra as suas presenças.

2. Ler Afinal, o que é a ciseterobrutalidade? Disponível em: link

 

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