O bem de família é uma figura jurídica do Direito Civil que visa proteger o patrimônio mínimo necessário à moradia da entidade familiar, resguardando-o contra dívidas e execuções. É um instituto que possui previsão legal tanto na Lei nº 8.009/1990 quanto no Código Civil de 2002, e é classificado doutrinariamente em duas espécies: bem de família legal e bem de família voluntário.
O bem de família é um instituto jurídico de grande relevância no ordenamento civil brasileiro, criado com a finalidade de proteger o núcleo essencial da vida familiar: a moradia. Sua principal característica é a impenhorabilidade do imóvel residencial, impedindo que esse bem seja alcançado por dívidas contraídas pelos membros da família, salvo em hipóteses excepcionais previstas em lei. Ao conferir essa proteção, o direito busca garantir a dignidade da pessoa humana e a estabilidade do ambiente doméstico, valores fundamentais no Estado Democrático de Direito.
A legislação brasileira contempla duas modalidades de bem de família: o legal e o voluntário. O bem de família legal está regulamentado pela Lei nº 8.009/1990 e se aplica automaticamente ao imóvel residencial do casal, ou da entidade familiar, independentemente de qualquer ato formal. Basta que o imóvel sirva de moradia da família para que seja protegido contra penhora por dívidas civis, comerciais, fiscais ou de qualquer outra natureza. Essa proteção é ampla, mas não absoluta: a própria lei estabelece exceções, como nos casos de execução por dívida de pensão alimentícia, financiamento do próprio imóvel ou encargos tributários do bem.
Já o bem de família voluntário encontra-se disciplinado nos artigos 1.711 a 1.722 do Código Civil e depende da vontade do instituidor, que deve formalizar o ato por meio de escritura pública e registrá-lo no Cartório de Registro de Imóveis. Diferente do legal, o bem de família voluntário pode recair sobre qualquer imóvel, urbano ou rural, desde que respeitado o limite de um terço do patrimônio líquido da pessoa instituidora. Seu objetivo, portanto, é mais amplo, permitindo que alguém destine determinado patrimônio à proteção familiar, mesmo que não se trate da residência principal.
O bem de família representa mais do que uma simples restrição à responsabilidade patrimonial; ele é uma expressão concreta de valores constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, a proteção à moradia e a prioridade da família na estrutura social. Ao estabelecer limites à atuação dos credores e ao conferir segurança jurídica à residência familiar, o ordenamento jurídico brasileiro promove não apenas justiça patrimonial, mas também proteção à convivência familiar e à paz no âmbito doméstico.
Embora o bem de família seja, em regra, impenhorável, o ordenamento jurídico brasileiro estabelece exceções claras e taxativas a essa proteção, permitindo que o imóvel destinado à residência da entidade familiar seja objeto de penhora em determinadas hipóteses. Tais exceções estão previstas principalmente no artigo 3º da Lei nº 8.009/1990, que regula o bem de família legal, e decorrem da necessidade de harmonizar a proteção do domicílio com outros interesses igualmente relevantes, como o cumprimento de obrigações alimentares ou o pagamento de dívidas originadas do próprio imóvel.
A primeira e mais relevante exceção diz respeito às obrigações alimentares. O imóvel residencial pode ser penhorado para garantir o pagamento de pensão alimentícia, seja ela decorrente de vínculo familiar direto — como pensão a filhos ou ex-cônjuges — ou mesmo de obrigações alimentares oriundas de solidariedade familiar mais ampla. A jurisprudência entende que, nesse caso, o direito à moradia cede diante da necessidade alimentar, que também é expressão da dignidade humana.
Outra exceção ocorre quando a dívida é relativa ao próprio imóvel que se pretende proteger. É o caso de dívidas contraídas para a aquisição do imóvel (como em financiamentos hipotecários) ou para o pagamento de encargos condominiais e tributos que sobre ele recaem. Nessas hipóteses, a impenhorabilidade não se aplica, pois o inadimplemento compromete a própria manutenção da moradia e prejudica interesses coletivos, como o equilíbrio financeiro de um condomínio ou a arrecadação tributária municipal.
