Com o aumento de conhecimento e tecnologias, incessantemente renovadas para a prevenção e o tratamento de doenças, a população mundial vem envelhecendo, circunstância que deságua inclusive na economia, que em muitos países, vem saboreando diversos prejuízos ao se defrontarem tais nações com a queda brutal no índice de natalidade em descompasso com a longevidade observada nos membros de suas comunidades.
Deixadas ao largo tais discrepâncias, é forçoso concluir que o ser humano está vivendo por mais tempo e sob condições mais satisfatórias de modo geral no que concerne à observância de suas necessidades primordiais. O que significa dizer que a senectude não demanda quer incapacidade civil quer incapacidade ou indisponibilidade afetiva para entabulação de relacionamentos sexuais, amorosos, uniões estáveis ou casamentos.
Embora psicanalistas constatem o aludido fator ao detectarem a presença de relacionamentos iniciados por septuagenários1 , estudiosos da área de Gerontologia alertam , como bem faz a professora Anita Liberalesso Neri2 que “..as diferenças entre os sexos que se refletem no emprego, nos salários e nas carreiras profissionais são mais graves entre os idosos. Mais do que os não idosos, eles são vitimados pelo baixo capital social, por baixo poder político, por pouco conhecimento sobre direitos, por moradia em casas e regiões marcadas pela precariedade de recursos sanitários e sociais, pela violência urbana, por problemas inescapáveis que acometem os descendentes, pela doença e pela incapacidade. Apesar de serem mais longevas do que os homens, as mulheres idosas são mais doentes, mais vulneráveis à incapacidade física e cognitiva, mais queixosas, mais afetadas por diminuição no bem-estar subjetivo e mais oneradas por encargos familiares”.
A demógrafa Elza Berquó , por seu turno, ao analisar dados estatísticos em outubro de 2000, referentes a pesquisas de núcleo de estudos, consignou que na população idosa, no ano de 1995, o contingente de viúvas era extremamente elevado em contraste com o alto percentual de homens casados.
A dissonância do estado marital teria por origem a maior longevidade das mulheres, mas também a vigência de normas sociais e culturais prevalecentes em nossa sociedade que levam homens a se casarem com mulheres mais novas, o que se revelou em censo de 1980, sendo certo que então apenas 9% dos casais eram compostos por mulheres mais velhas do que seus maridos, com menos ocorrência de recasamentos de viúvas em idades avançadas3 , ressalvado aumento de matrimônios de mulheres mais velhas com homens mais novos nos idos de 20124 .
Tais considerações são pertinentes ao passo que evidenciam que questões de gênero, derivadas da cultura patriarcal, atravessam a dinâmica de relacionamentos afetivos das mulheres em quaisquer faixas etárias, inclusive com comprometimento da saúde física e mental já que precisam alcançar os ideais impossíveis em termos estéticos, raciais e etários para conformarem entidades familiares, em imensa proporção.
Por conseguinte, sob o ponto de vista empírico, ressalvadas hipóteses de preexistência de uniões estáveis antes do casamento da idosa – hipótese em que o regime de separação obrigatória vem sendo afastado – o índice atual de incidência de matrimônios de mulheres com mais de setenta anos convictamente revela-se bastante inferior em relação ao correspondente a homens que contraiam matrimônio na aludida configuração.
Com efeito, o artigo 1641 do Código Civil estabelece, sob a alteração de sua redação nos idos de 2010, que a pessoa com mais de 70 anos que se casar não poderá escolher o regime de bens, a ser forçosamente o da separação obrigatória, traduzindo-se a mens legis na concepção de que o idoso seria pessoa mais frágil e vulnerável e de tal sorte, deveria ser protegida contra eventuais abusos de terceiros, os pretensos nubentes. A temática pende de apreciação acerca da constitucionalidade pelo STF5 em virtude do reconhecimento de repercussão geral no Recurso Extraordinário com Agravo 1309642 (Tema 1.236).
Esse óbice à escolha do regime de bens que recairá sobre o próprio casamento ou união estável da pessoa com mais de 70 anos de idade, sempre foi alvo de debates, por limitar a autonomia privada e impor uma participação estatal nada confortável e desnecessária, no relacionamento conjugal.
