INTRODUÇÃO
O homem, desde seu nascimento, compreende que suas vontades são atendidas à medida que consegue expressá-las em seus atos. Um recém-nascido, por exemplo, ao sentir fome e chorar, é prontamente atendido por sua mãe e alimentado. Como não é diferente, segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro,1 as necessidades sociais são atendidas por meio da máquina administrava, concretizada na produção de atos administrativos, os quais produzem efeitos jurídicos imediatos, desde que observada a lei e as limitações do direito público. Esses atos essenciais ao funcionamento estatal estão, ainda, sujeitos ao controle do poder judiciário.
Por se tratar de ferramenta de expressão da Administração Pública, a natureza dos atos administrativos é composta por cinco elementos primordiais para sua existência, sendo eles: (1) sujeito ou competência, (2) finalidade, (3) forma, (4) motivo e (5) objeto. À vista disso, seu controle demanda uma análise dos referidos elementos, a fim de que a legalidade e os direitos dos cidadãos sejam garantidos. Assim, é diante desse cenário que o controle judicial emerge como ferramenta indispensável à fiscalização e cumprimento da aplicação dos princípios constitucionais frente a cada ato administrativo realizado.
1. DISTINÇÃO ENTRE ATOS ADMINISTRATIVOS VINCULADOS E DISCRICIONÁRIOS
De início, é mister afirmar que os atos administrativos gozam de presunção de legalidade e veracidade. Porém, tal presunção é relativa (iuris tantum). Da mesma forma, são dotados de imperatividade, coercibilidade e autoexecutoriedade, dentro dos limites legais e dos parâmetros da proporcionalidade e da razoabilidade.
Os atos administrativos são classificados em vinculados e discricionários. Os atos vinculados são aqueles, como o próprio nome já referencia, subordinados ou vinculados ao descrito em lei. Neste caso, o agente público não tem margem de escolha, deve seguir o dispositivo legal no sistema “chave-fechadura”, isto é, cabe ao mesmo apenas realizar a subsunção do ato ao comando legal. Todos os cinco elementos do ato vinculado (sujeito, forma, finalidade, motivo e objeto) já estão delineados pela lei, conforme esquematizado no quadro abaixo.
Ato Administrativo Vinculado |
1 Sujeito – Vinculado |
2 Forma – Vinculado |
3 Finalidade – Vinculado |
4 Motivo – Vinculado |
5 Objeto – Vinculado |
Os atos administrativos discricionários se aplicam nas hipótese em que o ordenamento jurídico “deixa certa margem de liberdade de decisão diante do caso concreto, de tal modo que a autoridade poderá optar por uma dentre várias soluções possíveis, todas válidas perante o direito”.2 Na prática, a discricionariedade recai sobre dois elementos do ato: o motivo e o objeto, conforme quadro abaixo.
Ato Administrativo Discricionário |
1 Sujeito – Vinculado |
2 Forma – Vinculado |
3 Finalidade – Vinculado |
4 Motivo – Discricionário |
5 Objeto – Discricionário |
Assim, os atos administrativos discricionários são aqueles em que os agentes públicos gozam da possibilidade de tomada de decisão mais livre, desde que seja a que melhor satisfaça o interesse público, segundo a questão concreta. O que se leva em conta é o mérito administrativo, ou seja, a ponderação de valores e das oportunidades que permeiam a prática do ato. Como já mencionado, tais atos existem a fim de suprir as lacunas deixadas pela própria lei, objetivando uma gestão transparente, competente e focada nos interesses da coletividade. O motivo e o objeto constituem os elementos de discricionariedade, também chamados de “mérito do ato administrativo discricionário”, sendo que o sujeito, a finalidade e a forma são vinculados ou já descritos pela lei, não havendo margem de discricionariedade nestes elementos.
