O policial que insinua que a mulher foi vítima de estupro porque estava bêbada; O médico que ao atender uma paciente abusada pelo marido argumenta que no casamento não há violação; O advogado da parte contrária que tenta deslegitimar a violência sofrida pela vítima em fatos alheios.
Os três exemplos acima são conhecidos como “violência institucional” e ocorrem quando a própria instituição, por meio de sua estrutura, é responsável pelo constrangimento causado a vítima de um crime que busca ajuda.
A violência institucional ganhou maior visibilidade após o ocorrido no processo envolvendo o empresário André de Camargo Aranha, no julgamento em que era acusado de estupro de vulnerável contra a blogueira Mariana Ferrer, na ocasião seu advogado humilhou e usou as fotos de biquíni publicadas por Mariana para tentar deslegitimar sua denúncia.1
Não é raro que além do trauma inicial a mulher vítima de violência sexual venha a sofrer outros tipos de violência na busca por seus direitos, é o que chamamos de revitimização ou vitimização secundária. Tal expressão está mais ligada à esfera institucional, mas também pode ser relacionada aos comportamentos de quem julga ou discrimina a vítima nas redes sociais, jornais, revistas, conversas entre amigos e outros.
Revitimização ou vitimização secundária é uma expressão que tem se tornado mais recorrente na Justiça brasileira. Imagine ser mulher e precisa registrar um crime sexual de que foi vítima e, na delegacia, o policial pergunta qual roupa você usava na ocasião. Visando proibir tais condutas um grupo de promotores de justiça, psicólogos, professores, delegados, entre outros especialistas, desenvolveu o Estatuto da Vítima. Trata-se de um projeto de lei que prevê que a vítima tenha direito a não repetir depoimento registrado em mídia oral, salvo pedido expresso e fundamentado, proibindo também a formulação de perguntas de caráter ofensivo e vexatório.2
Imprescindível levar em conta que, muitas vezes, já foi duro para a vítima quebrar o silencio e ter confiança para falar sobre a violência que sofreu, razão pela qual constata-se a subnotificação dos casos de crimes sexuais. De acordo com o Atas da Violência em 2018 estima-se que apenas 10% a 15% dos estupros que acontecem no Brasil foram reportados à polícia.3
Julgar, pedir para que a vítima dê o depoimento sobre o acontecido várias vezes, fazer perguntas ofensivas ou vexatórias a ela ou tratá-la sem oferecer apoio adequado são comportamentos que remetem à ideia de tonar a pessoa vítima novamente. É quando ela sofre uma nova violência causada pelo Estado, no papel dos agentes públicos ou por profissionais de saúde que a atendem e questionam as condições em que aconteceu a situação — fazendo com que a vítima revisite o trauma.4
A conduta de culpabilizar a vitima é muitas vezes baseada em preconceitos, e é o que faz da revitimização algo tão sério e que precisa ser combatido dentro dos órgãos oficiais e na própria sociedade. O julgamento leva à revitimização, e esse olhar preconceituoso dificulta ainda mais a cicatrização da dor da vítima.
Foi na tentativa de coibir comportamentos como o do advogado de André, que constrangeu e humilhou Mariana sem intervenção precisa do juiz, que foi proposto o Projeto de Lei n° 1.888/2021. Objetivando zelar pela integridade da vítima o projeto visa alterar o Código de Processo Penal para tornar inadmissível a realização de perguntas ou a juntada de provas que digam respeito ao comportamento sexual da vítima ou de testemunhas, em processos e julgamentos dessa natureza.5 Desse modo, passaria ser proibido, nas audiências judiciais, o uso de linguagem, informações ou material que ofenda a dignidade da vítima ou de testemunhas.
Além disso, “o texto determina que, na investigação de crimes que envolvam violência sexual, o silêncio ou a falta de resistência da vítima não poderão ser deduzidos como consentimento, seja quando este for impossibilitado por ameaça de força ou por incapacidade da pessoa violentada.” 6
A proposta foi apresentada em novembro de 2020 após a repercussão nacional do caso, e em 18 de outubro a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto com a finalidade de coibir a prática de atos que ofendam as vítimas de crimes contra a dignidade sexual.
A proposta também altera a lei sobre crimes de abuso de autoridade e incluindo o crime de violência institucional. Nesse interim o crime compreenderia os atos praticados por agentes públicos que prejudiquem o atendimento à vítima ou à testemunha de violência, incluindo também a omissão, como no caso de Mariana, em que o juiz não impediu o advogado de constranger e humilhar a vítima. O objetivo final do projeto é proteger a mulher de se tornar, mais uma vez, vítima de violência.
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Referências
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1. BRANDALISE, Camila. Para deputada, Lei Mari Ferrer evitará que mulheres sejam revitimizadas. UOL. 2020. Disponível em: https://bit.ly/3wprm7L. Acesso em: 02 nov. 2021.
2. GERALDO, Nathália. Revitimização: o que é e como podemos impedir que vítimas revivam o trauma. UOL. 2020. Disponível em: https://bit.ly/3wbSu9T. Acesso em: 02 nov. 2021.
3. GERALDO, Nathália. Revitimização: o que é e como podemos impedir que vítimas revivam o trauma. UOL. 2020. Disponível em: https://bit.ly/3wbSu9T. Acesso em: 02 nov. 2021.
4. GERALDO, Nathália. Revitimização: o que é e como podemos impedir que vítimas revivam o trauma. UOL. 2020. Disponível em: https://bit.ly/3wbSu9T. Acesso em: 02 nov. 2021.
5. AGÊNCIA SENADO. Projeto impede constrangimento, em processos judiciais, de vítimas de violência sexual. Senado Notícias. 2021. Disponível em: https://bit.ly/3GP03bJ. Acesso em: 02 nov. 2021.
6. AGÊNCIA SENADO. Projeto impede constrangimento, em processos judiciais, de vítimas de violência sexual. Senado Notícias. 2021. Disponível em: https://bit.ly/3GP03bJ. Acesso em: 02 nov. 2021.