A revolução digital do século XXI (sugiro a leitura de Quarta Revolução Industrial de Klaus Schwab) prometeu democratizar e globalizar o acesso à informação e fortalecendo a conectividade global e permitindo interações em tempo real sem limites de fronteiras geográficas e políticas (e de idiomas, claro!).
Este artigo é desenvolvido em homenagem aos Professores Heloisa Helena Portugal (UFMS) e Raphael Chaia (Insted, UCDB e UFMS) com quem dialogo sobre o tema e preocupações.
No entanto, o que emergiu foi um sistema econômico baseado na exploração sistemática da experiência humana como matéria-prima para a geração de lucros corporativos, a denominada economia de dados. Shoshana Zuboff (2019) denominou este fenômeno de “capitalismo de vigilância”, caracterizado pela extração contínua de dados comportamentais para a criação de produtos de predição vendidos em mercados futuros comportamentais.
No Brasil, com mais de 144 milhões de usuários ativos nas redes sociais segundo dados de 2024 (CETIC.BR, 2024), os efeitos deste modelo econômico manifestam-se de forma particularmente intensa. A população brasileira, historicamente marcada por desigualdades educacionais e sociais, torna-se especialmente vulnerável aos mecanismos de modulação comportamental implementados pelas plataformas digitais.
Dai a pergunta: (i) em que medida as redes sociais, através de algoritmos de modulação comportamental, transformam os usuários em produtos comerciais, comprometendo seus direitos de personalidade e promovendo o comportamento de rebanho que anula o pensamento crítico?
Somos seres humanos tornados seres produto!
O capitalismo de vigilância representa uma mutação fundamental do sistema capitalista, onde a experiência humana é transformada em dado comportamental. Segundo Zuboff (2019), este sistema opera através da descoberta do “superávit comportamental” – dados que inicialmente eram subprodutos da melhoria de serviços, mas que se revelaram extremamente valiosos para a predição e modulação do comportamento futuro.
No contexto brasileiro, esta dinâmica assume características específicas. O documento “O Fim do Direito à Proteção de Dados Pessoais na Dataficação de Tudo” (PESSOA; LIMBERGER, 2024) evidencia como a [dataficação generalizada](https://www.ufsm.br/app/uploads/sites/563/2024/12/7.3.pdf) converte aspectos cada vez mais amplos da vida cotidiana em dados quantificáveis. Este processo é impulsionado pela proliferação de dispositivos conectados e plataformas digitais que coletam e processam dados continuamente, transformando cada interação humana em uma oportunidade de extração de valor. O [capitalismo de vigilância brasileiro](https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/3RSTj7mCYh6YcHRnM8QZcYD/) opera através de uma lógica perversa: quanto mais dados são extraídos, mais precisas se tornam as predições comportamentais, e consequentemente, mais eficazes são os mecanismos de modulação. Esta dinâmica cria um ciclo vicioso onde os usuários, sem perceber, alimentam o sistema que os controla.
Conforme aponta Le Monde Diplomatique Brasil (2019), [a experiência humana é mercantilizada pelo capitalismo de vigilância](https://diplomatique.org.br/um-capitalismo-de-vigilancia/), para renascer como “comportamento”. Esta transformação ontológica é fundamental para compreender como os direitos de personalidade são sistematicamente violados pelas plataformas digitais.
No Brasil, a concentração de poder nas mãos dessas corporações manifesta-se de forma particularmente problemática devido à fragilidade das instituições regulatórias e à baixa capacidade de enforcement das normas de proteção de dados. A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), criada em 2020, ainda enfrenta desafios significativos para fiscalizar efetivamente as práticas das Big Techs.
A modulação comportamental constitui o núcleo operacional do capitalismo de vigilância. Através de algoritmos sofisticados, as plataformas não apenas preveem o comportamento futuro dos usuários, mas ativamente o moldam através de técnicas como: (i) Personalização Extrema da Comunicação Digital: Os algoritmos criam perfis comportamentais detalhados de cada usuário, adaptando o conteúdo apresentado para maximizar engagement e tempo de permanência na plataforma; (ii) Arquiteturas de Escolha: As interfaces são projetadas para induzir determinados comportamentos, utilizando princípios da economia comportamental para “empurrar” os usuários em direções pré-determinadas; (iii) Engajamento Baseado em Emoções Fortes: As plataformas privilegiam conteúdos que geram reações emocionais intensas, incluindo raiva, medo e indignação, pois estes são mais eficazes na captura e manutenção da atenção.
Conforme evidenciado pela pesquisa de Santana et al. (2024), [“o comportamento de rebanho, efeito de pastoreio ou efeito manada”](https://revista.cognitioniss.org/index.php/cogn/article/download/497/407/1074) é sistematicamente explorado pelas plataformas através da combinação de neuromarketing e inteligência artificial, criando campanhas que “aumentam substancialmente o efeito manada, homogeneizando as preferências de consumo”.
