Em ano eleitoral, com disputas acirradas no cenário político, ouvimos com frequência a denominação “violência política”. Trata-se de expressão utilizada em contextos em que há vitimização da mulher ou pessoas que se identificam com o gênero feminino. Consiste no cerceamento do direito afeto à cidadania de ocupar a pessoa de gênero feminino cargos ou exercer funções no cenário da vida pública, quer restando inviabilizada sua candidatura, quer o próprio regular exercício de atividades concernentes a cargos eletivos ou ainda, o pleno exercício de direitos políticos, especialmente o voto. A violência política pode se delinear por intermédio, inclusive, de comportamentos omissivos ou ataques físicos, morais, sexuais, psicológicos, de natureza institucional (econômica e estrutural) ou até mesmo simbólica.
Mas para que possamos realizar o enquadramento mais ajustado da violência política alusiva ao gênero feminino é de rigor a feitura de algumas digressões e ponderações de cunho interdisciplinar.
A admissão do voto feminino sob o prisma histórico brasileiro não se consumou de modo incontroverso, célere ou isento de inúmeras reivindicações, especialmente de mulheres de classe média e alta, com ênfase em jornalistas e intelectuais.
Constância Lima Duarte (2019)1 destaca Nísia Floresta como precursora do pensamento denominado feminista no Brasil, no século XIX, ao publicar seu primeiro livro “Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens”, nos idos de 1832, sob influxo ideológico de obras européias. Nísia identificou a cultura do colonizador português como elemento causal do preconceito contra a mulher, com vislumbre até mesmo da noção de gênero como verdadeira construção sociocultural e de forma inteligente e concatenada, questionou a ilusória consideração de superioridade do gênero masculino em relação ao feminino, salientando a racionalidade das mulheres, em grau paritário aos homens. Adentrando o século XX, Bertha Lutz colocou-se como uma das mais veementes defensoras do voto feminino no Brasil, além de enfatizar a plena igualdade de direitos entre homens e mulheres. Em 1932 Getúlio Vargas editou Decreto (21.076) instituindo o Código Eleitoral com previsão do direito ao voto feminino nas mesmas condições que os homens, todavia facultativamente quanto às mulheres (inclusive na Constituição Federal de 1934). Em 1933 houve eleição para Assembléia Constituinte, com exercício do voto feminino e candidatura das mulheres a cargos eletivos, efetivado o direito ao voto em território nacional pela primeira vez. Não obstante, apenas em 1965 o voto das mulheres foi reputado obrigatório.2
Então, temos quase noventa anos em que o exercício do direito de voto feminino é factível. Na atualidade, as mulheres representam cerca de 53% da população votante3 e integram apenas 15% dos cargos na Câmara dos Deputados, 17% das Câmaras Municipais, 12% do Senado, 12% das Prefeituras. Chegam a 66% as prefeitas que já sofreram violência moral , psicológica (através da percepção de ataques verbais, feitura de discursos de ódio nas redes sociais, etc) e 58% foram vítimas de assédio ou violência política pelo fato de serem mulheres. As proporções são majoradas em relação às transexuais. Podem ser destacadas como modalidades de violência política contra a mulher a violência institucional (econômica e estrutural), violência psicológica, violência moral, violência física, violência sexual, violência simbólica. A violência institucional está imbricada com diversos atos ou omissões atrelados a acessibilidade ou regular exercício de cargo público pela mulher ou pessoa do gênero correspondente. Fatos a propósito que podemos mencionar são a ausência de banheiros femininos no plenário do Congresso Nacional até 2016;4 inadmissão de licença gestante a deputadas federais até 2021, com cômputo de faltas injustificadas nas ausências por aquele motivo; desvio de capital de campanha pelos partidos políticos para candidatos, partidos esses que devem reservar a proporção de 30% dos recursos para candidaturas femininas, sem investimentos efetivos nas campanhas do gênero feminino, etc. A violência moral diz respeito a imputação de fatos ofensivos à reputação, falsos apontamentos da prática delitiva ou injúrias (estas consistentes em ofensas pessoais à dignidade ou ao decoro da pessoa de gênero feminino), reportando-se usualmente injúrias a caracteres físicos/estéticos da mulher bem como a sua sexualidade, violências perpetradas de modo contundente em redes sociais sob o manto do anonimato, mediante perfis falsos. Veja-se que em 2022 foi identificado o fato de que somente na primeira semana de campanha eleitoral quase 4,5 mil ataques ou insultos foram direcionados a 97 candidatas pelo Twiter. Violência psicológica se perfaz com ameaças e intimidações a pessoas do gênero feminino, podendo abranger ataques a familiares, pessoas próximas, amigos, inclusive. Violência física atinge o corpo das mulheres e transexuais mediante lesões corporais, tortura, feminicídio. Violência sexual se verifica mediante abuso, desrespeito ao corpo e à vontade da pessoa do gênero feminino pela realização de toques indesejados, estupro, divulgação de fatos relativos à vida sexual da mulher sem sua autorização, assédio direto com uso de expressões de natureza sexual que causem constrangimento ou entravem as aspirações e atividades políticas da mulher. É possível a concepção de violência simbólica na interrupção indevida da palavra da mulher em ambientes políticos, imposição de tarefas estranhas ao cargo, descrédito deliberado a denúncias ou conteúdo discursivo da mulher, recusa de participação da mulher em atividades que envolvam tomada de decisão, etc. O enquadramento das várias espécies de violência política é de natureza aberta. A Lei 14.192/2021 inseriu o artigo 326-B ao Código Eleitoral para tipificação de delito correspondente à violência política contra a mulher ao passo que a Lei 14.197/2021 instituiu crime contra o Estado Democrático de Direito com inserção do artigo 359-P ao Código Penal e previsão de penalidades pela prática de condutas, mediante violência física, sexual ou psicológica, com o escopo de restrição, impedimento ou imposição de dificuldade ao exercício de direitos políticos por qualquer pessoa em razão de sexo, raça, cor , etnia, religião ou procedência nacional .
