Recentemente, vendi meu carro. Com a entrega ao comprador, começou a jornada de buscar uma opção viável para substituí-lo.
Como era de se esperar em um país onde o café e o azeite viraram itens de luxo em razão da inflação decorrente do descontrole de gastos públicos, os preços dos veículos estão em patamares absurdamente elevados.
E não é só isso: deparei-me com uma técnica utilizada por concessionárias para resolver dois problemas de uma só vez, às custas de um único cliente. Mas, antes de explicar a técnica, preciso que você entenda o contexto por trás.
As concessionárias oferecem comprar seu veículo usado por preços muito inferiores ao valor de mercado. Assim, conseguem margem para revendê-los acima do preço de mercado e, consequentemente, mantêm o setor de carros seminovos em atividade para atender os dois públicos: aqueles que querem um carro zero e aqueles que buscam um seminovo.
Por conta dessa desvalorização do seminovo quando comprado pela concessionária, muitas pessoas preferem realizar a venda particular do carro e, apenas depois, procuram um zero quilômetro nas concessionárias.
Foi exatamente o que fiz.
Nesse contexto, para conseguirem adquirir os seminovos e manter a operação funcionando com atendimento a todos os públicos, uma nova estratégia empresarial tem sido adotada pelas concessionárias.
Em grandes plataformas digitais de venda e compra de veículos, as concessionárias têm apresentado anúncios de veículos zero km com preços um pouco mais atrativos que a tabela. Quando o usuário acessa, apenas em uma parte específica do anúncio consta a observação de que aquele preço só é ofertado a quem utilizar como parte do pagamento o seu veículo seminovo.
Aos olhos do direito civil, não há ilegalidade na operação proposta. Poderíamos dizer que há uma permuta, quando o valor do seminovo for preponderante em relação ao valor em espécie, ou um contrato de compra e venda quando preponderar o valor em espécie em comparação ao valor do seminovo.
Já sob a perspectiva do direito do consumidor, a Lei 13.455/2017 também permite ao fornecedor a precificação diferenciada do produto ou serviço a depender do prazo ou do instrumento de pagamento utilizado.
No entanto, um primeiro ponto de atenção na análise do caso é a interpretação teleológica da Lei 13.455/2017. O que frequentemente era objeto de discussão antes da referida lei era a impossibilidade de oferta de produtos ou serviços com desconto para pagamento à vista. O que é compreensível, já que o pagamento por cartão de crédito ou outros meios atrai novos custos ao fornecedor, de modo que o consumidor que pretendia pagar à vista e em dinheiro se via impossibilitado de ter um benefício econômico.
A norma então vigente exigia que o preço fosse único e, portanto, a precificação pautava-se no preço com os custos adicionais e, ao fim, somente o fornecedor era beneficiado quando a compra se dava à vista. A Lei 13.455/2017 trouxe a possibilidade de diferenciação de preço, com a finalidade de beneficiar o consumidor. Ocorre que, no caso concreto, não há qualquer benefício ao potencial comprador do veículo.
Isso porque o comprador que não possui veículo para troca não pode utilizar o valor ofertado ao público. Já o fornecedor-comprador do seminovo é o único beneficiado. Entender pela impossibilidade de fixar preços distintos quando o pagamento é feito, ainda que parcialmente, mediante a entrega de um seminovo, não prejudicaria o fornecedor na venda do veículo zero quilômetro, já que a precificação do seminovo continuaria a ser livremente feita pela concessionária.
A situação fica ainda mais questionável quando se parte para uma análise estrutural da proteção do consumidor.
O Código de Defesa do Consumidor é uma legislação de caráter principiológico e no caso concreto a norma-regra não pode violar a norma-princípio. Ainda que não se entenda que a interpretação teleológica, por si, já impossibilite a prática mencionada das concessionárias, a estrutura da proteção do consumidor contra práticas abusivas também impede essa ferramenta utilizada.
Embora a prática não configure, nos estreitos limites interpretativos, venda casada, pois não há condicionamento da venda de um produto à venda de outro produto ou serviço pelo mesmo fornecedor, a lógica por trás é a mesma. O fornecedor vincula a venda do veículo a determinado preço à compra de outro veículo, mediante preço unilateralmente fixado por si. Isso, por si, já pode ser considerado abusivo.
Caracteriza-se, também, a prática de exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva em favor do fornecedor. Isso porque o fornecedor vincula, em um contrato de adesão, o preço do automóvel novo à existência e interesse do consumidor em vender seu veículo seminovo, por preço estipulado apenas pelo fornecedor (costumeiramente muito abaixo do mercado). Isso, para garantir seu exclusivo interesse em manter todos os públicos atendidos.
Assim, exige-se muito, para apenas cumprir uma oferta pública.
Em um mercado em que existem poucos fornecedores, que ditam o ritmo e a estrutura básica do seu próprio funcionamento, devemos sempre ficar atentos a novas práticas que buscam desequilibrar o sinalagma contratual.