INTRODUÇÃO
Dentro de um sistema jurídico fundado na tradição jurídica da civil law, é comum o movimento de constantes propostas legislativas, visando sobretudo equalizar a lei a realidade (deficiências, anseios, modificações nas instituições etc.) da sociedade. Trata-se de pêndulo natural dentro do sistema jurídico brasileiro e não é exclusivo de uma determinada categoria de leis.
Como um dos exemplos que se poderia apresentar é o Código de Processo Civil (CPC), Lei n. 13.105/2015, o qual é constantemente objeto de propostas legislativas que visam alterar o seu conteúdo, movimento presente desde o período em que sequer estava em vigência, o caso da Lei n. 13.256/2016, que alterou e revogou diversos dos seus artigos.
Para a matéria deste mês, pensei em elaborar um material de atualização e apresentar algumas propostas legislativas em andamento que afetam diretamente ou indiretamente o CPC, discorrendo brevemente sobre três Projetos de Leis (PL) e uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), analisando os seus respectivos objetivos e conteúdos.
PL 917/2024 (GRATUIDADE DE JUSTIÇA)
Apresentado em 21 de março deste ano, o PL 917/2024 acrescenta o § 9º ao art. 98 do CPC, dispondo que “terá direito à gratuidade da justiça os pacientes em tratamento do câncer, deficientes físicos ou pessoas com transtornos do espectro autista”.
A proposta é de Luciano Galego (PL-MA), que, em sua justificativa, sustentou que, em síntese, pessoas nas condições da redação do parágrafo podem encontrar barreiras sociais e financeiras ao acesso à justiça: (1) para pessoas em tratamento do câncer, há batalha árdua ao tratamento da doença e, também, aos elevados custos para medicamentos, procedimentos e cuidados; (2) no caso das pessoas com deficiência física, há obstáculos sociais que dificultam o seu pleno exercício da cidadania; e (3) sobre as pessoas com transtorno do espectro autista (TEA), necessitam de suporte para zelar por questões legais e judiciais.
Farei comentário mínimo sobre esse PL, visto que (1) se trata de um tema extremamente sensível, (2) entendo que não é meu lugar de fala, afinal, não possuo em meu meio qualquer pessoa nessas condições e (3) não quero ser indelicado ou desrespeitoso com aqueles que estão enquadrados nas hipóteses da redação do PL.
A redação do caput, do art. 98, do CPC, já contempla a gratuidade de justiça em sua forma ampla, independente do quadro pessoal de quem a requer. Na prática, é usual que magistrados solicitem diversos documentos a fim de averiguar a veracidade da alegação de hipossuficiência, contrariando o previsto no § 3º, do art. 99, do CPC – o que ocorre, penso, pelo mau uso dessa instituição, requerida desenfreadamente, sobretudo, em situações que as pessoas possuem condições financeiras para arcar com os valores do processo (ainda que não todos, o caso do § 5º, do art. 98, do CPC).
Embora a proposta seja louvável por se preocupar com pessoas nessas condições, penso que o novo § 9º, do art. 98, do CPC (1) é redundante, afinal, a disposição do caput já as abrangeria e (2) é limitada, porquanto, na forma como a PL foi apresentada, exclui-se demais pessoas que enfrentam os mesmos dilemas, porém com doenças ou condições especiais não dispostas na redação.
A meu ver, é uma boa proposta que necessita de revisão na sua redação. Atualmente, está aguardando parecer do relator da Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência (CPD).
PL 912/2024 E PL 1.364/2024 (SENTENÇA)
Existem dois PLs que alteram disposições relacionadas à sentença, os PL 912/2024, no art. 485 do CPC, e PL 1.364/2024, no art. 489 do CPC. Falarei sobre ambos de forma sequencial e, ao final, apresentarei as minhas considerações.
Apresentado em 21 de março deste ano, de autoria de Kim Kataguiri (União/SP), o PL 912/2024 propõe o § 8º, ao art. 485, do CPC: “não caracteriza abandono processual a ausência do autor na audiência de conciliação quando o réu não estiver presente”. Em síntese, na justificativa, apresenta que a mera ausência do autor, quando também o réu não se fizer presente, não é suficiente para caracterizar a sua vontade de não mais querer continuar com a demanda. Atualmente o projeto está aguardando designação de relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.
O PL 1.364/2024, proposto por Ricardo Silva (PSD/SP), em 20 de abril de 2024, acrescenta o § 4º, ao art. 485, do CPC: “nas causas cujo valor não exceda quarenta vezes o salário mínimo nacional, fica dispensado o relatório”. Aduz, na sua justificativa, que o PL visa simplificar e desburocratizar o Processo Civil, economizando tempo na elaboração de sentenças em causas “simples”, isso é, aquelas compreendidas até 40 (quarenta) salários-mínimos, diante da sobrecarga de processos em tramitação no Poder Judiciário. Atualmente o projeto está aguardando designação de relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.