A ideia de inadequação da regra desperta, especialmente ao se verificar, que atualmente, por exemplo, uma pessoa que exerça o múnus de ministro em nosso Supremo Tribunal Federal pode decidir questões relacionadas à inconstitucionalidade dos regimes de bens, incluindo o recurso extraordinário supracitado, mas não poderia, em tese, se casar em regime patrimonial de sua livre escolha com seu par, sob suposta “incapacidade” de decidir sobre a condução patrimonial de seu relacionamento.
Em verdade, tal regra visa a proteção dos herdeiros e não dos cônjuges em si, pois, a expectativa natural daquele que se une amorosamente após os setenta anos de idade, é que o próximo movimento patrimonial seja a partilha e discussão de sua herança. E antes que isso ocorra, pensou-se em “proteger o patrimônio”, mas de quem? Ou de quê? Cabe a reflexão.6
Para além do incômodo que esbarra na liberdade daqueles maiores de setenta anos, e para o Direito na autonomia privada no âmbito das discussões jurídicas que envolvem os casais inseridos nesses relacionamentos e regimes, os problemas não param aí.
Podemos, a exemplo, citar, a falta de conhecimento, especialmente das mulheres, pensando nos números e características inicialmente apontados, de que existe e poderá haver a incidência da Súmula do STF n 3777 nesses relacionamentos.
A referida Súmula prevê a comunicação dos bens adquiridos na constância dos relacionamentos regidos pela separação obrigatória de bens, (o debate inerente à aplicação da Súmula 377 será objeto de outra publicação), o que pode levar, a graves cenários, como: (i) o desconhecimento de que a separação de bens não é absoluta como se poderia ter pensado, (ii) por não se tratar de lei, não sendo eventualmente suscitada na partilha e apontados bens nas condições de comunicação, podem ocorrer a fraude ou a incorreta partilha de bens do casal, seja na hipótese do divórcio ou do término do relacionamento pela morte de um dos parceiros, haja vista a posição jurisprudencial de que há a necessidade de comprovação do esforço comum8 ; (iii) os parentes dos cônjuges, normalmente os herdeiros, criam litígios e às vezes até cenários de violência (patrimonial, psicológica além da física) contra o cônjuge sobrevivo que venha a pleitear referido direto à aplicação da Súmula 377, dentre outros aspectos.
A insegurança se tornou evidente, que alguns Tribunais de Justiça, através de suas Corregedorias, iniciado pelo Tribunal de Pernambuco (TJPE, Resolução nº 8/2016) e na sequência por São Paulo (Recurso Administrativo 1065469-74.2017.8.26.0100), passaram a orientar e permitir a lavratura, pelos Tabeliães de Notas, de pactos antenupciais e escrituras de união estável que expressem a vontade dos consortes pela não aplicação da Súmula 377 do STF, tendo em vista que o pacto antenupcial não é previsto na Lei para essa opção de regime de bens (CC, art. 1.640,§ único).
Ademais, o STJ, pelo julgamento do REsp nº 1.922.347/PR também sedimentou o entendimento da possibilidade de a escritura de união estável afastar qualquer comunicação de aquestos, e portanto, a Súmula 377, para de fato, o regime da separação prevalecer.9
Todavia, quando a vontade dos cônjuges é de que outro regime de bens seja o regramento patrimonial da relação, não é possível, diante do artigo 1.641 do Código Civil. Situação, como a supracitada que poderá ser alterada, diante do julgamento da inconstitucionalidade do Tema 1.236, pelo STF).
