Violência Psicológica: a porta entreaberta para a escalada da violência doméstica e Lei 15.123/25

Violência Psicológica: a porta entreaberta para a escalada da violência doméstica e Lei 15.123/25

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De acordo com o Mapa da Segurança Pública de 2025,1 quatro mulheres são mortas propositalmente por dia no Brasil, operando-se aumento de 0,69% na proporção de feminicídios em relação a 2023, numa totalidade de 1459 vítimas de feminicídio em 2024. Observe-se que nesse número há que se considerar a subnotificação, com a ausência de registro de ocorrências que se caracterizam como feminicídios.

Não se trata de fenômeno novo ou ignorado do grande público. Mas diante da renitência em se atentar aos dados de ordem pública, há necessidade de discriminação da exacerbada proporção de feminicídios em território nacional, de modo progressivo e discrepante da minoração de homicídios consoante as estatísticas,2 com queda de 6,3% (homicídios dolosos) em 2024.

É justamente nesse quadro que, dentre diversos diplomas legais que vem sendo editados de forma peculiar à implementação de política pública para prevenção e combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, foi editada a Lei 15.123/25, a qual versa sobre violência psicológica contra a mulher e inteligência artificial.

A relevância do enfoque legislativo na perpetração de violência psicológica contra a mulher não é diminuta.  Ao revés. Vejamos:

O artigo 7º , inciso II, da Lei 11.340/06 aponta consistir forma de violência doméstica e familiar contra a mulher a violência psicológica entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição de sua autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe causa prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação (grifos nossos).

Do conceito extraído da Lei Especial, a percepção basilar do teor do dispositivo legal nos revela a multiplicidade de condutas hábeis a provocar violência psicológica, tão somente exemplificadas na norma, desde que presentes danos à saúde psicológica e à autodeterminação.

Mas o que outorga ênfase à imprescindibilidade de se compreender, quer os caracteres da violência psicológica, quer suas nefastas consequências danosas e implicações legais, é a inegável circunstância da violência psicológica dar início ao denominado ciclo da violência, o qual se desenvolve, de maneira gradativa e crescente, durante o relacionamento entre vítima e agressor, com prejuízos paulatinamente maiores em detrimento da primeira.

Quem cunhou a expressão “ciclo da violência” foi Leonore W Walker, em 1979, psicóloga americana, definindo-o como composto por três fases: 1- período de aumento de tensão, no qual a mulher pressente que algo está errado e, por diversas vezes, tenta utilizar estratégias para acalmar o parceiro, sob a falsa premissa de que a mulher seria capaz de controlar a violência do parceiro, sendo exemplos da aludida fase agressões verbais, crises de ciúme, ameaças, destruição de objetos; não é incomum a mulher tentar justificar a conduta daquele com o qual se relaciona ou se responsabilizar por sua agressividade; 2- explosão de violência, quando ocorre incidente agudo de violência, verificando-se os ataques mais graves; 3- Lua-de-mel, ou seja, período de arrependimento e reparação, podendo o agressor demonstrar remorso para se reconciliar, prometendo amor, mudanças de comportamento, etc.3

A descrição do ciclo da violência traz ínsita a idéia de recrudescimento das agressões e repetição das fases do ciclo, como se essa forma de “se relacionar” fosse natural e, dentro do contexto, normaliza a violência em desfavor da mulher como uma “consequência peculiar ao comportamento privativo da vítima, de sua privativa responsabilidade”.

Nessa espiral de violência e sofrimentos acerbos da vítima, muitos se perguntam: mas qual seria a razão para que a vítima tenha permanecido nesse relacionamento violento até, no limite das agressões, consumar-se o feminicídio?

Muitos são os fatores que incidem para a lamentável configuração. No que concerne ao objetivo do presente artigo, podemos afirmar, sem receios, que o ciclo da violência não pode se instaurar sem que seja perpetrada, no início do relacionamento e durante sua subsistência, violência psicológica contra a mulher.