Também se admite a penhora do bem de família quando ele é objeto de fiança em contrato de locação comercial. O Supremo Tribunal Federal, por meio da Súmula 549 do STJ, consolidou o entendimento de que o imóvel residencial do fiador pode ser penhorado nesse tipo de contrato, mesmo que seja o único bem da família. Essa decisão tem sido alvo de críticas na doutrina, por flexibilizar demasiadamente a proteção da moradia em nome da segurança das relações comerciais.
Adicionalmente, a lei prevê a possibilidade de penhora quando o imóvel é utilizado como garantia real, por meio de hipoteca voluntária, ou em casos de execução de sentença penal condenatória, quando o imóvel estiver vinculado a práticas criminosas que envolvam perdas patrimoniais. Também não se aplica a impenhorabilidade se o imóvel estiver desocupado e for considerado como de luxo ou, ainda, se estiver sendo utilizado para atividades comerciais que descaracterizem sua destinação como moradia da entidade familiar.
Portanto, as exceções à impenhorabilidade do bem de família são justificadas por valores igualmente protegidos pelo ordenamento jurídico, como a efetividade das decisões judiciais, a função social da propriedade, o cumprimento de obrigações essenciais e o combate a fraudes. Ainda que a regra geral seja a proteção da residência familiar, o sistema jurídico admite sua relativização sempre que houver razões suficientes para tanto, de forma expressa e criteriosa. A aplicação dessas exceções, contudo, exige interpretação restritiva e prudente, para que não se esvazie a finalidade social do instituto.
A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar o Tema 1.261 sob o rito dos recursos repetitivos, estabeleceu importantes diretrizes sobre a penhorabilidade do bem de família, reafirmando que essa proteção, embora assegure o direito fundamental à moradia, não é absoluta. 1 A primeira tese fixada delimita que a exceção à impenhorabilidade — prevista no artigo 3º, inciso V, da Lei 8.009/1990 — aplica-se apenas quando a dívida garantida por hipoteca tiver sido contraída em benefício direto da entidade familiar.
A segunda tese trata da distribuição do ônus da prova: se o imóvel foi dado em garantia por um dos sócios de empresa, presume-se sua impenhorabilidade, cabendo ao credor provar que a dívida beneficiou a família. Contudo, se os proprietários do imóvel são os únicos sócios da empresa devedora, presume-se a penhorabilidade, incumbindo aos devedores demonstrar que não houve proveito familiar.
O relator, ministro Antonio Carlos Ferreira, destacou que a proteção legal ao bem de família visa resguardar a moradia do grupo familiar, mas não pode ser utilizada de forma contraditória ou abusiva pelo devedor. A oferta voluntária do imóvel como garantia impõe limites à invocação posterior da impenhorabilidade, especialmente quando tal conduta contraria os princípios da boa-fé e da segurança jurídica. Assim, a jurisprudência busca equilibrar o direito à moradia com a necessidade de garantir a eficácia dos negócios jurídicos pactuados de forma legítima.
Em conclusão, o bem de família representa uma conquista relevante no contexto do Direito Civil brasileiro, ao assegurar proteção à residência da entidade familiar frente a eventuais constrições patrimoniais. Fundado em valores constitucionais como a dignidade da pessoa humana e a proteção à moradia, o instituto reforça o papel central da família na ordem jurídica. Todavia, a proteção conferida não é absoluta. O ordenamento jurídico, com base em princípios como a boa-fé, a segurança jurídica e o cumprimento de obrigações essenciais, estabelece hipóteses excepcionais e criteriosas em que a penhora do bem de família é admitida. A jurisprudência, especialmente a fixada pelo Superior Tribunal de Justiça no Tema 1.261, evidencia a preocupação em evitar abusos, buscando um ponto de equilíbrio entre a tutela da moradia e a efetividade das relações obrigacionais. Dessa forma, o bem de família permanece como instrumento de proteção social relevante, mas deve ser interpretado à luz dos demais valores e interesses legítimos do ordenamento jurídico.
Referências
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1. Repetitivo fixa tese sobre a exceção à impenhorabilidade do bem de família. Disponível em: site. Acesso em 25.06.2025