Responsabilidade Civil do Estado frente às mortes e lesões causadas por armas de fogo por policiais

Policiais-armados

Em 18 de outubro de 1994, cerca de 80 policiais civis e militares ingressaram na favela Nova Brasília, no Estado do Rio de Janeiro, e mataram 13 pessoas (quatro crianças). Em seguida, alteraram a cena do crime e carregaram os corpos para a praça central da favela. Uma segunda invasão foi realizada em 08 de maio de 1995, sob a justificativa de intervirem no carregamento de armas relacionado ao tráfico de drogas, na qual aproximadamente 14 policiais civis e mais 2 helicópteros militares entraram em Nova Brasília e assassinaram 13 homens.

Em 2013, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) “processou” o Brasil quanto a sua responsabilidade frente às chacinas, condenando-o, em 2019, por, entre outros delitos, violar direitos já consagrados, como os relacionados à proteção judicial, e por não adotar disposições de direito interno referentes à segurança pública. Além disso, foi arbitrado um rol de medidas de reparações no âmbito penal, civil e administrativo às vítimas, dentre elas o oferecimento de tratamento psicológico, psiquiátrico e medicamentos, de forma gratuita, imediata, adequada e efetiva, bem como indenizações monetárias a título de danos morais e materiais.1

O caso “Favela Nova Brasília vs. Brasil” traz precedentes para se discutir a responsabilidade civil do Estado pela morte ou lesão de pessoas em decorrência de armas de fogo por policiais. Primeiro é impreterível discorrer acerca da natureza jurídica da responsabilidade civil do Estado. O ordenamento jurídico-legislativo brasileiro adota a Teoria do Risco Administrativo de Léon Duguit,2 ou seja, reconhece que a responsabilidade do Estado é objetiva, devendo esse reparar o dano causado a terceiros, independentemente de culpa, exigindo apenas a existência do dano e do nexo de causalidade entre ele e o ato, comissivo ou omissivo específico, lícito ou ilícito, do agente da Administração Pública que o deu causa.

Nesse sentido, o art. 37, § 6º da Constituição Federal de 1988 dispõe que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.3 Ademais, o art. 927, parágrafo único, do Código Civil estabelece que “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.4

Em segundo plano, é imperioso pontuar que, sem que haja uma análise pormenorizada do caso em concreto, a responsabilidade civil do Estado não é afastada em razão da extinção da punibilidade pelas excludentes de ilicitude presentes no art. 23 do Código Penal.5 Dessa forma, se o agente policial, em função da Administração Pública, agir em legítima defesa, estado de necessidade ou em estrito cumprimento de dever legal, pode o Estado ser responsabilizado pelos danos causados ao particular alheio ao confronto entre indivíduos ou grupos específicos e policiais, bem como quando o agente agir em desproporcionalidade, irrazoabilidade e/ou ilegalidade na atividade a ele incumbida. O art. 935 do Código Civil preceitua que a responsabilidade civil independe da criminal, sendo que “embora reconhecida a causa de exclusão pela justiça criminal, com força de coisa julgada, isto não impede ao juízo cível conhecer do fato, para que se meça a extensão da agressão ou da conduta lesiva, e se avalie o grau de culpa com que o ato tenha sido praticado”.6

Nesse sentido, o entendimento do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul:

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO – EXCLUDENTE DE ILICITUDE – POLICIAIS EM ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL – DANOS MORAIS – NÃO CONFIGURADOS – RECURSO IMPROVIDO. Ausente comprovação dos abusos ou excessos na abordagem policial, não há que se falar em ato ilícito ensejador de dano moral. Sendo o dano moral constituído pela tríade de requisitos, sejam estes: o nexo de causalidade, conduta do autor e o dano; é notável que no caso dos autos os agentes agiram em conformidade com o estrito cumprimento do dever legal, o que consequentemente impõe o improvimento do recurso e a manutenção da sentença.7