O artigo 7º , II da Lei Maria da Penha contém tipo aberto, com descrição de condutas que irrefutavelmente são hábeis a gerar violência psicológica, mas ressalva “outros meios”, que não os elencados, que causem prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação da vítima.

Destaquemos as primeiras condutas referidas no dispositivo em apreço: “qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição de sua autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento”.

De ver-se que, em consonância com o texto mencionado, o dano emocional é apurado por constatação psicológica, estando vinculado à diminuição de autoestima.  A última conecta-se ao conceito  correspondente ao quanto uma pessoa pode ser gentil com sua autoimagem, reconhecendo seus pontos fracos, inclusive, aceitando seus defeitos, não se pautando na opinião alheia para estabelecer esse sentimento de harmonia (e não depreciação, rejeição) da autoimagem.4 A título elucidativo, sofrerá violência psicológica, com diminuição de sua autoestima, uma mulher que se ache feia porque o marido lhe disse “ser gorda e ficar ridícula dentro do vestido”, experimentando, em virtude do comentário , sentimento de tristeza (imaginemos uma mulher que não seja obesa mas que não tenha o peso ideal), de menor valia, com retração emocional, recusa de convivência social, etc.

Conduta que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento da mulher: parcialmente, está aqui uma das hipóteses à qual faz remissão o artigo 2º da  15.123/25 ao alterar o parágrafo único do artigo 147-B do Código Penal,  para que ocorra aumento de pena de metade se o crime é cometido mediante uso de inteligência artificial ou de qualquer outro recurso que altere imagem ou som da vítima.

Tornemos à redação do crime do artigo 147-B do Código Penal:

Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que causa prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação.

O dano emocional hábil a causar prejuízo e perturbação do pleno desenvolvimento da mulher nos parece ser mais complexo de ser afirmado em sua eclosão do que o dano emocional que vise a degradação ou controle das ações, comportamentos, crenças e decisões de uma mulher, provocados tais danos por condutas externadas pelo agressor.

Perícias psicológicas se mostram imprescindíveis com o escopo de detecção do dano emocional da vítima.

A novidade a ser festejada é justamente a inclusão do parágrafo único ao artigo 147-B do Código Penal para restar estabelecida causa de aumento de pena de metade, se o delito é perpetrado com uso de inteligência artificial ou qualquer outro recurso que altere imagem ou som da vítima.

Trata-se dos denominados deepfakes ou manipulação digital de voz ou imagem. Deepfakes são técnicas que permitem alteração de vídeo ou foto com uso de inteligência artificial, com troca, por exemplo, de rostos e frases divulgadas. Destacam-se nudes falsos atribuídos à personalidades compartilhados na internet como práticas peculiares ao deepfake.5

Aqui imaginemos postagens desairosas (manipuladas) de imagens que aludam à vítima com o escopo de desestimulá-la a participar de determinado concurso de beleza, as quais sejam realizadas em rede social, por exemplo.

A prática delitiva, hábil a provocar dano emocional, perpetrada em ambiente digital, é de fácil verificação e na contemporaneidade, mostra-se até mesmo corriqueira, o que, todavia, jamais irá transmutá-la à condição de licitude. A alteração do parágrafo único do artigo 147-B do Código Penal vem em boa hora para regulação de responsabilidades em ambiente digital, as quais de resto não são apenas recomendáveis, mas absolutamente emergenciais.

  

Referências

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1. Disponível em: link, Bertolaccini, Ana Julia, “Feminicídio: quatro mulheres são assassinadas por dia no Brasil”, 11/06/2025, acessado em 21/08/2025;

2. Disponível em: link, “Mapa da Segurança Pública: Brasil registra queda de 6,3% nos homicídios dolosos”, 11/06/2025, acessado em 21/08/2025;

3. Leite, Luciana Simon de Paula, “Para Nossas Meninas”, Editora Autografia, Rio de Janeiro, 2021, pg 116;

4. Disponível em: link, “qual a diferença entre autoimagem e autoestima”, acessado em 21/08/2025;

5. Disponível em: link, “O que é deepfake e como ele é usado para distorcer a realidade”, postado em 28/02/2024, acessado em 21/08/2025;

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