A questão também é tormentosa e reincidente na prática, pois quando os idosos lavram escritura de união estável, sob o regime “convencional” da separação de bens, com fulcro nos artigo 1.687/1.688 do Código Civil, sem menção à Súmula 377 STF, mas diante da hodierna jurisprudência, o regime aplicável será o obrigatório da separação, e, cientes, ou não da referida súmula, o instrumento da união estável servirá para o afastamento da aplicação sumular.10
Na experiência da coautora advogada, especializada na temática, “ao longo dos últimos vinte anos, são as mulheres as maiores vítimas dessa ausência de elucidação da efetivação da norma, pois ainda, na maioria abrem mão da carreira e da autonomia financeira para se dedicarem a família ou ao parceiro, e sem o reconhecimento espontâneo deste, passam a sofrer a delonga de demonstrações e produção de provas em processos judiciais, ou são afastadas de qualquer participação patrimonial e ainda, em alguns casos, sob a pecha de oportunistas.”[11]
Assim, aos maiores de 70 anos de idade, que se casam ou se unem, resta a imposição do regime da separação obrigatória de bens, e são submetidos à aplicação da Súmula 377 STF, que obriga a comunicação patrimonial, mas, lembre-se, há a necessidade de prova do esforço comum, ressuscitado nesse debate, o que remonta à insegurança da regra patrimonial do idoso que decide se unir ou se casar na melhor idade, mas esta não é regra que todos têm ciência quando iniciam o relacionamento, e ainda, não podemos olvidar, que no que diz respeito à herança, um não poderá ter ao outro, como herdeiros recíprocos (exceto testamentário, cf. CC, 1.829).
As dificuldades continuam, mesmo após longos anos de vivência e enfrentamentos pela mulher. Avante!
Referências
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1. Lins, Regina Navarro, “Novos relacionamentos e amor depois dos 70/Novas formas e amar”, Youtube, acessado em 24/01/2023;
2. Professora Colaboradora no Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria e Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Gerontologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp no artigo “Bem-Estar Psicológico na Velhice”;
3. www.nepo.unicamp.br, Berquó, Elza, Baeninger, Rosana, “Os idosos no Brasil Considerações Demográficas”, outubro de 2000, acessado em 24/01/2023;
4. www.anoreg.org.br, “IBGE- casamentos de mulheres mais velhas com homens mais novos aumentam no país” , acessado em 24/01/2023;
5. www.recivil.com.br, Paulino, Andréia, Assumpção, Letícia Franco Maculan, “Casamento de pessoa maior de 70 anos e a separação obrigatória de bens”, publicado em 04 de março de 2022, acessado em 24/01/23;
6. Sobre a intenção da lei: “A ratio legis foi a de proteger o idoso e seus herdeiros necessários dos casamentos realizados por interesse estritamente econômico, evitando que este seja o principal fator a mover o consorte para o enlace” (REsp 1689152/SC, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 24/10/2017, DJe 22/11/2017).
7. STF, Súmula nº 377: “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.” DJ de 08/05/1964, p. 1237; DJ de 11/05/1964, p. 1253; DJ de 12/05/1964, p. 1277.
8. Cf. EREsp 1.623.858/MG, Rel. Ministro Lázaro Guimarães (Desembargador convocado do TRF 5ª região), Segunda Seção, julgado em 23/05/2018, DJe 30/05/2018), ratificando anterior entendimento da Seção com relação à união estável (EREsp 1171820/PR, Rel. Ministro Raul Araújo, Segunda Seção, julgado em 26/08/2015, DJe 21/09/2015.
9. A respeito, confira a obra da coatora: Domingues, Fabiana Cardoso. Regime de Bens e Pacto Antenupcial. São Paulo: Gen/Método. 2010 e SIMÃO, Fernando José. Separação obrigatória com pacto antenupcial? Sim, é possível? In:https://ibdfam.org.br/artigos/1255/Separa%c3%a7%c3%a3o+obrigat%c3%b3ria+com+pacto+antenupcial%3f+Sim,+%c3%a9+poss%c3%advel%3f <acesso: 12/12/2018> e REsp 1922347(2021/0040322-7), de 01/02/2022.
10. Entendimento nesse sentido no REsp n. 1.922.347/PR, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 7/12/2021, DJe de 1/2/2022.
11. Cf. DOMINGUES, Fabiana Cardoso. Modificação do Regime de Bens no Código Civil/2002 após 20 anos: polêmicas e desafios para o futuro. In: 20 anos do Código Civil Brasileiro. (SANTIAGO, Maria Cristina. MENEZES, Joyceane Bezerra de. MOUTINHO, Maria Carla. (Org.). Rio de Janeiro: Editora Processo. 2023.