Do Dano Moral Presumido em Casos de Violência Doméstica

Do Dano Moral Presumido em Casos de Violência Doméstica

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A violência doméstica, expressão de uma sociedade marcada por profundas desigualdades de gênero, configura-se como uma das mais perversas formas de violação dos direitos humanos. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, §8º, estabelece que o Estado deve assegurar a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. Tal preceito foi fortalecido com a promulgação da Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, um marco normativo que visa proteger a mulher de situações de violência doméstica e familiar, proporcionando meios para a sua efetiva tutela.

A Lei Maria da Penha, ao definir a violência doméstica e familiar contra a mulher, abrange qualquer ação ou omissão que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico, além de dano moral ou patrimonial, conforme disposto no artigo 5º do referido diploma legal. A proteção legal outorgada por essa legislação inclui a possibilidade de concessão de medidas protetivas de urgência, destinadas a evitar a continuidade ou a intensificação da violência. Essas medidas são fundamentais para resguardar a integridade física e emocional da vítima, bem como para assegurar o afastamento do agressor do lar conjugal.

O rigor da Lei Maria da Penha é refletido em sua abrangência, que não apenas tipifica diversas formas de violência, mas também estabelece procedimentos policiais e judiciais para a sua pronta e eficaz repressão. A lei insere-se em um contexto mais amplo de combate à violência de gênero, buscando romper com o ciclo de violência que muitas mulheres enfrentam. Ao enfatizar a necessidade de medidas protetivas, o legislador reconhece a vulnerabilidade específica das mulheres no âmbito doméstico e familiar, proporcionando-lhes um amparo jurídico robusto e célere.

Neste sentido, pode a vítima, para além das medidas penais inerentes à mencionada legislação, ajuizar demanda de natureza cível para requerer uma indenização por danos materiais e morais decorrentes da violência doméstica, sendo entendimento jurisprudencial que a competência nas ações de indenização decorrentes de episódios de violência doméstica é o Juízo Cível, e não o Juizado de Violência Doméstica contra a Mulher:

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER – CÔNJUGE VIRAGO CONTRA O CÔNJUGE VARÃO – COMPETÊNCIA DO JUÍZO CÍVEL. Em casos de ações de indenização por danos morais, mesmo quando a causa de pedir está relacionada à violência doméstica e familiar contra a mulher, a jurisdição competente para processar e julgar o caso é o juízo cível correspondente, não o Juizado de Violência Doméstica contra a Mulher. Este último detém competência exclusiva para medidas de proteção à mulher vítima de violência doméstica e familiar. (TJMG – Conflito de Competência 1.0000.21.061876-5/000, Relator(a): Des.(a) Renato Dresch, 4ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 16/09/2021, publicação da súmula em 16/09/2021)

Adentrando no cerne do dano moral presumido nos casos de violência doméstica, é imperioso reconhecer que a simples ocorrência de atos de violência no âmbito familiar já é suficiente para gerar presunção de dano moral. Isso se deve ao fato de que tais atos violam diretamente a dignidade da pessoa humana, acarretando sofrimento e angústia que transcendem a mera esfera física ou patrimonial.O dano moral, nesses casos, decorre inexoravelmente da situação humilhante e degradante imposta à vítima, prescindindo de prova específica acerca do abalo emocional sofrido. Neste sentido, definiu o Superior Tribunal de Justiça, no Tema Repetitivo nº 983, através do REsp: 1643051, MS 2016/0325967-4:

O dano moral, nesses casos, decorre inexoravelmente da situação humilhante e degradante imposta à vítima, prescindindo de prova específica acerca do abalo emocional sofrido. Neste sentido, definiu o Superior Tribunal de Justiça, no Tema Repetitivo nº 983, através do REsp: 1643051, MS 2016/0325967-4:

7. Não se mostra razoável, a esse fim, a exigência de instrução probatória acerca do dano psíquico, do grau de humilhação, da diminuição da autoestima etc., se a própria conduta criminosa empregada pelo agressor já está imbuída de desonra, descrédito e menosprezo à dignidade e ao valor da mulher como pessoa. (Trecho do julgado: STJ – REsp: 1643051 MS 2016/0325967-4, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Julgamento: 28/02/2018, S3 – TERCEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 08/03/2018 RJTJRS vol. 309 p. 235 RMPRJ vol. 71 p. 463)