Por outro lado, o Estado não é responsabilizado na esfera civil quando há ruptura do nexo causal entre o ato praticado pela polícia e o dano causado ao terceiro, sendo as excludentes: a culpa da vítima (art. 945 do CC), que será avaliada considerando o grau da sua culpa, o fato de terceiro – se o dano for causado diretamente por terceiro, sendo esse a quem será responsabilizado (art. 927 do CC), e se indiretamente, o Estado será responsabilizado, cabendo a ele a proposição de ação regressiva contra o culpado (art. 930 do CC), o caso fortuito e a força maior (art. 393 do CC).8

Cabe postular acerca da delimitação da aplicação da excludente de responsabilização por força maior ou caso fortuito. A diferença entre ambos, para Pontes de Miranda, só possui relevância se as regras jurídicas aplicadas a cada uma forem diversas,9 o que não se verifica no ordenamento jurídico-legislativo brasileiro, já que o art. 393 do CC não traz distinção entre as nomenclaturas, descrevendo ambos como acontecimento, impossível de ser evitado e que causa prejuízos.

A partir dessa análise, a questão da responsabilidade civil do Estado por força maior ou caso fortuito deve ser analisado considerando se cabia à Administração Pública providenciar algo em prol do interesse público, caso positivo, ocorrendo algo imprevisível, com consequente dano a terceiro, que poderia ser evitado ou amenizado pela ação estatal, a responsabilidade pelo dano recai sobre ela. Ademais, o Supremo Tribunal Federal está julgando o Tema de Repercussão Geral n. 1.237 (referente a Recurso Extraordinário com Agravo n. 1.385.315), que concerne em decidir sobre a “Responsabilidade estatal por morte de vítima de disparo de arma de fogo durante operações policiais ou militares em comunidade, em razão da perícia que determina a origem do disparo ser inconclusiva”.10

Existem posições antagônicas, a primeira corrente sustenta, em síntese, que diante da inconclusão da origem do disparo e, consequentemente, da sua autoria, caso o Estado seja responsabilizado, a Teoria do Risco Administrativo não estaria sendo aplicada, uma vez que não haveria a necessidade de se demonstrar o nexo de causalidade entre o dano causado a terceiro e o ato do agente público, bem como estaria atribuindo ao Estado a qualidade de grande garantidor, o que se aproximaria da Teoria do Risco Integral. Sob essa perspectiva, julgado do TJ/RJ:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. RESPONSABILIDADE CIVIL. AUTOR ATINGIDO POR “BALA PERDIDA”. INEXISTÊNCIA NOS AUTOS DE PROVA CABAL NO SENTIDO DE IMPOR RESPONSABILIDADE AO RÉU.A responsabilidade do Estado, ainda que objetiva, em razão do disposto no artigo 37, §6°, da Carta Magna, exige a comprovação do nexo de causalidade entre a ação ou a omissão atribuída a seus agentes e o dano, não podendo ele ser responsabilizado por “bala perdida” que atingiu ao autor quando não trazido aos autos elementos probatórios que a tanto conduzam. Inexistindo nos autos qualquer prova técnica, ou testemunhal, que comprove que o projétil de arma de fogo que causou o ferimento sofrido pelo autor tenha partido de armas utilizadas por policiais, não há como se imputar ao réu a responsabilidade pelo dano causado. Aquele que pretender indenização do Poder Público em razão da ação de seus agentes deve trazer provas aos autos capazes de evidenciar o nexo de causalidade entre a ação e o dano causado. Não o fazendo, impõe-se a rejeição da pretensão. Sentença de improcedência que não merece reforma. Artigo 557, caput do CPC. RECURSO A QUE SE NEGA SEGUIMENTO.11

A segunda corrente defende que o Estado é responsável civilmente quando não se sabe a origem do disparo durante operações policiais em áreas sujeitas a frequentes confrontos armados e/ou a violência, tendo em vista que que cabe a ele promover a segurança pública, conforme o art. 144, caput, da CRFB/88.12 Esses locais são caracterizados pela existência de violência e alto grau de periculosidade, evidenciando falha estatal em preservar a ordem pública. Assim, cautelas e precauções devem ser tomadas nas operações policias nessas regiões, a fim de que a população não seja exposta a perigos e/ou sofra prejuízos.

