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Se não somos quem poderíamos ser… Quem somos?

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E eu, Geovanna, existo? Essa é a pergunta determinante. Primeiro, porque demonstra, em uma certa medida, que me reconheço. Me apresento enquanto Eu, enquanto ser, que está aí e vive. Segundo, porque mostra a faceta do Eu enquanto subjetividade, que possui aspirações e inspirações. Que constrói a si mesmo enquanto categoria fundamentante da alma e do seu próprio pensamento. O Eu. Eu sou. Eu estou.

Um Eu, porém, que se interroga sobre a sua própria existência (“Eu existo?”). Isso que, de certa forma, chega a ser deveras contraditório. Oras, se já me afirmo como Eu, já deveria assim brandar com todas as forças a minha existência.

Eu! Eu, eu, eu.

Mas esse Eu (que sei, em minha intimidade, existir), não me é suficiente. Não é, pois o grande algoz deste corpo preto que vos fala [assim como de tantos outros] é a vaga sensação de que reconhecer-se, a si mesmo, enquanto sujeito, nunca será o bastante para materializar a sua existência de fato.

Antes, porém, de falar sobre pretitudes (e assustar você, leitora), vamos falar sobre filosofia. Ora, o que me aflige é nada mais nada menos que uma questão basilar à filosofia moderna: o reconhecer. Se existo para o outro e o Outro existe para mim, então existimos? Percebo a mim e ao Outro e, assim, me revelo existente?

Isso, caras e caros, não é um questionamento de qualquer ordem. Immanuel Kant, em suas investigações sobre a construção da realidade enquanto tal, já nos trouxe as limitações do conhecimento daquilo que a nós se apresenta, uma vez que a nossa sensibilidade e o nosso entendimento (categorias a priori do conhecimento) limitam o extrínseco. Incapazes de conhecermos tudo, conhecemos o aquém, o limite daquilo que nos é viável conhecer. Somos, assim, sujeitos transcendentais, igualmente limitados, mas universalmente capazes de saber o que é bom e perpétuo.

Hegel, por sua vez, percebe as limitações (não ironicamente) do criticismo. Vai, por outras vias, mostrar as falseabilidades do conhecimento. E com razão! Pois aquilo que penso e idealizo certamente será negado por aquilo que a mim se apresenta como real. O Outro, em sua realidade pungente, quebra minhas ideias e conceitos, latentes como falsas concepções de mundo. Em busca da elevação do Espírito, a ideia se eleva com sua negação e, sucessivamente, se (re)afirma várias e várias vezes. A dialética não para – e o (re)conhecimento do Outro, por consequência, também não.

Heidegger, porém, é aquele que ultrapassa as barreiras do ser. O ontológico e o ôntico se desencontram, mostrando quais as categorias que limitam a potencialidade do ser. A verdade do ser é que este nunca está isolado. Não é ser sozinho. Seria pressuposto primordial entender que o Ser-aí vive situacionalmente, em um determinado tempo histórico e espaço, sempre com sociabilidade. Portanto, o Outro não é uma categoria isolada, mas aquilo que nunca chega a se diferenciar de mim.

O que é interessante de se observar, porém, é que o ser, como possibilidade, ao deparar-se com as manifestações da factualidade (por ver-se, inevitavelmente, em contato com o mundo fático), passa a se deparar com uma dura realidade: o ser, enquanto livre, não pode deixar de considerar, em qualquer momento de sua vivência, que a possibilidade de ser ou não-ser é algo que lhe vem e lhe é constante. Ou seja, mesmo que o ser seja um “estar sendo do ente”, que lhe introduz infinitas perspectivas de ser, o ente, ao ser tocado pelo mundo que mostra-se e apresenta-se, recebe do seu ser um imperativo – “ser ou não-ser”. Assim, é levado a experienciar uma particularidade existencial (ser humano), onde o sujeito é aprisionado e a sua liberdade irrefreável toma ciência, pela primeira vez, da limitação. É o sujeito ontológico, então, que reduz-se a uma dimensão ôntica.

