Quem sustenta que imagens de um crime gravadas por terceiro são ilícitas?

Quem sustenta que imagens de um crime gravadas por terceiro são ilícitas?

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Até onde pude observar, ninguém!

Qual é a controvérsia, então? Vejamos:

Para alcançar a discussão proposta, infelizmente, devemos rememorar o caso do médico que estuprou (a princípio, mas com fortíssimas evidências) uma paciente anestesiada em uma sala de cirurgia. Profissionais que desconfiaram do anestesista resolveram então gravar um vídeo da possível violência, que veio a se concretizar. O teor das imagens tomou conta dos noticiários. Detalhes adicionais são desnecessários.

Ocorre que o caso levantou uma polêmica de processo penal, no tema de provas ilícitas. Argumentou-se que haveria uma interpretação de determinada lei que tornaria a mencionada gravação em prova ilícita, isto é, inadmissível no processo criminal.

Vamos então enfrentar aqui o dispositivo legal, objeto da crítica.

Porém, adianto: Até onde pesquisei, não vi ninguém sustentar a tese de que aquelas gravações deveriam ser consideradas ilícitas. Ao que tudo indica, essa interpretação se restringe à condição de hipótese, de uma possível interpretação do dispositivo, criada por quem dela discorda. Trata-se, portanto, de interpretação fabricada!1

Enfim, o dispositivo, incluído na lei de interceptações telefônicas:

4º A captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público poderá ser utilizada, em matéria de defesa, quando demonstrada a integridade da gravação. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019 à Lei nº 9.296/96).

Repare que o trecho acima é somente o § 4º. Porém, não é recomendado ler os parágrafos (§s) sem sua cabeça. Segue, então, o caput.

Art. 8º-A. Para investigação ou instrução criminal, poderá ser autorizada pelo juiz, a requerimento da autoridade policial ou do Ministério Público, a captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos, quando: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019 à Lei nº 9.296/96).

Creio que todos concordam que, de fato, o texto do §4º é muito mal escrito. Sua redação é causa parcial desse imbróglio hermenêutico, pois, sendo mal formulado o texto da norma, muitas interpretações entram no campo da possibilidade. Isso gera uma sensação de incerteza e de imprecisão.

Enquanto os artigos iniciais da lei de interceptações telefônicas (Lei nº 9.296/96) colocam muito claramente que a interceptação somente será legal quando devidamente autorizada por juiz competente, estabelecendo condições bem específicas para tanto, os novos dispositivos trabalham sobre termos mais imprecisos. Repare, porém, que o novo 8º-A busca, do seu modo, integrar a forma e objetivos dos art. 2º e art. 3 º, que se referem à interceptação telefônica:

Art. 2° Não será admitida a interceptação de comunicações telefônicas quando ocorrer qualquer das seguintes hipóteses:

Art. 3° A interceptação das comunicações telefônicas poderá ser determinada pelo juiz, de ofício ou a requerimento:

Assim como o novo art. 8º-A, o antigo art. 3º também utiliza o termo poderá. Ninguém sustenta, porém, que esse “poderá” do art. 3º concede faculdade ao poder público de fazer uso da interceptação telefônica sem autorização judicial. Nesse caso, do poderá decorre, em verdade, obrigação. É sabido: Não será lícita a interceptação telefônica sem que um juiz competente, em decisão fundamentada, autorize a medida.

Independentemente do verbo poderá, o art. 8º-A apenas traz, portanto, a obrigação ao poder público de realizar a captação ambiental em termos próximos ao regime concedido e concebido à interceptação telefônica.

Em síntese: O novo 8º-A, caput, torna lícita, no curso de investigação, somente a captação ambiental quando autorizada judicialmente.

Visto a cabeça, vamos ao membro, o § 4º. Ele apenas cria uma exceção à regra do caput. O que isso quer dizer?

Pode captação ambiental – para investigação ou instrução criminal – sem autorização judicial? Como regra NÃO, salvo quando: (a) no interesse da defesa, (b) no contexto da captação com interlocutores e (c) quando demonstrada integridade.

Peço que retorne ao § 4º do 8º-A e repare que todos esses elementos estão lá, inclusive o dos interlocutores! A questão dos interlocutores surge quando há gravação de uma conversa em que um participante sabe da gravação e o outro não. Essa condição já torna o dispositivo inaplicável ao caso que abriu nossa discussão.

A verdade é que novo artigo segue a lógica da doutrina geral quanto à exceção das provas ilícitas: Admite-se a prova ilícita apenas e excepcionalmente a favor do réu, normalmente para prova de sua inocência.

Ocorre que o artigo, de maneira inovadora, impõe a limitação da integridade. O contexto político do pacote anticrime ajuda a compreender o motivo dessa limitação, pois vimos casos reais de gravações ambientais apresentadas com cortes, que dispunham dúvida sobre o real contexto das falas gravadas.

Para mim, parece um tanto óbvio que os novos dispositivos legais não se aplicam à captação ambiental por populares pra fins preventivos, onde não há intenção investigativa. Assim, a captação ocasional de um crime, acidental ou para registro de um flagrante, pode ser tranquilamente utilizada como prova no processo ou, pelo menos, como notícia-crime ou starter de investigação.

