A crescente popularidade da busca por cargos públicos tem levado ao aumento do número de concurseiros no país. Esse fenômeno reflete uma série de fatores sociais, econômicos e culturais que influenciam a decisão das pessoas em investir tempo e esforço na preparação para concursos públicos.
Uma das razões para o aumento do número de concurseiros é a estabilidade oferecida pelos empregos públicos. Em um cenário de incertezas econômicas, muitos indivíduos buscam oportunidades de trabalho que proporcionem segurança no emprego, benefícios e salários atrativos.
Neste cenário, houve substancial aumento na demanda por plataformas que ofereçam preparatório específico para concursos, em especial on-line, em decorrência do efeito pandêmico, preparando o indivíduo para áreas que se relacionem ao edital do tão almejado concurso público.
Neste sentido, é comum que muitas plataformas preparatórias disponibilizem serviços de “coach”, ou seja, uma mentoria específica e personalizada para que o aluno possa dedicar de seu tempo de estudos para focar, ainda mais, no edital do certame, com a assessoria sendo monitorada por profissionais capacitados, em sua maioria concursados, objetivando uma célere e proveitosa aprovação.
Tais serviços adicionais de mentoria, inclusive, preveem cláusulas contratuais de êxito, em que determinada porcentagem do montante a ser recebido pelo concursado (já empossado) é destinada a plataforma, chamada por alguns fornecedores de serviços de “honorários de sucesso” ou “verbas de êxito”.
Ab initio, importa salientar que tais cláusulas são previstas contratualmente, e, em primeiro olhar, são válidas a luz do direito contratual e sob o pacta sunt servanda, vez que constituem a mera liberalidade de vontade entre as partes, caracterizado como um contrato de risco, no qual o coach treina o coachee para obtenção de um objetivo, sendo, assim, uma obrigação de meio.
Ocorre que, tanto pelo Código Civil Brasileiro, quanto pelo Código de Defesa do Consumidor, os contratos não podem ser observados de forma generalizada, considerando, ainda, que é notório que os concurseiros contratam tais cursos preparatórios com o objetivo de aprovação em um específico certame, e não a genérica tentativa de êxito em qualquer concurso a ser realizado.
Considerando o caráter personalizado divulgado por tais cursos, é mister que sejam observados os limites contratuais, em específico em relação à boa-fé objetiva. Assim, o contrato, possuindo um único e específico fim, deve obedecer aos seus próprios limites, com amparo normativo na função social dos contratos e na boa-fé objetiva (artigos 113, 421 e 422 do CCB).1
Em se tratando da indispensabilidade de observância da boa-fé objetiva e da função social dos contratos, deve atentar-se que os referidos princípios se perfectibilizam como uma forma de garantir o equilíbrio contratual, para que ele seja interpretado conforme seus próprios limites (art. 421, CCB), sendo vedada a interpretação para além dos limites estabelecidos no contrato.
Ademais, pelo Código de Defesa do Consumidor, as cláusulas contratuais devem ser observadas de maneira mais favorável ao consumidor (art. 47, CDC), sendo ainda consideradas como abusivas tais cláusulas que “estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade” (art. 51, IV, CDC).
Nos últimos anos, a legalidade de tais cláusulas têm sido questionada por concurseiro, tanto em grupos específicos para concursos, como em plataformas como o “ReclameAqui”, quanto no Poder Judiciário.
Como dito anteriormente, tais cláusulas são consideradas legais e permitidas em nosso ordenamento pátrio, desde que observados os limites do contrato. Isto é, se determinado concurseiro contratou os serviços de mentoria para preparatório de certame de Delegado da Polícia Federal e, posteriormente, obteve êxito no aludido concurso, as verbas de sucesso seriam devidas ao mentor, prezando o pacta sunt servanda.
Situação diversa, mas mais comum, é o concurseiro contratar os serviços de coach para aprovação em determinado concurso, e ser aprovado em outro, tal como no paradigma 1018309-54.2022.8.26.0625,2 em que uma concurseira de Minas Gerais contratou os serviços de mentoria para o certame do SEFAZ-ES, tendo descontinuado com a contratação alguns meses após para focar ao cargo de Escrivã da Polícia Federal, sem mentoria para o aludido concurso, sendo aprovada por conta própria.
Alguns meses após, a consumidora foi surpreendida com cobrança das verbas de sucesso, mesmo após a rescisão contratual, considerando que desistiu de prestar o concurso do qual havia contratado a mentoria, justamente para focar em outro certame. Assim, a concurseira entendeu como necessário levar a demanda ao Poder Judiciário, com sua pretensão (declaratória de inexistência de débito) confirmada em primeiro e segundo grau.
O Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, inclusive, assim decidiu:
APELAÇÃO. Prestação de serviço. Autora que firmou com a ré contrato de mentoria (“coaching”), em que a requerida se obrigou a assessorar a requerente na preparação para o concurso público que seria realizado pela Secretaria da Fazenda do Espírito Santo, com o fim de prover o cargo de auditor fiscal de rendas, ocorrendo que a requerente acabou sendo aprovada em concurso diferente (escrivã da Polícia Federal). Verba de mentoria, denominada “honorários de sucesso”, prevista no contrato, que somente seria exigível pela ré caso a autora tivesse logrado êxito no concurso para o qual a assessoria foi contratada, situação que não se configurou. Cláusula contratual que não se estende a toda e qualquer aprovação em concurso público, tendo em vista que a assessoria prestada pela ré era específica para o cargo de auditor fiscal de rendas. Sentença mantida, com majoração dos honorários advocatícios. Recurso não provido.
(TJSP; Apelação Cível 1018309-54.2022.8.26.0625; Relator (a): Issa Ahmed; Órgão Julgador: 34ª Câmara de Direito Privado; Foro de Taubaté – 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 31/08/2023; Data de Registro: 31/08/2023)
Percebe-se, portanto, que os contratos devem possuir limites, objetivando o equilíbrio contratual, para que nenhuma parte tenha sua legítima expectativa frustrada, nem que exista o desequilíbrio entre as partes, repudiado pelo CDC. O pagamento dos honorários pelo êxito em qualquer outro certame, por óbvio, não abrangeria o conteúdo contratual, ante ao objeto específico, e não generalizado. A eficácia do contrato, portanto, depende da observância nos limites do objeto, sob pena de generalizar e prejudicar o corpo social em sua integralidade, vez que estaríamos ante a verdadeiro abuso de direito.
Como muito bem delineia o Professor Michael César Silva:
A função de controle da boa-fé objetiva impõe limites ao exercício abusivo do direito subjetivo dos contratantes (abuso do direito), para determinar até onde o mesmo é legítimo ou não, e, desta forma, obter o merecimento do ordenamento jurídico. O abuso do direito exsurge de uma conduta lícita que com o seu exercício se torna abusiva (ilícita), tendo seu fundamento na imprescindível observância aos preceitos norteadores da boa-fé objetiva e na tutela jurídica da confiança.3
Em outras palavras, o abuso de direito ocorre no âmbito do próprio direito sempre que há uma discrepância com a finalidade teleológica que fundamenta o direito subjetivo. O objetivo social ou econômico de um determinado direito subjetivo não é algo externo à sua estrutura, mas sim um elemento intrínseco à sua própria natureza.
A boa-fé objetiva, destarte, é caracterizada como uma máxima de conduta ético-jurídica, cujo propósito é prevenir o abuso do direito subjetivo. O ordenamento jurídico qualifica esse abuso como um ato ilícito de natureza objetiva, conforme previsto no artigo 187 do Código Civil. Destaca-se, ainda, que a boa-fé está intimamente ligada à teoria do abuso de direito, desempenhando a função de limitar ou até mesmo impedir o exercício de direitos que surgem a partir da relação contratual.
Assim, a observância de tais limites, dentro de uma relação contratual, é imprescindível para que possa ser estabelecido um equilíbrio entre as partes, mormente quando se trata de relação envolvendo consumidores, notadamente vulneráveis. Com isto, objetiva-se a proteção da parte mais fraca da relação jurídica de consumo, impedindo eventuais abusos ou interpretações extensivas e generalizadas que prejudiquem o consumidor.
Desta forma, a leitura das “verbas de êxito” ou “honorários de sucesso” deve ser analisada sobre tal enfoque, coibindo a extensão ampla de que abordariam todo e qualquer concurso que gerasse aprovação, mas, tão somente para atingir sua legalidade, deve ser considerada restrita ao objeto do contrato, tal seja, a preparação de mentoria específica que foi contratada, em consonância com a boa-fé objetiva.
Referências
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1. SILVA, Michael César. Convergências e assimetrias do princípio da boa-fé objetiva no direito contratual contemporâneo. Revista Jurídica Luso Brasileira, v. 1, p. 1133-1186, 2015. Disponível em: link.
2. TJSP; Apelação Cível 1018309-54.2022.8.26.0625; Relator (a): Issa Ahmed; Órgão Julgador: 34ª Câmara de Direito Privado; Foro de Taubaté – 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 31/08/2023; Data de Registro: 31/08/2023
3. SILVA, Michael César. Convergências e assimetrias do princípio da boa-fé objetiva no direito contratual contemporâneo. Revista Jurídica Luso Brasileira, v. 1, p. 1133-1186, 2015. Disponível em: link.