Na era digital, onde a tecnologia se tornou a ponte entre empresas e consumidores, uma prática insidiosa vem se tornando cada vez mais comum: o assédio de consumo perpetrado por grandes corporações.
Essas empresas, em sua incessante busca por lucro, não hesitam em bombardear os telefones de seus clientes com chamadas indesejadas, seja para cobranças indevidas, venda agressiva de produtos ou serviços, ou simplesmente para manter sua marca presente na mente do consumidor. Esta forma de assédio não só invade a privacidade e perturba a tranquilidade dos consumidores, mas também pode ter implicações legais sérias, levantando questões éticas e jurídicas que merecem uma análise cuidadosa.
Essa importunação realizada pelas empresas é patológica, doentia, pois retira a tranquilidade do cidadão médio, afrontando o direito ao sossego (right to be left alone), intrinsicamente ligado à garantia fundamental da dignidade da pessoa humana consubstanciada no artigo 1º, III, da CR/88.
O assédio de consumo demonstra-se como uma novel espécie de dano, recém-surgida, caracterizado como novo dano da era digital, de cunho moral, com acepção “fundamentada nos direitos básicos do consumidor, garantindo a integridade psíquica das pessoas conectadas a Internet através de instrumento jurídico já historicamente consagrado, a saber, a responsabilidade civil”.1
A “perturbação ou importunação indevida praticada pelas publicidades virtuais, alimentadas por dados pessoais, configura lesão ao interesse jurídico tutelado e, consequentemente, dano à pessoa humana”,2 sendo elevado à categoria de dano digital encampado pela responsabilidade civil, sendo que é “direito de a pessoa de não ser importunada pelas publicidades virtuais de consumo não solicitadas é uma necessidade social contemporânea, inerente à sociedade virtual de consumo”.3
Essas incessantes importunações podem ser caracterizadas como práticas abusivas, de acordo com o artigo 37, §2º, do CDC, devido à sua natureza repetitiva e desrespeitosa ao direito do consumidor de não ser incomodado. Além disso, o artigo 6º, IV, do CDC assegura aos consumidores a proteção contra métodos comerciais coercitivos ou desleais, incluindo práticas de assédio de consumo que claramente se enquadram nesse contexto.
É comum que diversas empresas, especialmente do setor de telecomunicações e cartões de crédito, utilizando números distintivos como os iniciados por “0303”, enviem múltiplas mensagens diárias, em horários alternados e até noturnos, com o intuito de promover novos planos e ofertas, mesmo para indivíduos sem contratos vigentes. Para todos os efeitos legais, os consumidores importunados por tais práticas têm respaldo para contestá-las, pela figura do bystander, o consumidor por equiparação (ou sem contrato de consumo), de acordo com o artigo 17 do CDC, podendo exigir que as importunações cessem, inclusive judicialmente.
O consumidor detém o direito de exigir que as empresas cessem as importunações por meio de ligações e envio de mensagens publicitárias. Tal solicitação configura um exercício legítimo da sua vontade, amparado pelo princípio da boa-fé objetiva. Caso tais práticas persistam após a expressa manifestação do consumidor em não desejar mais ser abordado, configura-se uma violação ao direito ao sossego, caracterizando-se, assim, um desrespeito aos preceitos fundamentais que regem as relações de consumo.
Se o consumidor expressamente declara sua recusa em adquirir os produtos ou serviços da empresa demandada, qualquer insistência injustificada configura-se como um claro exemplo de abuso de direito. É essencial que as empresas reconheçam e respeitem as decisões dos consumidores, agindo de forma ética e responsável, em conformidade com os princípios legais.
O descumprimento desse princípio fundamental não apenas expõe a empresa a possíveis sanções legais, mas também mina a confiança do consumidor no mercado, comprometendo a própria sustentabilidade e reputação da empresa no longo prazo.