2. DO CONTROLE DO ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO
A Administração Pública já realiza o autocontrole, manifestado através da autotutela, característica que, por iniciativa própria ou através de provocações dos demais interessados, revê seus atos quanto à legalidade e conveniência. Contudo, deve, ainda, ser controlada por agentes externos (como o judiciário), com vistas a garantir a evolução do Estado Democrático de Direito, posto que, o passado absolutista, cuja vontade do rei era inquestionável, serve como eterno memorial de um tempo que não deve voltar. Assim, o controle judicial pode ser definido como a capacidade do Poder Judiciário de examinar os atos administrativos praticados pela Administração Pública e seus agentes, a fim de garantir sua legalidade e conformidade com os demais princípios constitucionais.
Nesse sentido, relembra Odete Medauar que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789/França), já continha, no art. 15, o seguinte preceito: “a sociedade tem o direito de pedir conta, a todo agente público, quanto à sua administração”.3 Os direitos só serão efetivamente assegurados se o Estado também estiver submetido à fiscalização e controle. Assim, em oposição ao controle administrativo, que é exercido internamente pela própria Administração Pública, o controle judicial tem sua atuação externa. Essa prática é indispensável para manter a legalidade dos atos e salvaguardar os direitos dos cidadãos frente a possíveis arbitrariedades da Administração Pública.
Neste sentido, visando a segurança jurídica e a defesa dos direitos fundamentais, nos termos do artigo 5º, XXXV, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu que o Poder Judiciário não será limitado apenas às apreciações das lesões de direitos individuais, coletivos ou difusos, mas também a ameaça contra os mesmos. E tendo o Brasil optado pelo sistema de jurisdição una, cabe, pois, apenas ao Judiciário a resolução definitiva dos litígios de direitos, sejam quais forem eles, inclusive aqueles em que a Administração Pública seja parte.
No contexto do controle do ato administrativo, surge a questão do alcance da análise dos atos discricionários pelo judiciário. O princípio da separação dos poderes é quem impede a intromissão de um nas atribuições do outro, no caso em tela, do Judiciário nas funções do Executivo. Em um primeiro momento, é dever do Poder Judiciário respeitar a discricionariedade administrativa, ou seja, a margem de liberdade que a Administração Pública detém para deliberar sobre conteúdos que versem sobre a “conveniência e oportunidade” ou “juízo de mérito” (motivo e objeto do ato discricionário). A intervenção judicial, nessa perspectiva, é provocada apenas em casos de ilegalidade.
No entanto, e se a escolha discricionária ainda que técnicamente legal, for desarrazoada ou desproporcional? Pode o judiciário intervir na decisão do administrador? Visualize a seguinte hipótese: um determinado municipío está passando por uma epidemia de dengue e não tem mais vagas nos hospitais para atender os seus cidadãos. Muitos inclusive estão com dengue hemorrágia e voltam para casa sem um atendimento médico adequado.
Neste período, o prefeito decide construir um zoológico no valor de 10 milhões de reais. O Ministério Público estadual ingressa com uma ação civil pública para impedir a construção do referido zoológico e pede que a verba comece a ser utilizada para a criação de novos leitos hospitalares para atender a demanda dos pacientes com dengue. Neste caso, pode o judiciário atender ao pedido do Ministério Público estadual?
Note que aqui está em discussão a escolha do objeto do ato administrativo discricionário. Do ponto de vista técnico não há nenhuma ilegalidade (pelo menos no sentido estrito) na construção do zoológico. O problema é que há o exercício de um mal critério, isto é, a escolha do administrador é desarrazoada e desproporcional.
A doutrina e a jurisprudência vem entendendo que em tais casos o judiciário pode intervir na decisão do administrador. A Administração Pública se submete aos Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade que vão além da analise superficial de uma legalidade tecnicista-literal. A discricionariedade, quando mal exercida, se transforma em arbitrariedade, o que se configura uma forma de abusividade e ilegalidade no sentido amplo. Neste sentido, seguem os julgados do STJ e STF:
CONTROLE JUDICIAL DO ATO ADMINISTRATIVO. POSSIBILIDADE. DECLARAÇÃO REALIZADA PELO PRÓPRIO CANDIDATO. USO DE DROGAS NA JUVENTUDE. FATO OCORRIDO HÁ VÁRIOS ANOS. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. POSTERIOR INGRESSO NO SERVIÇO PÚBLICO. CARGO DE PROFESSOR. RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE DO ATO RESTRITIVO. REEXAME. CABIMENTO.
