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Sobre a lógica binária na gestão dos corpos e identidades: ou damos um passo à frente ou muita gente morrerá em nome da lei

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Quem veio antes: o sexo ou o gênero? O corpo ou a linguagem? A natureza ou a cultura? O homem ou a mulher? A feminilidade ou a masculinidade? Estas, são perguntas para as quais, a meu ver, não há e não haverá uma única resposta certa, especialmente se você se filia a determinada corrente ou pensamento científico-filosófico. Mas, manter uma constante dúvida e reflexão crítica sobre elas, é necessário, para que possibilidades antes impensáveis sobre a nossa existência, deixem de habitar um lugar metafísico e encontrem uma materialidade dentro de uma vida vivível, no sentido butleriano do termo. Seria como se a zoé desse lugar à bio, ou melhor, conferisse sentido à esta última, fazendo uso da teoria de Agamben. Um por-vir passa a ser um devir, pensando com Jacques Derrida.

E como fazer esse exercício, de maneira crítica, propositada e interessada, se nos encontramos em uma sociedade epistemológica e ontologicamente ocidentalizada? Convenceram-nos de que o discurso científico é neutro; que o direito é sinônimo de justiça; que a lei deve ser cumprida, pois ela representa os interesses da maioria, em um contexto de uma sociedade democrática; que o Poder Judiciário atua com total isenção; que a medicina tem o poder de dizer quem e o que somos, aliada ao poder fundante conferido à norma jurídica; que somos, universalmente, seres binários e complementares: o que fazer diante de uma violência estruturante e estruturada que se baseia em discursos que nos conformam e imobilizam?

Antes de tecer qualquer comentário acerca das perguntas feitas, já adianto: não me proponho e nem pretendo apresentar respostas. Primeiro, porque me faltaria embasamento teórico-técnico-científico para tanto; segundo, porque o simples ato de tentar conferir soluções às questões acima trazidas, soaria como uma traição ao que me proponho a fazer enquanto estudante e pesquisador, que é trazer e ressaltar as dúvidas. A dúvida subverte, desestabiliza, e é capaz de produzir outras formas de pensar e de nos manter próximos a uma certa humanidade não universal, plural, multicultural.

Por isso, entendo que, buscar compreender o sentido fundante, regulamentador, estabilizador e interessado dos discursos que docilizam a nossa existência, é um primeiro passo necessário para qualquer mudança do status quo do humano individual, ocidentalizado e social. O segundo passo, sob a minha perspectiva, é buscar compreender o momento histórico-local da origem de tais discursos, bem como a perspectiva política socializadora neles contidos. Em seguida, cabe-nos buscar pelas fissuras que toda e qualquer estrutura apresenta. Inclusive, como uma condição sine qua non, é a existência da estrutura o que admite a sua fratura, pois não há mecanismos sem falhas; e é nestas falhas ou fissuras que se encontram as possibilidades de se escapar à norma e aos discursos que (tentam) nos moldar a qualquer custo – nem que este custo valha a vida de milhares de pessoas.

Fazer uso dessas fissuras estruturais como forma ou mecanismo para se autocriar ou para reclamar, individual ou coletivamente, o direito a gozar de uma bío e a escapar de uma vida nua, é o que, por exemplo, Michel Foucault chama de resistência ao poder; questões, inclusive, interligadas, afinal, como aduz o filósofo: onde há poder, há resistência; e uma resistência que é dinâmica, nunca estática. Resistência esta que, no que me propus a discorrer e problematizar, se dá pelo corpo e pelo questionamento aos discursos normalizadores e usurpadores do gozo de uma subjetividade sem sujeição ou de um assujeitamento com agência. Mas, aqui, sou levado a um questionamento final, pelo menos por ora: há como criar e gozar de uma plena consciência de si, sem sujeitar-se a nada e nem a ninguém? Há como viver uma vida boa, para além do sistema normativo-médico-social-político binário que governa corpos, mentes, desejos e identidades, sem o assujeitamento? A agência, seja ela coletiva ou individual, é passível de ser mobilizada, na mesma intensidade e força, por todos os humanos que compõem uma determinada sociedade?

A título de reflexão, proponho que pensemos nos corpos intersexuais. Histórica e contextualmente, já foram classificados de seres místicos e fabulosos a monstruosidades não humanas que requeriam o imediato expurgo ou a necessária identificação com uma das duas únicas possibilidades de se viver em sociedade, ou sendo um homem ou sendo uma mulher. Estas últimas imposições, surgidas em especial no contexto dos séculos XVIII e XIX, buscaram, em realidade, reafirmar a almejada fidelidade e veracidade dos discursos que se criaram acerca do corpo biológico, da formação familiar, do dever de procriação entre seres cisheterossexuais binários e complementares.

O fato de se matar ou de mutilar alguém, por nascer com genitálias ambíguas e/ou dúbias, ou com um sistema de gônadas ou de produção de hormônios não cientificamente normativo (anormais, de acordo com o aparato médico-jurídico discursivo), que afronte o chamado sistema de sexo verdadeiro, já denota que o discurso, até então, contado pela ciência, sobre sexo e identidades sexuais, é falho ou falso. Eu prefiro dizer que é falso, porque é um discurso interessado em manter a ordem moral liberal cisheteronormativa. Como bem salienta Margareth A. McLaren, “a questão epistemológica de um sexo verdadeiro está inextrincavelmente ligada a questões morais e sociopolíticas de sexualidade e identidade sexual. (…) O interesse médico e científico de considerar o sexo como inequívoco tem um disfarce e uma agenda política.  (…) As categorias normativas de gênero são dicotômicas: o que uma mulher é o homem não é, e vice-versa. Há pouco ou nenhum espaço para a ambiguidade de gênero”.1

A demanda por um sexo verdadeiro, em especial no contexto do século XIX, tem como base o manejo de conceitos empíricos no interior de uma categoria metafísica, estereotipada e idealizada para o cumprimento de seus próprios fins; fins de abjeção, normalização, universalização e de manutenção do liberalismo. Quantas vidas e existências precisarão, ainda, serem ceifadas ou mutiladas, em prol da manutenção de uma delirante ordem social?

Até quando aceitaremos a manutenção da vigência, por exemplo, da Resolução nº 1664/2003, emitida pelo Conselho Federal de Medicina (2003),2 que trata sobre pessoas intersexuais e propõe, entre outras medidas, assinalar a urgência médica e social à criança acometida por essa condição, com tratamento em tempo hábil? Por meio desta Resolução, decidiu-se que, quando do nascimento de uma criança intersexo, deve ser assegurada ao paciente uma investigação precoce, para que seja possível, em tempo hábil, realizar o tratamento e definir o gênero, sob o argumento da necessidade da realização de cirurgia, como meio de proteção à pessoa intersexo, para evitar a estigmatização diante de uma ‘anatomia atípica’, sem que este ser humano tenha sequer se desenvolvido e adquirido qualquer entendimento sobre si.

Sobre isso, volto a perguntar e a provocar: até quando o binarismo regulatório continuará matando e mutilando seres humanos em nome da lei?

 

Referências

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1. McLAREN, Margaret A. Foucault, feminismo e subjetividade. São Paulo: Intermeios, 2016, p.172-173.

2. Disponível em: site. Acesso em: 20 jul. 2023.

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