Rio Atrato como sujeito de direitos: a jurisprudência colombiana fundada no Ecocentrismo

Rio Atrato como sujeito de direitos: a jurisprudência colombiana fundada no Ecocentrismo

Rio Atrato.

Diferentemente do que ocorre com as neoconstituições andinas, em especial a equatoriana e a boliviana, conforme já abordado em outra matéria, a Constituição Política da Colômbia não menciona explicitamente em seu texto os direitos da Natureza. Não obstante, o país conta com uma decisão paradigmática fundada no movimento ecocêntrico e com caráter eminentemente decolonial, e que suscita uma renovação do discurso jurídico e ambiental local e que ecoa no continente latino-americano.

Para contextualizar e iniciar a exposição sobre o caso em exame, necessário esclarecer que o Rio Atrato é um vultuoso curso d’água colombiano, cuja bacia possui aproximadamente quarenta mil quilômetros quadrados, sendo considerado o mais caudaloso do país e o terceiro mais navegável do território. Está albergado em uma região conhecida como Chocó Biogeográfico, no Departamento de Chocó, um dos territórios mais ricos do país em termos de diversidade natural, étnica e cultural. Nasce na Cordilheira dos Andes, em sua parte ocidental, e desemboca no Golfo de Urabá, no mar do Caribe, recebendo mais de quinze rios em seu leito e possuindo trezentas quebradas.

Além das impressionantes características naturais destacadas, a bacia do Rio Atrato é também rica em ouro e madeira e é considerada uma das regiões mais férteis para a agricultura no país. O curso d’água também integra em sua extensão múltiplas comunidades étnicas (afrocolombianas e indígenas), cujas formas tradicionais de vida e sustento se dão através da mineração artesanal, agricultura, caça e a pesca, que asseguram, por séculos, o abastecimento total das necessidades alimentares.1

Ocorre que a região de Chocó também é palco de diversos conflitos territoriais, inclusive de calamidades públicas relacionada a perdas de vida de menores de idade indígenas e afrodescendentes por intoxicação, e a partir de estudos sociológicos, concluiu-se que basicamente todos esses conflitos ocorridos estão ligados ao tratamento dado ao rio e sua forma de ocupação. Infelizmente, o mesmo se encontra hoje em um estado de degradação avançado, em razão de três fatores principais: retirada indiscriminada da cobertura vegetal; liberação de rejeitos de mineração no rio por mineradoras que se instalaram próximas às suas margens, causando redução das espécies e comprometendo a saúde das comunidades que dependem do curso d’água, muitas vezes a partir do extração ilegal de minérios; escassez de mecanismos e investimentos no tratamento dos resíduos sólidos, que desembocam no rio.

Diante dessa situação, diversas entidades da sociedade civil começaram a se reunir para construir coletivamente uma ação de tutela com a finalidade de preservação do rio Atrato, fundamentando-se nos direitos fundamentais (e não meramente coletivos) do rio, das comunidades acionantes ao gozo de meio ambiente sadio, equilíbrio ambiental, à água, salubridade pública, dentre outros direitos, e com vistas à iminente ameaça à sobrevivência da população humana, do ecossistema pluvial e o desenvolvimento da agricultura, elementos indispensáveis para a cultura das comunidades existentes na região.

Ajuizada a ação, a mesma tramitou nas instâncias iniciais sem obter êxito, e o julgamento por sua improcedência se deu em razão do entendimento de que a mesma pretendia defender interesses coletivos e não fundamentais, motivo pela qual a via adequada para pleitear os direitos apontados na demanda seria a ação popular.

Ato contínuo, foi somente no âmbito da Corte Constitucional, no ano de 2016, após a solicitação de informações a diversas instituições acerca das situações indicadas na petição e a realização de laudos e visitas in locu, decidiu-se o mérito da demanda, com julgamento pela procedência da ação. E com essa apreciação, a Corte Constitucional colombiana reconheceu não somente o direito ao ambiente saudável e a obrigação de saneamento das omissões estatais para asseguramento dos direitos fundamentais das comunidades étnicas afetadas, como também reconheceu direitos do rio em si mesmo, considerando seu valor intrínseco e, portanto, conferindo- lhe a condição de sujeito de direitos.2

Concentrou-se o olhar, nessa decisão, à reconfiguração da relação do ser-humano com a natureza a partir de um enfoque dos direitos bioculturais, defendendo-se a existência de profunda unidade e interdependência entre a natureza e espécie humana. A sentença configurou-se ainda como o primeiro leading case na América Latina em que se reconheceu um ente natural como sujeito de direitos, havendo atribuição de personalidade jurídica a um componente da natureza, a partir de uma visão não antropocêntrica. Natureza e cultura, no caso em análise, foram tidos como intimamente ligados, e constatou-se que algumas comunidades possuem esse vínculo ainda mais consolidado. Assim, preservar a comunidade significaria, também, preservar a natureza que com ela se harmoniza.

Há claramente, nessa decisão, uma contribuição ao romprimento com a racionalidade moderna e colonial, com reconhecimento do caráter polissistêmico do universo, e complementando-se ao já tratado neoconstitucionalismo andino. Um novo paradigma que pode reverberar para além do caso Rio Atrato, e até mesmo do território colombiano.

Curiosamente, e fatidicamente, o debate sobre a tutela do Rio Atrato na Corte Constitucional colombiana coincidiu, antes de sua finalização, com um dos maiores crimes ambientais já presenciados no Brasil: o rompimento da barragem de Fundão, localizada no município de Mariana/MG, pertencente às empresas Samarco, Vale e PHB, que provocou o despejo de aproximadamente sessenta milhões de metros cúbicos de lama de minério no Rio Doce, destruindo esse curso d’água, diversos assentamentos humanos e alastrando-se para além do território mineiro. Houve impacto na vida de mais de seis milhões de pessoas, e a poluição marinha perdura até os dias atuais.

Vemos então que a morte ou degradação acentuada de um rio, é, também, “a possibilidade da morte de todos os membros da rede”.3 E sendo a comunidade indígena o membro da rede de maior experiência histórica, sua relação e coesão com o meio ambiente deve ser ainda mais tida em consideração pelos atores políticos no poder.

Decisões como a da Corte Constitucional colombiana, que reconhecem os Direitos da Natureza, são, portanto, imprescindíveis para o avanço da decolonização, resgate da coesão entre os componentes do planeta, reconhecimento de outra forma de ver o mundo e de garantir a própria sobrevivência humana na Terra. Trata-se, por fim, de um verdadeiro aporte à evolução necessária do direito ambiental.

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Marcela Gregório Barreto

 

Referências

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1. CÂMARA, Ana Stela; FERNANDES, Márcia Maria. O reconhecimento jurídico do Rio Atrato como Sujeito de Direitos: reflexões sobre a mudança no paradigma nas relações entre o ser humano e a natureza. Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas. Brasília, v. 12, n. 1, 2018, p. 228.

2. CÂMARA, Ana Stela; FERNANDES, Márcia Maria. O reconhecimento jurídico do Rio Atrato como Sujeito de Direitos: reflexões sobre a mudança no paradigma nas relações entre o ser humano e a natureza. Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas. Brasília, v. 12, n. 1, 2018, p. 229.

3. RIOS, Mariza. Tudo está interligado: o rio, a comunidade e a terra. Em: LACERDA, Luiz Felipe (ORG.). Direitos da natureza: marcos para a construção de uma teoria geral. São Leopoldo: Casa Leiria, 2020, p. 119.

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