Violência patrimonial e partilha de bens no divórcio e dissolução de união estável

Violência patrimonial e partilha de bens no divórcio e dissolução de união estável

Divórcio

A Lei 11.340 de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha) em seu artigo 7º, inciso IV preconiza que a violência patrimonial é aquela entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades (da vítima). Atente-se, a violência patrimonial é violência doméstica e de tal sorte, pode ensejar a imposição de medida protetiva (artigo 19 da Lei Maria da Penha) independentemente de tipificação penal do fato, que pode inclusive inexistir.

Dito isto, passemos ao intrincado contexto da partilha de bens nos processos em que se postula de modo cumulativo ou não, divórcio e reconhecimento/dissolução de união estável.

Rol Madaleno1 , notável jurista que muito se debruça sobre a questão da fraude e simulação incidentes sobre o patrimônio objeto de partilha de bens, já alertou, no que tange à primeira:

 No âmbito do casamento e da união estável, a fraude resultará eficaz sempre que causar por seu intermédio uma redução no acervo comum e por consequência, uma diminuição na meação do cônjuge logrado. Ocorre através da disposição de bens, como consignam os artigos 158 e seguintes do Código Civil, colocando em grau máximo de suspeição atos como transmissão gratuita ou onerosa de bens ou mesmo remissão de dívidas de pessoas insolventes e nesse quadro genérico não há como afastar o cônjuge que em vésperas de separação se movimenta para esvaziar a massa de bens conjugais, ganhando maior evidência se esta movimentação toma corpo depois de ajuizada a separação do casal”.

Fraude e simulação (aquisição de bens em nome de terceiros com recursos do casal, desviados por um dos cônjuges ou companheiros) são apenas algumas das práticas que usualmente são perpetradas para obstar a partilha efetiva do patrimônio familiar e, restam ausentes dúvidas, representam claramente ato ilícito peculiar à violência patrimonial. Mas esta não se esgota no seio da partilha de bens, como dita o artigo 7º, IV da Lei Maria da Penha, albergando inúmeras condutas como a ocultação deliberada de rendimentos para obstar arbitramento escorreito de obrigação alimentar, a supressão intencional de recursos que representam frutos de bens comuns do casal, não entregues à vítima, não pagamento proposital de verba alimentar não obstante condições financeiras favoráveis que propiciam plenamente a quitação da obrigação, dentre outras.

Toda a violência patrimonial sofrida pela vítima do gênero feminino nos processos familiares tem como premissa que franqueia sua verificação a cultura patriarcal, a qual naturaliza tratamentos díspares no que tange a direitos e obrigações entre homens e mulheres. As últimas em muitas oportunidades negam a violência psicológica que experimentam, confiam ilimitadamente em cônjuges e companheiros quanto a administração de patrimônio comum, assinam documentos a pedido daqueles sem atentarem ao respectivo conteúdo, ignoram o patrimônio real compartilhado, etc.

Tampouco procedimentos ilícitos peculiares ao depauperamento intencional do patrimônio partilhável do casal são efetivados de inopino, subitamente. Há, no mais das vezes planejamento, obtenção de orientações por consultores em áreas diferenciadas do conhecimento e mercado, utilização de terceiros, conformação de contratos ideologicamente falsos, dentre outros mecanismos.  E a vítima de violência patrimonial muitas vezes se vê sem recursos financeiros para fazer frente sequer aos dispêndios de processos judiciais para anulação de negócios jurídicos e partilha, comprovação de atos ilegais, sem ignorar sérios entraves à própria subsistência.

Mas quais os instrumentos jurídicos poderiam ser utilizados, já existentes em nosso ordenamento, para oposição à violência patrimonial na partilha? Podemos citar a desconsideração da personalidade jurídica da pessoa jurídica ou física (expedientes que não dispensam a observância dos requisitos legais, nos moldes do artigo 50 e seguintes do Código Civil, sob a redação outorgada pela lei 13.874/2019), pedidos declaratórios de reconhecimento incidental de nulidade absoluta de atos jurídicos, ações anulatórias, de natureza indenitária por indigitado abuso de direito, inclusive em desfavor de terceiros. No âmbito processual, temos a hipotética aplicação de medidas nos termos do artigo 139, IV do CPC, distribuição diversa do ônus probatório (artigo 373, parágrafo primeiro e seguintes do CPC), exemplificativamente. Ainda que assim se efetive, diante da morosidade natural dos procedimentos judiciais, dificuldades probatórias, planejamento cuidadoso das empreitadas fraudulentas com legalidade anunciada e ilusória, forçoso que se reconheça a carência de dispositivos normativos mais eficazes e que imprimam maior celeridade na repressão da violência patrimonial e garantia de direitos à meação das vítimas do gênero feminino.

E, como consequência, há uma maior dificuldade para as vítimas de violência doméstica saírem da situação de violência, quando não são impedidas de se libertarem dessa violência, obrigando-as a retornar ao relacionamento violento. Como consignado, não costumam ter dinheiro para arcar com as custas do processo, ainda que consigam ser atendidas pelas Defensorias Públicas; e há o agravante de não lograrem êxito também em arcar com as necessidades primárias dos filhos (educação, saúde, aluguel da casa, comida). Inclusive, não é incomum que o agressor deixe de pagar alimentos arbitrados judicialmente, mesmo tendo condições financeiras, para forçar a vítima retornar ao relacionamento abusivo, o que também configura violência patrimonial, consoante explanamos.