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, por sua vez, denota que apenas o Boletim de Ocorrência é suficiente para caracterização do dano moral, ficando a cargo do agressor produzir prova que desconstitua o alegado:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO INDENIZATÓRIA – VIOLÊNCIA DO- MÉSTICA – FILHO MENOR – PRELIMINAR DE AUSÊNCIA DE DIALETICI- DADE – INDEPENDÊNCIA DAS ESFERAS CRIMINAL E CÍVEL – COMPRO- VAÇÃO DOS FATOS – RESPONSABILIDADE CIVIL – DANO MORAL – QUANTUM INDENIZATÓRIO- As razões de apelação se prestam à contraposição efetiva dos fundamentos do decisum, a viabilizar o conhecimento da irresignação recursal por este egrégio Tribunal.- Nos termos do art. 985 do CC, a responsabilidade civil é indepen- dente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existên- cia do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal, todavia, essa independência não é absoluta.- O boletim de ocorrência goza de presunção relativa de veracidade, que só pode ser desconstituído por meio de prova segura, a cargo da parte contrária.Se as provas produzidas nos autos deixam clara a prática de violência doméstica e familiar praticada pelo ex-marido contra sua ex-esposa, aquele deve ser responsabilizado pelos danos morais advindos do fato.- Com- provados os episódios de violência verbal, ameaças e perseguição vivenciados pelo filho do casal, resta caracterizada a responsabili- dade civil e, por conseguinte, o dever de indenizar.- O valor da in- denização por danos morais deve ser capaz de compensar todo o sofrimento derivado da violação da integridade física e psí- quica sofrida pela vítima, devendo ter como parâmetro a ex- tensão do dano.- Deve-se majorar a condenação em danos morais estipulada em valor inferior ao aplicado por essa Câmara. (TJMG – Apelação Cível 1.0000.20.514482-7/001, Relator(a): Des.(a) Pedro Aleixo , 16ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 27/01/2021, publicação da súmula em 28/01/2021).

Em outro julgamento, o TJMG destacou que uma vez confirmada a prática delitiva, não existe necessidade de se comprovar o dano de forma extensiva:

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO – DANOS MORAIS – RELACIONAMENTO ABUSIVO – AGRESSÕES VERBAIS E FÍSICAS SOFRIDAS PELA AUTORA – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – DEPOIMENTO DA VÍTIMA AMPARADO POR PROVA TESTEMUNHAL – DANO MORAL CARACTERIZADO – REPARAÇÃO DEVIDA. – Em se tratando de pedido baseado em responsabilidade civil, para reparação de danos morais, é necessário que estejam comprovados nos autos três elementos essenciais: a prática de ato ilícito, um dano e o nexo de causalidade entre uma e outra, conforme art. 186 do Código Civil. – A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial Repetitivo de controvérsia nº 1.675.874/MS, fixou tese no sentido de que a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher implica a ocorrência de dano moral in re ipsa, de modo que, uma vez comprovada a prática delitiva, é desnecessária maior discussão sobre a efetiva comprovação do dano. – Comprovado nos autos por depoimento de testemunha, que corrobora com as afirmações da vítima, que, durante o relacionamento que existia entre as partes, o réu, que era inicialmente casado, adotou comportamento violento contra a autora, praticando agressões verbais e físicas, em situações que inclusive extrapolaram o âmbito do lar do casal, é manifesto o dever do requerido de reparar a lesão moral suportada pela vítima, que teve sua honra e dignidade violadas. (TJMG – Apelação Cível 1.0000.22.247200-3/001, Relator(a): Des.(a) Domingos Coelho , 12ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 04/05/2023, publicação da súmula em 04/05/2023)

A presunção de dano moral é, portanto, uma medida de justiça que visa reconhecer e reparar o sofrimento infligido à mulher, mesmo na ausência de prova direta do abalo psíquico, vez que o sofrimento e a humilhação impostos à vítima são evidentes pela própria natureza da agressão.

Ademais, a presunção de dano moral em casos de violência doméstica reforça a função pedagógica do direito, desestimulando comportamentos abusivos e reafirmando o compromisso do Estado com a proteção da dignidade humana.

Neste sentido, deslinda Felipe Peixoto Braga Netto:

O direito do século XXI não se satisfaz apenas com a reparação dos danos. Mais importante do que tentar reparar – sempre imperfeitamente, como se sabe – os danos sofridos, a tutela mais adequada, e mais conforme à Constituição, é a tutela preventiva, que busca evitar que os danos ocorram ou que continuem a ocorrer. A função preventiva assume, portanto, neste século, fundamental importância.1

Ao reconhecer a gravidade das agressões e a necessidade de reparação, o ordenamento jurídico brasileiro dá um passo importante na consolidação dos direitos das mulheres e na promoção de uma sociedade mais justa e igualitária. A tutela do dano moral presumido é, assim, um instrumento valioso na luta contra a violência de gênero, representando um avanço significativo na proteção das vítimas e na responsabilização dos agressores.

Referências

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1.  BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. A dimensão preventiva da Responsabilidade Civil. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César (Orgs.). Direito privado e contemporaneidade: desafios e perspectivas do direito privado no século XXI. Belo Horizonte: D’Plácido, 2014, p.86.

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