Em relação ao PL 912/2024, parece haver confusão entre instituições do Processo Civil. Explico. A audiência de conciliação (ou de mediação), pensando no procedimento comum, está prevista no art. 334 do CPC. Supondo que não seja a hipótese do § 4º, do art. 334, do CPC (não realização de audiência), o não comparecimento injustificado do autor intimado não caracteriza “abandono da causa”, mas resulta na aplicação de multa (até dois por cento da vantagem econômica pretendida ou do valor da causa) por ser considerado ato atentatório à dignidade da justiça, conforme § 8º, do art. 334, do CPC.
Dito de outra forma, não há previsão legal para a extinção por abandono na hipótese construída pelo PL, aliás, em igual sentido entendem os Tribunais[1][2]. A proposta, penso, teria lógica se direcionada ao procedimento dos Juizados Especiais (Lei n. 9.099/95), em que, de fato, existe a previsão de que o processo será extinto caso o autor deixe de comparecer a qualquer das audiências (art. 51, I, da Lei n. 9.099/95).
Agora, sobre o PL 1.364/2024, esse me causa certa preocupação. A proposta está alinhada com a elevação da quantidade de processos tramitando no Poder Judiciário. Com razão, esse quadro é assombroso e é objeto de estudo por diversos pesquisadores. Todavia, alguns cuidados devem ser tomados.
Pela minha interpretação sobre a justificativa do PL, parece-me que a proposta estabelece uma linha direta de analogia entre o procedimento comum e o procedimento dos Juizados Especiais Cíveis – especialmente a limitação de 40 (quarenta) salários-mínimos, cf. art. 8º, I, da Lei n. 9.099/95. Primeiro erro. São procedimentos distintos, com particularidades distintas e que devem ser conduzidos em suas distinções. No caso dos Juizados Especiais Cíveis, a dispensa de relatório na sentença (art. 38 da Lei n. 9.099/95) foi uma opção legislativa pensada para as nuances desse procedimento (art. 2º da Lei n. 9.099/95).
O relatório é parte fundamental da sentença. Parafraseando as ideias do Prof. Carlos Frederico Bastos Pereira, “o relatório registra os principais acontecimentos do processo e por meio dele o juiz mostra para as partes e para a sociedade em geral que estudou o caso prestes a ser decidido; […] o relatório tem condão de delimitar e organizar o material que constará da fundamentação”[3]. Estou plenamente de acordo com o referido trecho, o relatório nos entrega o aprofundamento do juiz na causa, sua atenção às particularidades dos fatos e o caminho da sua fundamentação. O relatório é, portanto, elemento indispensável da sentença.
O segundo erro, penso, é acreditar que a dispensa da elaboração do relatório entregaria maior celeridade ao Poder Judiciário. Discordo. Uma das primeiras obras de processo que li, ainda durante a minha graduação, foi a “Técnica processual e tutela dos direitos”[4], do Prof. Luiz Guilherme Marinoni. Entre as diversas interpretações que posso aplicar a partir de suas lições está a de que a técnica do processo não pode ser prejudicada em nome de corrigir deficiências estruturais-funcionais do Poder Judiciário, como no caso, números de processos em tramitação e celeridade na prestação da tutela jurisdicional.
Se existem problemas estruturais-funcionais no Poder Judiciário, e existem, eles deverão ser identificados e corrigidos a partir das suas origens e não do prejuízo da técnica processual. Se o Processo Civil puder ser qualificado, isso é, aprimorado, para contribuir para a solução desses problemas, ótimo, entrementes, não é o presente caso, visto que a dispensa do relatório da sentença faria o sentido oposto.
Apenas para concluir a linha de raciocínio do parágrafo anterior, e não alongar demais neste ponto: (1) nada adianta dispensar o relatório da sentença para o processo ser mais célere se, hipoteticamente, até a fase decisória, houve lapsos de meses para movimentações internas ou cumprimentos de atos; (2) o valor/peso da tutela jurisdicional prestada em “hard cases” ou em “easy cases” é o mesmo, consequentemente, a sentença construída para uma “causa simples” deverá ter os mesmos cuidados daquela para as “causas complexas” (vice-versa).
PEC 30/2024 (ORALIDADE)
Por fim, no início deste mês, foi apresentada a PEC 30/2024. De autoria de vinte e sete senadores, a proposta objetiva incluir parágrafo único, ao art. 133, da Constituição Federal, disposição que versa sobre a advocacia. Conforme redação: “ao advogado é assegurado o direito de sustentação oral em qualquer sessão de julgamento, perante tribunais de qualquer natureza, sob pena de nulidade do julgamento”.