Nesse contexto, é evidente a responsabilidade civil, conforme preconizam os artigos 186, 187 e 927 do Código Civil Brasileiro, em consonância com o artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor. A inércia das empresas em cessar as importunações representa não apenas um dolo ao consumidor, mas também um abuso de direito e uma afronta à boa-fé objetiva, retirando-lhe o direito ao sossego e à tranquilidade.
De mesmo modo, é pertinente destacar que as ligações incessantes referentes a supostas dívidas, inexistentes, também configuram danos passíveis de reparação. Tais práticas não apenas infringem o direito ao sossego do consumidor, mas também podem induzi-lo a situações de constrangimento e angústia, violando, assim, sua dignidade e integridade psicológica. Nesse sentido, a insistência das empresas em contatar o consumidor para cobrar dívidas não reconhecidas demonstra claramente uma conduta negligente e lesiva, que não pode passar despercebido na era digital.
Ilustrando tais situações no contexto jurisprudencial, torna-se relevante trazer à baila decisão do processo de nº 0701246-09.2023.8.07.0003, onde a Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal4 concluiu que:
JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS. CANCELAMENTO DE SERVIÇO SMS PUBLICITÁRIO. PRESTAÇÃO DE SERVIÇO. TELEFONIA. CONSUMIDOR. MENSAGENS EXCESSIVAS. ABUSO DE DIREITO. DANO MORAL CONFIGURADO. VALOR REDUZIDO. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. (grifamos) (TJ-DF, Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal, Relatora: Marilia de Avila e Silva Sampaio, Autos de nº 0701246-09.2023.8.07.0003, dezembro de 2023).
Em suma, ao proferir a decisão no caso, a Turma destacou que as evidências apresentadas pela Autora eram suficientes para indicar a falha na prestação de serviços pela empresa ré e a prática comercial abusiva, caracterizada pelo envio de mensagens publicitárias a qualquer momento do dia. O colegiado ainda esclarece que a demandante conseguiu validar a recepção de inúmeras mensagens, mesmo após solicitar o cancelamento.
Em outro caso, um consumidor que suspendeu um contrato com uma empresa, passou a ser cobrado incessantemente através de ligações telefônicas, e-mails e SMS, em relação ao período em que os serviços estavam suspensos, recebendo múltiplas ligações por dia da empresa para cobrança da indevida dívida.
Entendeu o Douto Juízo Sentenciante da Unidade Jurisdicional da Comarca de Sabará/MG, processo de nº 5009770-37.2023.8.13.0567, que:5
Quanto ao pedido de indenização por danos morais, entendo que a cobrança indevida e abusiva de quantia, referente ao serviço que o requerente já havia solicitado a interrupção, é ato ilícito que enseja o dever indenizatório, pois, além de ser cobrado por dívida inexistente, as cobranças eram excessivas e foram do horário comercial, o que causa transtornos que superam os meros dissabores do cotidiano.
Assim, a provocação inoportuna por atitude inconsequente da parte ré gerou a perda do tempo útil da consumidora, pois gastou seu tempo livre em leitura de mensagens constantes e indevidas.
Nessa linha de raciocínio, entendo que uma das mais lamentáveis das perdas é a perda do tempo e, por isso, a contribuição dessa perda por empresas negligentes que atuam de forma desarrazoada acarretam ao consumidor danos morais passíveis de compensação. (grifamos) (TJ-MG, Unidade Jurisdicional da Comarca de Sabará/MG, autos de nº 5009770-37.2023.8.13.0567, abril de 2024).
Com efeito, a referida decisão reconhece a Teoria do Desvio Produtivo, sendo que a constante interrupção do tempo útil do consumidor por meio de incessantes ligações e envio de mensagens representa não apenas uma inconveniência, mas também uma violação do seu direito à eficiência e produtividade.
Essas chamadas indesejadas desviam o foco de atividades importantes, comprometendo não só a realização de tarefas prioritárias, mas também a qualidade de vida do consumidor, bem como a sua própria saúde mental. Ao ser forçado a lidar com essas interrupções, o consumidor se vê obrigado a desviar recursos mentais e temporais que poderiam ser direcionados para atividades mais relevantes.