Nesse viés, o TJ/RJ discorreu acerca da responsabilidade do Estado diante de “balas perdidas”:

Responsabilidade civil do Estado. “Bala perdida”. Ferimento causado a transeunte em tiroteio provocado por terceiros não identificados.  O Estado não se responsabiliza por esta criminosa falta de segurança, escudado por um verdadeiro nonsense teórico-jurídico, como se os projéteis que cruzam a cidade viessem do céu. Além disso, a tese tem servido como efetivo estímulo para que a Administração permaneça se “omitindo genericamente”, até porque aos eventos de balas perdidas tem-se dado o mesmo tratamento jurídico dispensado ao dano causado pelo chamado “Act of God”. A vetusta doutrina da responsabilidade subjetiva por atos omissivos da Administração Pública não tem mais lógica ou razão de ser em face do abandono em que se encontra a população da cidade do Rio de Janeiro. Ainda que se concordasse com o afastamento da responsabilidade objetiva, nestes casos, seria possível, sem muito esforço, verificar que no conceito de culpa “stricto sensu” cabe a manifesta inação do Estado e sua incapacidade de prover um mínimo de segurança para a população, sendo intuitivo o nexo causal. Não se trata, bem de ver, de episódios esporádicos ou de fortuitos. Tais eventos já fazem parte do dia-a-dia dos moradores da cidade. Pessoas são agredidas e mortas dentro de suas próprias casas. Autoridades são roubadas em vias expressas sob a mira de armamentos de guerra. Dizer que o Estado não é responsável equivale, na prática, a atribuir culpa à vítima. O dano sofrido é a sanção. Recurso provido por maioria. Vencida a Des. Letícia Sardas.13

Diante do exposto, fica evidente que cabe ao Estado garantir a segurança da população, devendo os policiais presar pela ordem e interesse público, sendo de responsabilidade estatal a reparação dos danos causados a terceiros por seus agentes, quando não há excludente por culpa exclusiva da vítima, por fato de terceiro ou por caso fortuito ou força maior. Outrossim, o Poder Público deve implementar medidas de segurança mais efetivas, por exemplo, por meio de maior infraestrutura na qualificação e treinamento das forças policiais, a fim de se evitar ou amenizar os prejuízos causados em decorrência de qualquer ato ou operação.

 

Referências

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1. Conselho Nacional de Justiça. ARAÚJO, Valter Shuenquener de; LANFREDI, Luis Geraldo Santana; MACHADO, Isabel Penido de Campos (Coord.). Supervisão, no âmbito do Poder Judiciário, de sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Favela Nova Brasília vs. Brasil: sumário executivo. Brasília: CNJ, 2021, passim.

2. RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 328.

3. BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

4. BRASIL. LEI N. 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Presidência da República, 2002.

5. BRASIL. DECRETO-LEI N. 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Código Penal. Rio de Janeiro, RJ: Presidência da República, 1940.

6. RIZZARDO, ref. 2, p. 64.

7. MATO GROSSO DO SUL. Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul. Apelação Cível n. 0800547-41.2014.8.12.0055. 1ª Câmara Cível. Rel:  Desembargador Divoncir Schreiner Maran. Julgamento em 02 de fevereiro de 2020.

8. BRASIL, 2002, passim.

9. MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Editora Borsoi, vol. XXIII, ed. 3, 1971, p. 79.

10. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema 1237. Relator: Min. Edson Fachin.

11. RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Apelação Cível n. 0012346-05.2005.8.19.0001. 14ª Câmara Cível. Rel: Desembargador Ismenio Pereira de Castro. Julgamento em 28 de setembro de 2009.

12. BRASIL, 1998, loc. cit..

13. RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Apelação Cível n. 0208741-96.2007.8.19.0001. 20ª Câmara Cível. Rel: Desembargador Marco Antonio Ibrahim. Julgamento em 05 de maio de 2009.

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