A discricionariedade administrativa não se encontra imune ao controle judicial, mormente diante da prática de atos que impliquem restrições de direitos dos administrados, como se afigura a eliminação de um candidato a concurso público, cumprindo ao órgão julgador reapreciar os aspectos vinculados do ato administrativo, a exemplo da competência, forma, finalidade, bem como a observância dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade.
O Superior Tribunal de Justiça, ao examinar casos envolvendo a eliminação de candidatos na fase de investigação social de certame público para as carreiras policiais, já teve a oportunidade de consignar que a sindicância de vida pregressa dos candidatos a concursos públicos deve estar jungida pelos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.4 STJ – Agravo em Resp. nº 1806617 – DF (2020/0332967-0).
Agravo regimental no recurso extraordinário. Servidor público militar. Exclusão da Corporação. Ato administrativo. Controle judicial. Possibilidade. Princípios da razoabilidade e da proporcionalidade...
Não viola o princípio da separação dos poderes o controle de legalidade exercido pelo Poder Judiciário sobre os atos administrativos. 2. A Corte de origem, ao analisar o conjunto fático-probatório da causa, concluiu que a punição aplicada foi excessiva, restando violados os princípios da razoabilidade e proporcionalidade (STF – RE 609.184-AgR/RS, Rel. Min. Dias Toffoli, Dje 26/04/2013).5
Assim, o ato administrativo discricionário não é uma carta em branco ou salvo conduto para o agente público impor suas vontades pessoais. Na realidade é uma certa margem de liberdade que a legislação confere para o mesmo analisar qual, dentre as possíveis opções, seria a mais adequada ao atendimento das necessidades dos cidadãos. Caso ocorra uma decisão desarrazoada ou desproporcional, o poder judiciário pode intervir em tal decisão, a fim de ajustá-la aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade.
Ademais, um ato administrativo dessarazoado e desproporcional pode ser considerado ilegal em sentido amplo, por violarem princípios que regem a Administração Pública. De fato, abrindo ainda mais a análise, como tais pricipíos são abstraídos da Constituição Federal, pode-se concluir, como o faz a doutrina e a Suprema Corte alemã, que normas ou atos administrativos que violem a proporcionalidade são na realidade inconstitucionais, devendo serem objetos de controle e correção do poder judiciário.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O controle judicial dos atos administrativos é uma ferramenta importante para a garantia dos direitos dos cidadãos, bem como dos princípios que regem a Administração Pública. Fundamentado nos princípios constitucionais e administrativos, esse controle reforça a participação cidadã na defesa de seus interesses e, consequentemente, do interesse público.
Ainda que a tripartição dos poderes imponha limites, o Judiciário deve prosseguir com sua função natural de controle e resolução de conflitos, garantindo a atuação da Administração Pública dentro dos parâmetros legais e de razoabilidade e proporcionalidade.
Logo, a reflexão e discussão do tema apresentado fortalece os pilares do Estado Democrático de Direito e corrobora no contínuo esforço de se construir uma sociedade mais justa e confiante nas instituições públicas.
Referências
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1. Curso de Direito Administrativo, ed. Atlas, São Paulo (SP), 2020.
2. Curso de Direito Administrativo, ed. Atlas, São Paulo (SP), 2020.
3. Direito Administrativo Moderno, ed. Forum, Belo Horizonte (MG), 2021.
4. STJ SITE: CONTROLE DO ATO ADMINISTRATIVO – AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1806617 – DF (2020/0332967-0), disponível em: link.
5. STF: ATO ADMINISTRATIVO E PROPORCIONALIDADE – RE 609.184-AgR/RS, Rel. Min. Dias Toffoli, Dje 26/04/2013, disponível em: link.