CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O Estatuto Digital da Criança e do Adolescente (ECA Digital), informalmente conhecido por Lei Felca, é resultado do Projeto de Lei (PL) 2.628/2022, aprovado em trâmite de urgência em 2025 após o vídeo-denúncia do influenciador, Felipe Bressanim Pereira — conhecido como Felca —, publicado em 6 de agosto de 2025. O vídeo do influenciador digital acerca da adultização de crianças1 repercutiu nacionalmente e trouxe à sociedade o necessário debate acerca da exposição de crianças na internet, a ponto do tema ser veiculado pelos principais veículos de informação como BBC2, CNN3, Veja4, entre outros.
Salienta-se que o estatuto foi publicado em 18 de setembro de 2025, com vetos parciais e vacatio legis de 6 meses definida pela medida provisória 1.319/20255 para fins de adaptação das plataformas.
Em linhas gerais, o ECA Digital tem como finalidade garantir a proteção integral de crianças e adolescentes no ambiente virtual, impondo aos fornecedores de produtos e serviços de tecnologia a adoção de medidas preventivas desde a concepção até a operação de suas plataformas. Busca-se reduzir os riscos de exposição a conteúdos e práticas nocivas, como exploração e abuso sexual, violência, assédio e bullying virtual, indução ao uso de drogas, automutilação e suicídio, além do acesso a jogos de azar, bebidas alcoólicas, tabaco, conteúdos pornográficos e práticas publicitárias enganosas. Entre as medidas estabelecidas pela lei, destaca-se a remoção imediata de conteúdos ilícitos, com a obrigação de notificação às autoridades competentes, nacionais e internacionais, sempre que identificados casos de abuso sexual, sequestro, aliciamento ou exploração.
Outro ponto central é a verificação de idade, que passa a ser obrigatória e deve ser realizada por mecanismos confiáveis a cada acesso, vedando a simples autodeclaração do usuário. Dessa forma, crianças e adolescentes de até 16 anos devem ter suas contas em redes sociais vinculadas a um responsável, que contará com ferramentas de supervisão parental de fácil utilização, configuradas por padrão com o nível máximo de proteção. Essas ferramentas objetivam bloquear interações com adultos não autorizados, limitar recursos que estimulem o uso excessivo, controlar sistemas de recomendação e restringir o compartilhamento de geolocalização, além de permitir o gerenciamento da conta, definição de regras de privacidade e monitoramento de interações.
A norma também proíbe as chamadas “caixas de recompensas” (loot boxes) em jogos eletrônicos, por entender que incentivam comportamentos compulsivos.
Em síntese, a lei reforça o compromisso com um ambiente digital mais seguro, saudável e adequado ao desenvolvimento infantojuvenil.
AVANÇOS NA PROTEÇÃO DA CRIANÇA E ADOLESCENTE NO AMBIENTE DIGITAL
O ECA Digital prevê direitos da criança e do adolescente no meio digital, e correspectivamente, uma série de deveres aos pais ou responsáveis legais, e aos fornecedores de produtos ou serviços de tecnologia da informação, ou seja, produtos e serviços digitais, “tais como aplicações de internet, programas de computador, softwares, sistemas operacionais de terminais, lojas de aplicações de internet e jogos eletrônicos ou similares conectados à internet ou a outra rede de comunicações” (art. 2º, I)6.
A opção legislativa por um rol exemplificativo tem dupla finalidade, qual seja, facilitar a incidência da norma aos casos listados, bem como denotar que a norma tem aplicabilidade para produtos e serviços futuros, face a constante evolução da tecnologia. Nessa linha de intelecção, a Lei de Moore dita que – “a capacidade dos computadores dobra a cada dois anos”7.
No tocante, aos fornecedores de produtos ou serviços de tecnologia da informação, os deveres decorrentes do ECA Digital são aplicáveis: a) se o produto ou serviço for direcionado a crianças e a adolescentes; b) se de acesso provável por crianças e adolescentes, em se considerando: b.1) a atratividade do produto ou serviço para crianças e adolescentes; b.2) a facilidade de acesso e utilização do produto ou serviço por crianças e adolescentes; b.3) o risco do produto às crianças e adolescentes, seja à privacidade, à segurança ou ao desenvolvimento biopsicossocial (especialmente no caso de produtos ou serviços que tenham por finalidade permitir a interação social e o compartilhamento de informações em larga escala entre usuários em ambiente digital).