Sem sombra de dúvidas, essa limitação do sujeito, quando falamos de pessoas pretas, é ainda mais marcante e violenta. O negro ontológico, como aquele que possui salvaguarda das suas possibilidades de ser, é castrado e reduzido ao ôntico – à raça. À mulher preta, então, o que lhe resta é viver com aquilo que lhe é oferecido: a raça, o gênero e mais alguma coisinha que a patroa faz a “gentileza” de dar. Nesse entendimento, já nos agracia Sueli Carneiro, brilhantemente, com sua escrita: “é nossa compreensão que, ao fazer do ôntico o ontológico do Outro, o Eu hegemônico rebaixa o estatuto do ser desse Outro”. Somos, portanto, rebaixadas, pisadas. Cuspidas, quando não mortas – ou fadadas já à severinidade.

Logo, ao tomar a raça como um elemento fundante desta nossa sociedade brasileira (e aqui, tomando também a sexualização da mulher preta, como infere bravamente Lélia Gonzalez), temos que a negação da humanidade de pessoas pretas é o que construiu aquilo que entendemos como as condições para o exercício do poder branco e as condições de afirmação desse poder como hegemônico. Falamos aqui, pois, da branquitude. Essa mesma que, em seu pacto narcísico, acorda inconscientemente entre seus pares que é o senhorio dos privilégios de ser uma raça que, se não fosse a negrada fazendo pirraça, nunca se entenderia como parte da racialização. Portanto, temos já construído o quadro do negro brasileiro: aquele cujo não-ser afirma o ser, a ontologicidade, o potencial do vir-a-ser, do branco.

Questiono agora se parece tão absurdo e irônico assim a empregada doméstica negra, que um dia, ao olhar-se no espelho da casa da sua patroa, questionar-se sobre a sua própria existência. Ela, aos olhos dos seus patrões, ontologicamente não existe. Isso pois a sua condição ôntica reverbera na elevação da condição de ser dos seus patrões, que ao terem suas condições materiais de vida seguradas com tranquilidade, poderão se aventurar, sem quaisquer angústias, no mar de possibilidades da vida.

Por isso, e por tantas outras questões provenientes, a questão do sujeito de direito ao povo preto parece tão irrisória. Não preciso nem dizer que foi uma categoria formada e criada sobre a égide do pacto narcísico da branquitude, para fins de sua autopreservação. Não coincidente, nos momentos históricos onde o pacto narcísico da branquitude encontrou sua hecatombe, é quando o sujeito de direito é elevado como senhor dos senhores. O único cujo qual reviveria o resquício de civilidade que ainda nos resta.

Mas jamais nos esqueçamos das origens das nossas raízes ocidentais. Essas mesmas que insistem em nos dizer que a nossa libertação sempre esteve nas mãos dos nossos heróis brancos. Dos heróis-senhores. Heróis donos da história (e, sempre, das propriedades). Jamais esqueçamos que esse próprio sujeito de direito, uma figura heróica jurídica, nos domina e nos faz acreditar que existimos para a singularidade do direito, mas não exita em calar-se quando escuta, com normalidade, outro corpo negro caindo morto no chão. Não esquecer para lembrarmos, pois um povo com memória é um povo que luta.

Portanto, que sujeito de direito é esse? Ele existe? A partir da negação do negro, poderá, agora, protegê-lo? Muito pelo contrário, esse movimento me parece realizar, a modo de Frantz Fanon, aquele feito pela mãe colonial “gentil e benevolente”, que tenta impedir o suicídio do seu filho colonial profundamente infeliz com sua realidade ontológica.

Mas afinal, eu existo, portanto? Porque, no fim das contas, essa continuará sendo a pergunta determinante. Certamente, o que todas nós, pretinhas e pretinhos, faremos quando tomarmos rumo à acreditar que não existimos, será, no mínimo, estonteante. Não vejo a hora desse dia chegar. Mas até lá, enquanto isso ainda não acontece, continuaremos a acreditar nos velhos fantasmas que nos assombram, na fé que um dia sumam e possamos, finalmente, materializar todas as potencialidades pretas que nos insistem em reprimir.

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