Um novo humanismo recusa da legalidade do terror

Um novo humanismo recusa da legalidade do terror

palestina

O genocídio que se instala na Palestina revela como o desprezo pela humanidade e pelos corpos posicionados como matáveis se torna uma etiqueta política. Esse conflito evidencia como a fronteira entre humanidade e desumanidade é constituída para retroalimentar uma política hegemônica e neocolonial, que considera abjeta e descartável a presença de vidas precarizadas. Esse massacre televisionado, que circula pela tela dos nossos celulares, não só indica quem é o alvo, mas também conforma olhares e percepções para normalizar a desumanidade.

É importante destacar que, no interior das tramas de poder, a categoria humanidade está em constante conflito. Sua constituição depende, entre muitos fatores, das molduras políticas que ampliam ou restringem a possibilidade de um corpo ser reconhecido, protegido e validado. Sendo assim,  as políticas de morte — aquelas comprometidas com o extermínio, como ocorre de modo sistêmico na Palestina — reforçam uma configuração de mundo que, ao se beneficiar da execução daqueles posicionados à distância da humanidade, banaliza a barbárie.

A morte, nesse sentido, se distancia da contingência e se articula como ferramenta de manutenção do poder — um instrumento que desenha enquadramentos de humanidade afinados com a perversidade e com a lógica da exclusão. Trata-se de um maquinário político que hierarquiza vidas, definindo quem deve morrer sem escândalo, sem luto e sem memória. Nessa direção, a barbárie não apenas se normaliza, mas se torna parte fundamental da ordem, ancorando estruturas de dominação que operam sob os efeitos de uma legalidade do terror. É fundamental que sejamos capazes de tensionar nossa percepção, que, por vezes, é conformada por limites e por perspectivas restritivas da própria noção de humanidade. Somos condicionados a compreender que nem todas as vidas são legítimas e, ao mesmo tempo, quando essas mesmas vidas são ceifadas no interior de organizações bélicas e neocoloniais do mundo contemporâneo, não nos enlutamos.

Onde está a revolta e o luto pelas mortes diárias e intencionais das crianças palestinas? Infância, humanidade e vida, por exemplo, são termos negociáveis quando falamos de poder. Essa convenção, atravessada por marcadores discriminatórios, restringe a possibilidade de que qualquer presença que se distancie da norma seja validada.

É por essa razão que devemos caminhar, de forma incansável, na crítica aos valores moralizantes que impedem a ampliação ética da nossa compreensão sobre o que constitui uma vida legítima. A revolta política deve ser uma experiência compartilhada por nós quando nos deparamos com a perversidade que se multiarticula para humilhar sujeitos, precarizar suas vidas e corroer qualquer sinal de democracia, justiça e liberdade.

Destaco, nesse ínterim, que a utilização de instrumentos, técnicas e ideologias hierarquizantes, discriminatórias e letais, revela como a categoria de humanidade pode ser mobilizada como um pressuposto excludente. Mais do que isso, evidencia a urgência de construirmos humanismos que rompam com a herança moderna e colonial de mundo — uma herança que não apenas posiciona grupos, culturas e territórios no campo da inimizade, mas também justifica, em nome do gerenciamento global, simbólica e concretamente, a potência das políticas de morte.

Gaza não é uma novidade, mas a atualização de instrumentos de poder que, da modernidade até aqui, se valem das políticas de execução que tangenciam a diferença cultural, o território e a presença de povos significados à distância de uma humanidade perversa. A designação do outro como alvo — à luz da constituição moderna de mundo, que despe corpos racializados de humanidade — é uma marca fundamental da experiência política contemporânea e deve, num esforço ético global, ser desnaturalizada.

Não é possível que sigamos normalizando a barbárie ou que não questionemos o fracasso dos humanismos modernos e contemporâneos, embebidos do sangue daqueles que foram transformados em sujeitos desprezíveis.

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