No que se refere aos direitos das crianças e adolescente, o art. 3º do ECA Digital garante a “proteção prioritária desses usuários, ter como parâmetro o seu melhor interesse e contar com medidas adequadas e proporcionais para assegurar um nível elevado de privacidade, de proteção de dados e de segurança”8. Complementarmente, o parágrafo único do artigo, ainda faz referência ao direito à educação, orientação e acompanhamento, quanto ao uso da internet e à sua experiência digital, que deve ser prestado pais ou responsáveis legais.
Da responsabilidade dos pais
A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu art. 227, que a família, a sociedade e o Estado têm o dever de assegurar à criança e ao adolescente proteção integral, visando ao seu desenvolvimento físico, moral e intelectual9. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) reforça em seu art. 1º, a garantia da proteção integral à criança e ao adolescente10.
Em razão da proteção integral ter maior eficácia no ambiente familiar, reforça-se a importância dos deveres atribuídos pelo ECA Digital, aos pais ou responsáveis legais, como educação, orientação e acompanhamento (art. 3º).
Cumpre destacar que o papel dos pais na educação digital é fundamental porque são eles os primeiros mediadores da relação das crianças com a tecnologia. Cabe à família orientar sobre o tempo de tela, o uso responsável das redes sociais, a importância da privacidade e os riscos do compartilhamento de informações pessoais. Mais do que impor regras, os pais devem dialogar de forma sensível e informada, exercendo um acompanhamento ativo e afetivo que incentive a autonomia consciente das crianças no mundo digital. Esse cuidado cotidiano reforça a proteção contra riscos como o uso indevido de imagens e a exposição a conteúdos inadequados.11
Ainda, incumbe aos pais ou responsáveis legais, o “exercício do cuidado ativo e contínuo, por meio da utilização de ferramentas de supervisão parental adequadas à idade e ao estágio de desenvolvimento da criança e do adolescente” (art. 3, p. único, ECA Digital).12
A proteção integral, na seara infantojuvenil, é mais eficaz no ambiente familiar do que em qualquer outro, razão pela qual impõe-se aos pais o dever de tutela do acesso à rede mundial de computadores, na medida do possível, sabendo-se que, mesmo com atuação contínua, os problemas podem surgir. Contudo, o acompanhamento parental permanente tende a contornar várias situações danosas e, junto com o ECA digital, se bem implementado, é possível reduzir as chances de vitimização de crianças e adolescentes13.
Caso os pais ou responsáveis legais se omitam de seu dever de orientação e acompanhamento, sequer estarão cientes de quando as crianças e adolescentes pelos quais são responsáveis foram vítimas de atitudes lesivas ou agentes de atos infracionais, desde bullying, até práticas de violência sexual.
A internet consolidou-se como ambiente fértil para práticas de violência sexual contra crianças e adolescentes. O child grooming, processo sistemático de aliciamento digital em que adultos conquistam gradualmente a confiança de menores para fins de exploração sexual, tem apresentado crescimento exponencial, conforme documentado em relatórios da Europol (2023) e da Interpol (2022). Este fenômeno caracteriza-se por técnicas psicológicas sofisticadas de manipulação, frequentemente envolvendo múltiplas plataformas e estratégias de isolamento da vítima14.
Complementarmente, apesar de a obrigação de retirar o conteúdo recair sobre os fornecedores dos aplicativos, o ECA Digital é claro no sentido de que isso não exime os pais e responsáveis de atuarem para impedir a exposição às situações violadoras de crianças e adolescentes, assim como qualquer um que se beneficiar financeiramente da produção ou distribuição pública de qualquer representação visual desse público15.
Por fim, embora a lei não preveja sanções aos pais ou responsáveis legais, nada obsta, que a depender de suas condutas sejam destituídos do podem familiar ou revogada sua guarda, bem como, caso haja tipicidade, seja reconhecido crime, em virtude de ação ou omissão imprópria, já que os responsáveis se enquadram na condição de garantidor.
Da responsabilidade dos fornecedores de produtos ou serviços de tecnologia da informação
Inicialmente, destaca-se que o ECA Digital promoveu uma mudança paradigmática, “saindo de um modelo predominantemente reativo para uma abordagem proativa e preventiva. A responsabilidade primária pela segurança, antes implicitamente delegada às famílias, é agora formalmente partilhada com as plataformas”.16
Dessa forma, emergem como deveres dos fornecedores de produtos ou serviços de tecnologia da informação os deveres de prevenção, de proteção, de informação e de segurança, em conformidade com o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente e da sua proteção integral, especial e prioritária. Para tanto os fornecedores devem adotar as medidas técnicas adequadas, inclusive mecanismos de segurança amplamente reconhecidos, que possibilitem à família e aos responsáveis legais prevenir o acesso e o uso inadequado por crianças e adolescentes.