Portanto, tal prática não só caracteriza abusividade por parte do fornecedor, mas também justifica a necessidade de compensação por danos morais, reconhecendo o impacto negativo causado pela perda do tempo útil.
A recente jurisprudência reflete uma preocupação crescente com as práticas abusivas das empresas no contexto digital, especialmente no que diz respeito ao assédio de consumo através de ligações e mensagens incessantes. As decisões judiciais têm reconhecido a violação do direito fundamental do consumidor ao sossego e à eficiência, respaldando a aplicação da Teoria do Desvio Produtivo. O tempo desperdiçado e a interferência nas atividades cotidianas do consumidor são agora considerados não apenas como inconveniências, mas como danos morais passíveis de compensação. Essa abordagem reforça a importância de proteger os consumidores contra práticas comerciais abusivas, não apenas para garantir sua tranquilidade, mas também para preservar a integridade de suas atividades e saúde mental.
Diante desse panorama, é imperativo que as empresas assumam responsabilidade por suas ações e respeitem o direito dos consumidores ao sossego e à tranquilidade. Com efeito:
Em última análise, a proteção do consumidor contra o assédio de consumo exige uma abordagem holística que envolva regulamentações, conscientização pública, educação e ações de fiscalização. É fundamental que os sistemas jurídicos e regulatórios evoluam para lidar com essa nova espécie de dano, garantindo que os consumidores não sejam prejudicados por práticas comerciais antiéticas ou ilegais.6
Caso o consumidor expresse seu desejo de ver as importunações cessarem, sejam através de chamadas ou mensagens, deverá indicar para as empresas, que devem parar com o envio de conteúdo publicitário (ou dívidas inexistentes) de forma imediata. Caso contrário, o consumidor poderá acionar o Poder Judiciário, através de ações de obrigação de (não) fazer (não envio de mensagens/chamadas para o número indicado), requerendo ainda indenização por danos materiais e morais.
Para mitigar esses abusos, é essencial que as empresas assumam a responsabilidade por suas ações e respeitem os direitos fundamentais dos consumidores, incluindo o direito ao sossego e à tranquilidade. Além disso, medidas proativas, como regulamentações mais rigorosas, conscientização pública e educação sobre os direitos dos consumidores, são necessárias para combater eficazmente o assédio de consumo.
Somente por meio de uma abordagem holística e coordenada, que envolva tanto o poder público quanto o setor privado, será possível garantir um ambiente de consumo justo, ético e respeitoso, que promova a confiança e a equidade entre empresas e consumidores.
Referências
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1. BASAN, Arthur Pinheiro. Publicidade digital e proteção de dados pessoais: O direito ao sossego. Indaiatuba: Editora Foco, 2021. E-book, p. 37.
2. MARTINS, Guilherme Magalhães; BASAN, Arthur Pinheiro. O marketing algorítmico e o direito de sossego na internet. In: BARBOSA, Mafalda Miranda; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (Coords.). Direito Digital e Inteligência Artificial: Diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba, São Paulo: Editora Foco, 2021, p. 356-357.
3. BASAN, Arthur Pinheiro; JACOB, Muriel Amaral. Habeas Mente: a responsabilidade civil como garantia fundamental contra o assédio de consumo em tempos de pandemia. Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 3, n. 2, p. 161-189, maio/ago. 2020, p. 175.
4. TJ-DF, Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal, Relatora: Marilia de Avila e Silva Sampaio, Autos de nº 0701246-09.2023.8.07.0003, dezembro de 2023.
5. TJ-MG, Unidade Jurisdicional da Comarca de Sabará/MG, autos de nº 5009770-37.2023.8.13.0567, abril de 2024
6. BARBOSA, Caio César do Nascimento. Consumidor sob pressão: breves notas sobre o assédio de consumo no ciberespaço. Magis – Portal Jurídico. 2023. Disponível em: link.