Para a matéria deste mês, escolhi abordar um assunto que já enfrentei em momento anterior1 e que, também, foi objeto de um dos tópicos da minha tese de doutoramento – já em processo editorial para a publicação da sua versão comercial, ainda neste primeiro semestre de 2025. A ideia é chamar a atenção (ou pelo menos despertar a curiosidade) sobre a diferença entre o “acesso aos tribunais” e o “acesso à justiça”.
Algumas pessoas poderiam sugerir que essa minha defesa não passa de uma mera tautologia ou, na melhor das hipóteses, uma mera discussão semântica. Discordo veementemente. Penso que são situações distintas e que, embora tenham ligação em determinado grau, não devem ser confundidas.
Não é raro encontrar referências ao art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, como a norma fundamental relacionada ao acesso à justiça e, em extensão, ao art. 3º do Código de Processo Civil, como norma processual fundamental correlacionada. Penso que se trata de um equívoco epistemológico, fruto de uma realidade dogmaticamente diversa da atual que diminui a sua própria amplitude.
A disposição constitucional diz que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, ou seja, pela interpretação que se dá ao texto, o que se tem é uma proibição de estabelecer barreiras que prejudicam o direito ou que o impedem de ser assegurado – excetuando a justiça desportiva brasileira, em que se exige o esgotamento das suas instâncias, conforme art. 217, § 1º, da Constituição Federal2.
Dentro dessa delicada construção dogmática, parece que o Poder Judiciário foi alocado em posição de salvaguarda do sistema jurídico brasileiro. Está correto, afinal, torna possível acessar os tribunais para a discussão de matéria ferida ou ameaçada e até então, porventura, negligenciada por outros órgãos do Estado, inclusive, esse é o motivo de essa norma constitucional ser conhecida por primeiro como garantia da inafastabilidade da tutela ou do controle jurisdicional, a positivação do direito de ação, assegurando a separação dos poderes no Estado Democrático de Direito.3
O problema, penso, está em interpretar que essa garantia que se apresenta ao final seria, na verdade, a completude do acesso à justiça, ou seja, que seriam a mesma coisa. Isso está incorreto. A garantia fundamental prevista na Constituição Federal assegura que não serão estabelecidas barreiras para o acesso ao Poder Judiciário, isso é, garantindo o “acesso aos tribunais”. Por extensão, equiparar essa premissa ao “acesso à justiça” é diminuir toda a amplitude do tema, como comumente ocorre.4
Talvez, a origem dessa confusão epistemológica, acredito, está nos reflexos dos resultados de um período do Processo Civil italiano, conhecido por sistemático (iniciado em 1903, com a prolusione di Bologna, por Giuseppe Chiovenda), e que foi recepcionado pelo instrumentalismo brasileiro: acentuar o protagonismo das Cortes e do papel do processo judicial dentro do sistema jurídico, qualificando-o dentro da estrutura do Estado e fortificando as suas instituições.
Nesse cenário, a lógica seria a de que o acesso à justiça apenas ocorreria na presença de um processo judicial, o que tem a ver com a própria ideia de direito de ação.5 Aliás, muitos estudos sobre o tema “acesso à justiça” partem dessa premissa: problemas no processo e nas Cortes afetariam, consequentemente, o acesso à justiça. Um exemplo marcante sobre essa constatação é o estudo que deu origem ao eixo de pesquisa, o trabalho conduzido por Mauro Cappelletti6, evidenciado sobretudo nas duas primeiras ondas7 descritas no relatório conclusivo do Projeto Florença.
Não se pode ignorar, também, que a hipertrofia de modelos que fogem da estrita atividade do processo não é algo tão antigo, melhor dizendo, a flexibilização do Processo Civil para feições ainda incompreendidas e que desafiam a lógica tradicional é uma marca hodierna e crescente, de modo que o tema foi prejudicado em uma perspectiva temporal e escanteado por questões político-judiciárias (a exemplo de restringir a autonomia das partes em um regime de governo autoritário, como ocorreu na Itália e no Brasil).
Aí o motivo de defender a existência de um equívoco epistemológico, transcendente à mera semântica do termo “acesso à justiça”, fruto de um cenário e de uma realidade dogmaticamente diversa da atual, que diminui a sua própria amplitude. “Acesso à justiça” não é sinônimo de “acesso aos tribunais” e a dimensão do primeiro é muito mais ampla do que a do segundo.