Na justificação, os autores apresentam que a proposta objetiva garantir o direito de sustentação oral, potencializando a garantia fundamental do acesso à justiça e da proteção judicial efetiva. Apontaram que tal garantia vem sendo descumprida por diversos órgão judiciais, afetando diretamente o direito do advogado. Ressaltaram a importância da sustentação oral para as decisões prolatadas no processo, especialmente para a interpretação e aplicação do direito.
O objeto da PEC rende pelo menos uma matéria exclusiva desta coluna, pois aborda diversos assuntos, como (1) oralidade, (2) prerrogativas do advogado, (3) sustentação oral e processo nos Tribunais Superiores, entre outros. Pontuarei o essencial para não alongar ainda mais este conteúdo.
A oralidade não é uma mera faculdade processual. Historicamente, por exemplo, a forma do processo era predominantemente oral, como na Grécia Antiga (cf. os logógrafos) e, para a base dos traços do nosso modelo atual, no direito romano. Assim, mais do que um princípio, a oralidade já foi uma forma do processo.
Nas palavras dos Profs. Eduardo Cambi, Rogéria Dotti, Paulo Eduardo D’Arce Pinheiro, Sandro Gilbert Martins e Sandro Marcelo Kozikoski, “a oralidade é um instrumento indispensável para aproximar a administração da justiça ao cidadão, de forma a incorporar a presença jurisdicional ao cotidiano das pessoas e para que o juiz também possa realizar um papel mais assertivo e resolutivo no processo”[5].
Com toda razão, a oralidade no processo constitui um instituto processual indispensável, fulcral para a demonstração de suas razões e formação do convencimento do julgador. A iniciativa dos Senadores é louvável e reveste de força constitucional a sustentação oral. Atualmente, a PEC está aguardando a designação de relator na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.
Deixo um abraço e aguardo vocês nas minhas redes sociais (@guilhermechristenmoller) para discorrermos um pouco mais sobre o conteúdo da matéria deste mês e sugestões para as próximas. Vejo vocês em setembro.
Referências
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1. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE COBRANÇA. AUDIÊNCIA DE CONCILIAÇÃO. AUSÊNCIA DO AUTOR. ABANDONO DA CAUSA. NÃO CONFIGURADO. SENTENÇA MANTIDA. 1. O não comparecimento do autor não constitui ônus, mas o simples desinteresse em entabular acordo com a parte contrária. 2. A ausência da autora na audiência de conciliação, não corresponde a ausência do interesse de agir, que é condição para o regular exercício do direito de ação, não significando, também, abandono da causa a ensejar o decreto de extinção do processo. 3. A única penalidade prevista pelo Código para o não comparecimento injustificado da parte autora à audiência de conciliação é a aplicação de multa de até 2% da vantagem econômica pretendida ou do valor da causa em favor da União. 4. RECURSO DE APELAÇÃO CÍVEL CONHECIDO E DESPROVIDO. TJ-GO – Apelação Cível: 5760775-38.2022.8.09.0071 HIDROLÂNDIA, Relator: Des(a). WILLIAM COSTA MELLO, 1ª Câmara Cível, Data de Publicação: (S/R) DJ.
2. APELAÇÃO CIVEL. AÇÃO REIVINDICATÓRIA. NÃO COMPARECIMENTO DOS AUTORES À AUDIÊNCIA DE CONCILIAÇÃO. CITAÇÃO DO REQUERIDO. INÉRCIA DOS AUTORES. EXTINÇÃO POR ABANDONO. NECESSIDADE DE INTIMAÇÃO PESSOAL. NÃO OCORRÊNCIA. SENTENÇA DESCONSTITUÍDA. RECURSO PROVIDO. Sentença que extinguiu o processo, sem resolução do mérito, devido ao não comparecimento injustificado dos autores à audiência de conciliação – Descabimento. A ausência da parte na audiência de conciliação poderá ensejar aplicação da multa prevista no § 8º do art. 334, do Código de Processo Civil, mas não a extinção do processo. A extinção do feito por abandono de causa, com fundamento na norma do art. 485, III, do CPC, pressupõe a prévia intimação pessoal da parte para suprir a falta, em 05 (cinco) dias, conforme estabelece o parágrafo 1º do referido dispositivo. TJ-MT 00002975920168110100 MT, Relator: GUIOMAR TEODORO BORGES, Data de Julgamento: 30/11/2022, Quarta Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 30/11/2022.
3. PEREIRA, Carlos Frederico Bastos. O relatório como elemento essencial da decisão judicial. Revista Eletrônica de Direito Processual, v. 21, n. 1, p. 186-212, 2022. p. 208.
4. MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 7. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2020.
5. CAMBI, Eduardo; DOTTI, Rogéria; PINHEIRO, Paulo Eduardo D’Arce; MARTINS, Sandro Gilbert; KOZIKOSKI, Sandro Marcelo. Curso de Processo Civil Completo. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2022. p. 929.