Tornando à desproporção entre a população votante do gênero feminino e a quantidade de mulheres sob efetivo exercício em cargos eletivos, fato revelador da predominância da cultura patriarcal em nossa sociedade, é pertinente constatar que pesquisas revelam elevado percentual de mulheres que no Congresso Nacional apresentam atuações desfavoráveis aos direitos femininos (34,4%), com declínio de interesse das Casas Legislativas sobre temas relacionados ao Direito das Mulheres durante a legislatura.5
Embora em 2018 o STF haja decidido que a distribuição de recursos do fundo partidário destinado ao financiamento de campanhas eleitorais de candidaturas de mulheres deve corresponder à cota mínima de 30% de candidatas, restando promulgada a Emenda Constitucional 117 de 05/04/2022 no mesmo sentido, tem-se que aludida emenda anistiou descumprimentos verificados anteriormente em sede de políticas afirmativas com verbas dos fundos eleitorais de maneira geral, afastando portanto sanções aos partidos políticos, depreciando a relevância de tais políticas sensivelmente.6
Pesquisa7 realizada no estado da Bahia com prefeitas eleitas para o período de 2009/2012 (trinta e seis prefeitas, cujos relatos foram transcritos sob pseudônimos), ao aludir ao estudo de Costa, consignou que as mulheres que exercem cargos no Executivo experimentam a ação de diversas intolerâncias e são enfocadas sob estereótipos de maneira mais acentuada pelos partidos políticos do que no seio do eleitorado. Contudo, tais mulheres também discriminam ainda que possam não perceber. Muitas se inserem na conjuntura política em decorrência de ligações familiares ou afetivas com políticos locais (pais, cônjuges, etc). Mostram-se majoritariamente distantes de atuação representativa e correspondente ao direito das mulheres, como o seria através de projetos voltados à igualdade de gênero. Observou-se ademais que o coronelismo não deixou de existir, apenas adequou-se a contemporaneidade, frequente o mandonismo local e a corrupção no serviço público municipal.
Concluímos, por conseguinte, que embora desde o século XIX as mulheres já clamassem pelo exercício de direitos políticos, os quase noventa anos do reconhecimento do direito ao voto feminino foram incapazes de efetivamente inserirem as mulheres na política com o escopo de equilibrar o quadro de assimetria de poder entre homens e aquelas. Fortemente ainda se subjetivam as mulheres através da valoração masculina, exercendo em grande dimensão seus mandatos de forma desatrelada da visão das necessidades inclusivas e implementação de políticas afirmativas em prol das cidadãs brasileiras as quais, por seu turno, pouco votam em pessoas do mesmo gênero. Portanto, se o fato de uma candidata ostentar por si só o gênero feminino não a qualifica , posto indispensável a dotação de atributos como honestidade, comprometimento, capacitação, análise de sua vida pregressa, concepção de projetos, não deixemos de votar em outras mulheres quando vislumbrarmos a presença de tais fatores.
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Referências
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1. COSTA, Albertina de Oliveira, ALVES, Branca Moreira, SORJ Bila, BARROSO Carmen, DUARTE, Constância Lima, SARTI Cynthia, PITANGUY Jacqueline, SCHMIDT Rita Terezinha, HOLLANDA Heloísa Buarque de, Pensamento Feminista Brasileiro, Rio de Janeiro, Bazar do Tempo Produções e Empreendimentos Culturais Ltda, 2019, e-book, pg 32.
2. DISPONÍVEL EM https://bit.ly/2XIajvL, “a conquista do voto feminino”, acessado em 20 de setembro de 2022.
3. DISPONÍVEL EM mpf, informativo sobre violência política de gênero- https://bit.ly/3Cjj1qN; acessado em 22 de setembro de 2022.
4. DISPONÍVEL EM https://bit.ly/2IJrYw4, MonitorA, projeto da revista Azmina e do InternetLab “como a violência política de gênero acontece na prática”, acessado em 22 de setembro de 2022.
5. DISPONÍVEL EM https://bit.ly/2IJrYw4, matéria atualizada em 21 de setembro de 2022, ranking Elas no Congresso de 2022, acessado em 23 de setembro de 2022.
6. DISPONÍVEL EM https://bit.ly/3DTh6dn, nota técnica 1/2022, acessado em 23 de setembro de 2022.
7. BARBOSA, Claudia de Faria, As Mulheres na Política Local, Entre as Esferas Pública e Privada, Curitiba, Editora e Livraria Appris Ltda, 2019, 1ª edição, e-book, pg 61, 239, 276.