Do contrário, a lei estaria proibindo até mesmo a gravação das câmeras de segurança particulares ou a gravação de uma ocorrência por alguém que saca a câmera do celular na rua. Isso seria absurdo.

A lei veio a regular, racionalizar e condicionar a atividade investigativa policial, bem como a atividade probatória em juízo. Não é por acaso que o caput inicia com: Para investigação ou instrução criminal

Assim, os novos dispositivos impõem condições e limitações ao poder de investigação do Estado. E sejamos honestos: quase sempre, no curso de uma investigação policial, havendo tempo de preparar o aparato tecnológico para gravação ambiental, há tempo também de se buscar a autorização judicial.

E é a lógica democrática: deixamos ao Judiciário o poder de flexibilizar direitos fundamentais, não à polícia. Esta precisa exercer seu poder de maneira condicionada, racionalizada.

Concluindo: O que sugerem os novos artigos? É mais simples do que parece. A captação ambiental tocada pela polícia, no curso de investigação, só será lícita quando devidamente autorizada por juiz competente. E a defesa, poderá fazer captação ambiental? Só nos termos do § 4º do art. 8º-A.

A lei veio a impor condições à atividade persecutória investigativa do Estado. Ela não veio a criminalizar ou proibir o uso particular de câmeras, especialmente na sua intenção preventiva.

Não acredito também que a lei veio a regular a utilização de câmeras no policiamento ostensivo. Vale retornar novamente aos termos iniciais do caput do 8º-A. O que se deve ter cuidado, porém, é com investigações informais conduzidas pela PM, especialmente aquelas típicas da atividade de inteligência, que costuma se ocultar dos autos e que, quando aparece, vem sob a nomenclatura eufemística de “levantamento de informações”. Não se confunde o uso das câmeras de lapela dos PMs, bem como o registro em vídeo de uma abordagem ou de um flagrante, da captação ambiental no curso de uma investigação.

Além disso, vale mencionar também que a urgência e a necessidade, quando presentes e posteriormente demonstradas, fazem da ordem judicial para captação ambiental prescindível, algo que se estabelece, portanto, no regime da cautelaridade processual. Aqui, o exame rigoroso é importante, pois há o risco da exceção transformar-se em regra.

Outras interpretações, naturalmente, são legítimas. Apenas trouxe aqui a minha. O ponto é que não vi, ainda, ninguém sustentar a interpretação que foi o alvo da polêmica, de que as imagens do flagrante do estupro deveriam ser ilícitas. Essa interpretação só me apareceu na boca de seus críticos.

Em algumas críticas a essa suposta interpretação, houve menção ao trâmite legislativo do dispositivo legal. Isso porque o polêmico § 4º foi vetado pelo Presidente da República. No entanto, o veto foi derrubado pelo poder legislativo. Ocorre que nas razões do veto presidencial2 não está presente a crítica que posteriormente foi levantada.

Temos aí uma variação da falácia do espantalho. Nesse tipo de falácia, o sujeito distorce o argumento do adversário para vencer o debate. Assim, ganha-se do falso argumento. Ocorre que existe um motivo para que esse espantalho tenha sido criado nesse caso. Na verdade, dois:

O primeiro é de ordem política. Sai favorecido o político que buscou evitar os efeitos “nefastos” dessa lei. Aqui, reforça-se a retórica do bem contra o mal e do “inimigo superpoderoso”. Vale relembrar que nas razões do veto presidencial não esteve presente a crítica a essa interpretação. Ela só foi inventada depois, provavelmente numa jogada de marketing político.

O segundo é de ordem jurídica. O novo dispositivo traz rigor ao uso de gravação ambiental por parte dos órgãos de persecução criminal, em especial para a polícia. Todo avanço de normas condicionadoras do poder policial é sucedido de críticas, normalmente centradas no fantasma da impunidade.

Entender que a lei processual se presta, dentre outros objetivos, a conter abusos policiais, é fundamental para a interpretação adequada e constitucionalizada desses novos dispositivos reguladores. Buscar sua ineficácia, aventando-se interpretações absurdas a partir de casos midiáticos, é ingenuidade de um lado e malícia do outro.

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Rafael de Deus Garcia

 

Referências

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1. Até pode a defesa de um réu no processo levantar essa interpretação, de modo que aí precisaria encontrar uma autoridade julgadora a concordar com a ousadíssima tese, mas, frise-se, sem lastro em qualquer posição de ordem doutrinária.

2. Razões do veto presidencial: “A propositura legislativa, ao limitar o uso da prova obtida mediante a captação ambiental apenas pela defesa, contraria o interesse público uma vez que uma prova não deve ser considerada lícita ou ilícita unicamente em razão da parte que beneficiará, sob pena de ofensa ao princípio da lealdade, da boa-fé objetiva e da cooperação entre os sujeitos processuais, além de se representar um retrocesso legislativo no combate ao crime. Ademais, o dispositivo vai de encontro à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que admite utilização como prova da infração criminal a captação ambiental feita por um dos interlocutores, sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público, quando demonstrada a integridade da gravação (v. g. Inq-QO 2116, Relator: Min. Marco Aurélio, Relator p/ Acórdão:  Min. Ayres Britto, publicado em 29/02/2012, Tribunal Pleno).”

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