Assim de suma importância que as vítimas de violência doméstica sejam conscientizadas da existência da violência patrimonial e como ela acontece, e que busquem amparo na Lei Maria da Penha que possibilita medida protetiva para esse tipo de violência, conforme se verifica do Artigo 24:

 Art. 24. Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas, entre outras:

I – restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;

II – proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial;

III – suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;

IV – prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.

Parágrafo único. Deverá o juiz oficiar ao cartório competente para os fins previstos nos incisos II e III deste artigo.

Mas, ainda, que a Lei Maria da Penha tenha trazido inovações e boas ferramentas que possam prevenir e impedir a violência doméstica em todas as suas espécies, a prática mostra certa dificuldade na aceitação das proteções legais da lei especial, seja pelos indeferimentos liminares, seja porque o Código Penal está desatualizado frente a igualdade constitucional entre homens e mulheres; conforme se verifica no Artigo 181 do Código Penal, que isenta de pena quem comete crime contra o patrimônio durante o casamento. E o artigo 182, do mesmo diploma, exige a representação da vítima de crime patrimonial após a separação.

E mesmo com o surgimento da Lei Maria da Penha em 2006, o Código Penal não foi atualizado, continuando com a redação original; o que não impede que as disposições da lei especial sejam utilizadas, mas a interpretação com relação a aplicação desses dispositivos fica sujeita ao entendimento em cada caso concreto. Inclusive, atualmente a posição do STJ é a seguinte:

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TENTATIVA DE ESTELIONATO (ARTIGO 171, COMBINADO COM O ARTIGO 14, INCISO II, AMBOS DO CÓDIGO PENAL). CRIME PRATICADO POR UM DOS CÔNJUGES CONTRA O OUTRO. SEPARAÇÃO DE CORPOS. EXTINÇÃO DO VÍNCULO MATRIMONIAL. INOCORRÊNCIA. INCIDÊNCIA DA ESCUSA ABSOLUTÓRIA PREVISTA NO ARTIGO 181, INCISO I, DO CÓDIGO PENAL. IMUNIDADE NÃO REVOGADA PELA LEI MARIA DA PENHA. DERROGAÇÃO QUE IMPLICARIA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE. PREVISÃO EXPRESSA DE MEDIDAS CAUTELARES PARA A PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO DA MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. INVIABILIDADE DE SE ADOTAR ANALOGIA EM PREJUÍZO DO RÉU. PROVIMENTO DO RECLAMO. (RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 42.918 – RS (2013/0391757-1), RELATOR: MINISTRO JORGE MUSSI, RECORRENTE : LUIS ADRIANO VARGAS BUCHOR, RECORRIDO : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL)

Mas através de uma interpretação sistemática pode-se chegar a outra conclusão: Se o art. 183, I do Código Penal determina que não se aplicam os arts. 181 e 182 quando há violência à pessoa e se o art. 7º, IV da Lei Maria da Penha estabelece como uma das espécies de violência contra a mulher é a violência patrimonial é possível concluir que a mais correta interpretação é no sentido de inexistir isenção de pena ou exigência de representação quando a violência patrimonial for perpetrada m relação doméstica ou familiar. Inclusive, porque o Brasil é signatário da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, conhecida como a Convenção de Belém do Pará.

Como é perceptível, a violência patrimonial é fácil de ser praticada e difícil de ser revertida, e mais ainda em casos de uniões estáveis, pelo fato do estado civil dos companheiros subsistir como solteiros, facilitando que o patrimônio esteja unicamente em nome de um deles, permitindo alienar no futuro sem o consentimento ou ciência da companheira. Lembrando que a dispensa de documentação para a união estável pode dificultar a comprovação do início e fim do relacionamento e, consequentemente, comprovar que os bens foram adquiridos durante uma relação familiar, entravando uma justa partilha.

Portanto, a prevenção da violência patrimonial inicia-se pela informação e a busca de instrumentos, em conjunto com um profissional especializado, que ajudem na comprovação do patrimônio do casal, seja pela escolha do casamento em detrimento da união estável; seja pela entabulação de pactos antenupciais, fixando-se deveres do casal, prevendo alimentos após a separação de fato, entre outros direitos e obrigações. Se o casamento ou união estável já existem é possível ainda alterar o regime de bens, fixar novas regras, converter união estável em casamento, considerando as orientações acima; mas se a situação de violência já existe, o agressor não aceitará modificar o que lhe dá vantagem e a mulher deverá providenciar provas desse patrimônio comum.

Como visto, combater a violência doméstica não é simples, mesmo com muitos avanços, com vários Tribunais já reconhecendo que a palavra da vítima tem muito valor nos casos análogos, até porque normalmente acontecem entre quatro paredes; tem-se que a busca de instrumentos preventivos e também instrumentos e medidas para após a violência são fundamentais para garantir os direitos das mulheres que sofrem violência patrimonial.

 

Referências

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1. Madaleno, Rolf, “A Fraude Material na União Estável e Conjugal”, ítem “6”- “A Fraude”;

2. planalto.gov.br – acesso em 23/10/2023.

3. stj.jus.br – acesso em 23/10/2023

4. stf.jus.br – acesso em 23/10/2023.

5. Hildebrand, Cecília, “Violência Patrimonial: como interpretar e como evitar – jusbrasil.com.br/artigos/violencia-patrimonial-como-interpretar-e-como-evitar – acesso em 24/10/2023.

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