Deixando a Itália de lado, sob a ênfase do cenário jurídico brasileiro, seguindo as linhas desenvolvidas por Carlos Alberto Carmona8, além da acentuação na figura do processo judicial pela dogmática processual, outra fonte de vinculação de ambas as garantias possui cunho político e está relacionado ao cenário no qual foi promulgada a Constituição de 1949, cuja literalidade do seu § 4º, do art. 1419, não é muito distante daquela do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal.
A disposição foi realmente projetada como forma de blindar que o Poder Judiciário deixasse de tomar conhecimento de assuntos cujas competências eram modificadas por decretos-leis para órgãos da administração com função jurisdicional.10 –11 Estabeleceu-se, outrossim, uma garantia fundamental de “acesso aos tribunais”, centrada no processo judicial, hipertrofiada pela processualística da época, até de forma correta, visto que era a realidade momentânea, com o aprimoramento de suas instituições e centralidade no ordenamento jurídico.12
No entanto, esse pensamento restritivo e excludente em favor do processo judicial não tem mais espaço, tampouco sentido, no atual pendular do Processo Civil, especialmente quando pensamos no modelo do sistema de justiça multiportas.13 Pensar que o “acesso à justiça” apenas teria sentido ou genuinamente ocorreria quando projetado na perspectiva do “acesso aos tribunais”, seria o mesmo que excluir todo o potencial do sistema de justiça multiportas.14
Por tudo isso, digo que no sentido que o sistema está admitindo a sua ampliação para essas novas dimensões que são contempladas no modelo multiportas, valeria pensar em uma releitura ainda mais aprofundada sobre a ideia de um verdadeiro “acesso à justiça” que permita, além da ocorrência e a qualidade de formas de solução de conflitos diversas (conciliação, mediação, arbitragem etc.)15, questão já dogmaticamente aceita e consolidada naquilo que situei como a primeira fase do sistema de justiça multiportas, a expansão16 e atuação jurídica em feições “fora” do Poder Judiciário, como nas serventias extrajudiciais, ou em espaços jurisdicionais pouco conhecidos ou consolidados, a exemplo dos virtuais, em diversas áreas jurídicas, rompendo a falsa ideia de que o “acesso aos tribunais” teria a mesma amplitude do “acesso à justiça”.
A divagação que deixo para reflexão neste mês é a de que, nesse amplo cenário, no qual se projeta o “acesso à justiça”, o Poder Judiciário é um fragmento do sistema brasileiro de justiça multiportas, da mesma forma que o “acesso aos tribunais” é um fragmento do “acesso à justiça”17.18
Deixo um abraço e aguardo vocês nas minhas redes sociais (@guilhermechristenmoller) para discorrermos um pouco mais sobre o conteúdo da matéria deste mês e sugestões para as próximas. Em breve, trarei novidades sobre o lançamento da minha obra. Vejo vocês no próximo mês.
Referências
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1. MÖLLER, Guilherme Christen. A garantia de inafastabilidade da tutela jurisdicional como a garantia de inafastabilidade do Estado aos conflitos. In: JUNIOR, Arthur; ASENSI, Felipe; NOHARA, Irene; RABELLO, Leonardo. (Orgs.). Visões constitucionais interdisciplinares. Rio de Janeiro: Ágora21, 2019. p. 19-31.
2. Sobre esse tema: LEMOS, Edson; ANJOS, Rafael Maas dos. A exigência da justiça desportiva: inconstitucionalidade ou mitigação do princípio da inafastabilidade da jurisdição? Revista do CEJUR/TJSC, v. 6, n. 1, p. 272-294, 2018.
3. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 433. “O princípio da proteção judiciária, também chamado princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, constitui em verdade, a principal garantia dos direitos subjetivos. Mas ele, por seu turno, fundamenta-se no princípio da separação de poderes, reconhecido pela doutrina como garantia das garantias constitucionais. Aí se junta uma constelação de garantias: as da independência e imparcialidade do juiz, a do juiz natural ou constitucional, a do direito de ação e de defesa”.
4. NAVARRO, Trícia. Justiça Multiportas. Indaiatuba: Editora Foco, 2024. p. 30-32.
5. DIDIER JR., Fredie; FERNANDEZ, Leandro. Introdução à justiça multiportas: sistema de solução de problemas jurídicos e o perfil do acesso à justiça no Brasil. Salvador: JusPodivm, 2024. p. 273.
6. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Access to Justice: the Worldwide Movement to Make Rights Effective: a General Report. Milano: Giuffrè, 1978.
7. OLIVEIRA FILHO, Márcio Antônio; OLIVEIRA, Ana Caroline Portes de; CHAVES, Jéssica Galvão; TEODORO, Warlen Soares. A contribuição da Comissão Interamericana de Direitos Humanos para o acesso à justiça qualitativo. Revista de Direito Internacional, v. 10, n. 2, p. 212-224, 2013. p. 214/215.
8. CARMONA, Carlos Alberto. Comentário ao art. 5º, XXXV, da Constituição Federal. In: MORAES, Alexandre de. et al. Constituição Federal Comentada. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 152-162. P. 153-155.
9. BALEEIRO, Aliomar; SOBRINHO, Barbosa Lima. Constituições brasileiras. 3. ed. Brasília: Senado Federal, 2012. v. 5: 1946. p. 81. “Art. 141. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos têrmos seguintes: § 4º A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual”.
10. DUARTE, José. A Constituição brasileira de 1946: exegese dos textos à luz dos trabalhos da Assembléia Constituinte. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1947. v. 3. p. 17.
11. Para contextualização histórica, a referida disposição é um dos reflexos advindos após o governo de Getúlio Vargas, no qual o Brasil viveu um período marcado pela concentração de poder no Executivo e pela suspensão de várias garantias democráticas. Esse período de exceção teve início na Revolução de 1930, que levou Vargas ao poder e culminou no Estado Novo, no qual foi implantada a Constituição de 1937, conhecida como “Polaca” (inspirada na Constituição polonesa de 1935), a qual conferia ao presidente amplos poderes, limitando o papel do Legislativo e do Judiciário. A promulgação da Constituição de 1946 foi um marco para a redemocratização do Brasil, restabelecendo princípios democráticos e criando um ambiente de maior participação popular.
12. PINHO, Humberto Dalla Bernardina de; QUEIROZ, Pedro Gomes de. As garantias fundamentais do processo e o instituto da mediação judicial: pontos de tensão e de acomodação. RJLB, n. 5, p. 849-913, 2017. p. 868.
13. Também insistindo acerca da reinterpretação do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal a partir do sistema de justiça multiportas: Cf. MEDINA, José Miguel Garcia. Constituição Federal Comentada. 8. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2024. E-book (não paginado).
14. PELUSO, Antonio Cezar. Mediação e conciliação. Revista de Arbitragem e Mediação, v. 8, n. 30, p. 15-19, 2011. p. 15.
15. RICHTER, Bianca Mendes Pereira. O sistema judiciário brasileiro frente aos meios extrajudiciais na solução de conflitos. A Barriguda, v. 6, n. 2, p. 356-367, 2016. p. 359/360.
16. Sobre o termo: DIDIER JR., Fredie; FERNANDEZ, Leandro. Introdução à justiça multiportas: sistema de solução de problemas jurídicos e o perfil do acesso à justiça no Brasil. Salvador: JusPodivm, 2024. p. 127/128.
17. PINHO, Humberto Dalla Bernardina de; ALVES, Tatiana Machado. Novos desafios da mediação judicial no Brasil: a preservação das garantias constitucionais e a implementação da advocacia colaborativa. Revista de Informação Legislativa, n. 205, p. 55-70, 2015. p. 61. “Assim, o acesso à justiça não comporta apenas o direito do jurisdicionado colocar sua pretensão perante o Poder Judiciário, mas também engloba a própria tutela (proteção) jurisdicional (adequada, tempestiva e, principalmente, efetiva) a quem tiver razão”.
18. DIDIER JR., Fredie; FERNANDEZ, Leandro. Introdução à justiça multiportas: sistema de solução de problemas jurídicos e o perfil do acesso à justiça no Brasil. Salvador: JusPodivm, 2024. p. 277. “No atual cenário normativo, a compreensão do conteúdo do direito fundamental de acesso à justiça deve ser consideravelmente distinta daquela presente à época da Constituição de 1988. Seu âmbito de proteção tornou-se mais complexo e, diante da existência de um sistema de justiça multiportas, não mais está necessariamente atrelado ao Poder Judiciário”.