Os direitos de personalidade, consagrados no artigo 5º da Constituição Federal de 1988 e regulamentados pelo Código Civil, abrangem a proteção da vida privada, intimidade, honra, imagem e autodeterminação informativa. No ambiente digital, estes direitos assumem novas dimensões e enfrentam desafios inéditos.
O Supremo Tribunal Federal, em decisão histórica de 2024 sobre o [artigo 19 do Marco Civil da Internet](https://www.migalhas.com.br/quentes/433462/stf-redes-respondem-por-posts-mesmo-sem-ordem-judicial-veja-tese), reconheceu que as redes sociais podem ser responsabilizadas por violações aos direitos de personalidade mesmo sem ordem judicial, sinalizando uma mudança paradigmática na proteção dos direitos fundamentais no ambiente digital.
A personalidade digital não é meramente uma extensão da identidade física, mas constitui uma dimensão autônoma da personalidade humana, nossos comportamentos, escolhas, nossa individualidade, nosso território (no dizer da PNL), nosso “EU”.
O modelo de negócio das redes sociais fundamenta-se na transformação dos usuários em produtos comerciais vendidos para anunciantes. Esta mercantilização da experiência humana viola frontalmente os direitos de personalidade, reduzindo a complexidade da pessoa humana a perfis comportamentais comercializáveis.
Pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria (2024), [“os modelos regulatórios atuais de proteção de dados pessoais acabam, na verdade, expandindo e legitimando o próprio capitalismo de dados”](https://www.ufsm.br/app/uploads/sites/563/2024/12/7.3.pdf). Esta aparente contradição revela como as normas de proteção, ao estabelecerem parâmetros para o tratamento “legal” de dados pessoais, inadvertidamente normalizam e institucionalizam práticas de vigilância e exploração informacional.
A violação dos direitos de personalidade manifesta-se através de múltiplas dimensões: (i) Violação da Intimidade; (ii) Comprometimento da Autodeterminação; (iii) Instrumentalização da Pessoa Humana.
Além disso, o caráter essencial das redes sociais para a participação na vida social contemporânea transforma o consentimento em uma imposição prática. Negar o consentimento equivale, na prática, ao isolamento social e profissional, configurando o que Zuboff (2019) denomina “coerção da conectividade”.
O comportamento de rebanho, fenômeno estudado por Solomon Asch na década de 1950, descreve a tendência humana de seguir as ações ou decisões de um grupo maior, frequentemente sem consideração crítica. Conforme evidenciado pela pesquisa de Pinto (2024), [“as redes sociais foram concebidas com uma engenharia comportamental baseada na dopamina”](https://fasbam.edu.br/2025/05/22/para-filosofar-o-colapso-etico-e-cognitivo-das-redes-sociais-no-brasil/). Cada curtida, compartilhamento ou notificação ativa o sistema de recompensa cerebral, reforçando ciclos de gratificação imediata que se assemelham aos mecanismos do vício em drogas.
A modulação algorítmica do comportamento de rebanho opera através de quatro mecanismos principais como (i) Prova Social Artificial; (ii) Filtros de Confirmação; (iii) c) FOMO (Fear of Missing Out); (iv) Gamificação.
A Eliminação do Pensamento Crítico como a capacidade de analisar informações de forma independente e formar juízos baseados em evidências, é sistematicamente sabotado pelas redes sociais. A lógica algorítmica privilegia velocidade sobre profundidade, emoção sobre razão, e conformidade sobre diversidade intelectual.
O contexto brasileiro apresenta exemplos emblemáticos de como o comportamento de rebanho digital pode ter consequências desastrosas para a sociedade. O caso das apostas esportivas online (bets) ilustra perfeitamente este fenômeno e recentemente do “ morango do amor”.
A proteção efetiva dos direitos fundamentais na era digital exige uma mudança paradigmática na abordagem regulatória. A regulação deve focar nos processos de modulação comportamental, estabelecendo limites claros para as técnicas de manipulação psicológica empregadas pelas plataformas.
A análise realizada neste artigo demonstra que as redes sociais operam como dispositivos sofisticados de controle comportamental que transformam sistematicamente os usuários e seus direitos fundamentais de personalidade, comprometendo a capacidade de escolha individual, mas também fragmenta o ambiente e a conquista social e democrática.
No Brasil, país marcado por profundas desigualdades e fragilidades institucionais, esta tarefa assume caráter ainda mais urgente, dada as desigualdades, déficit educacional e hábitos dos brasileiros em redes sociais.
Precisamos refletir como viver em equilibro entre ser humano, e evitar sermos relegados a simples seres produto.