A priori, cumpre destacar, conteúdos os quais os fornecedores devem evitar acesso, exposição, recomendação ou facilitação de contato:
I – exploração e abuso sexual;
II – violência física, intimidação sistemática virtual e assédio;
III – indução, incitação, instigação ou auxílio, por meio de instruções ou orientações, a práticas ou comportamentos que levem a danos à saúde física ou mental de crianças e de adolescentes, tais como violência física ou assédio psicológico a outras crianças e adolescentes, uso de substâncias que causem dependência química ou psicológica, autodiagnóstico e automedicação, automutilação e suicídio;
IV – promoção e comercialização de jogos de azar, apostas de quota fixa, loterias, produtos de tabaco, bebidas alcoólicas, narcóticos ou produtos de comercialização proibida a crianças e a adolescentes;
V – práticas publicitárias predatórias, injustas ou enganosas ou outras práticas conhecidas por acarretarem danos financeiros a crianças e a adolescentes; e
VI – conteúdo pornográfico.
Considerando que o público infantojuvenil representa um segmento relevante do mercado de consumo de jogos eletrônicos, o Marco Legal dos Jogos Eletrônicos já previa expressamente que os fornecedores desses produtos ou serviços devem assegurar ambientes que não promovam discriminação, exploração, violência, crueldade ou opressão contra crianças e adolescentes.17
Alguns dos conteúdos como aparente exploração, de abuso sexual, de sequestro e de aliciamento, impõe desde logo, o dever de remoção deste conteúdo pelos fornecedores, bem como comunicação às autoridades nacionais e internacionais competentes (art. 27).
Cumpre destacar que o dever de remoção de ofício foi ampliado, na medida em que em “junho deste ano, o STF reconheceu a inconstitucionalidade parcial do art. 19 do marco civil da internet (lei 12.965/14), que condicionava a responsabilização civil das plataformas digitais à existência de prévia ordem judicial para remoção de conteúdo”.18 Assim, passa-se a adotar um modelo de notice and take down — derrubada dos conteúdos assim que notificados.
A derrubada de conteúdo enfrentará alguns pontos controvertidos como: a) conteúdos não flagrantemente ilícitos e que aparece em sites não destinados a crianças, embora de provável acesso por elas; b) dificuldade de caracterização de determinados conteúdos, por exemplo não há uma definição clara do conceito de pornografia que pode variar conforme o usuário. Diante desses pontos controvertidos, a plataforma terá um dilema: não remover o conteúdo, e ser sancionada com base no ECA Digital; ou remover o conteúdo, e ser processada pelo autor do conteúdo por violação da liberdade de expressão e descumprimento contratual.19
Mediante ao exposto, verifica-se que há uma série de conteúdos e produtos inadequados a crianças e adolescentes, o que impõe que os fornecedores de produtos ou serviços de tecnologia da informação devem adotar medidas eficazes para impedir o seu acesso a estes (art. 9º), ainda lhes incumbe, o dever de proporcionar experiências adequadas a cada idade (art. 10). Ambas obrigações ensejam a necessidade de que adote mecanismos confiáveis de verificação de idade a cada acesso do usuário ao conteúdo, produto ou serviço, vedada a autodeclaração.
Complementarmente, a verificação de idade também é importante, para provedores de redes sociais, já que devem garantir que usuários de até “16 (dezesseis) anos de idade estejam vinculados ao usuário ou à conta de um de seus responsáveis legais” (art. 24)20.
Salienta-se que a coleta de idade, consiste em dado pessoal, embora não seja um dado sensível, mas já revela outro dever dos fornecedores, concernente a proteção de dados pessoais (art. 7º), inclusive com os fornecedores adotando, por padrão, configuração no modelo mais protetivo disponível em relação à privacidade e à proteção de dados pessoais.
Como mecanismos de aferição de idade podem se tornar um ponto sensível, o poder público pode assumir importante função de regular, certificar e promover soluções técnicas de verificação de idade, assegurada a participação popular, por mecanismos de participação social como consultas públicas.
A despeito de eventual regulação posterior, desde logo, o ECA Digital consigna que provedores de lojas de aplicações de internet e de sistemas operacionais de terminais deverão tomar medidas proporcionais, auditáveis e tecnicamente seguras para aferir a idade ou a faixa etária dos usuários, observada a Lei Geral de Proteção de Dados, como dados coletados para aferição de idade serem utilizados somente para tal finalidade.
Todavia, independentemente, dos deveres atribuídos aos sistemas operacionais e pelas lojas de aplicações, persiste, aos demais fornecedores o dever de implementar mecanismos próprios para impedir o acesso indevido de crianças e de adolescentes a conteúdos inadequados para sua faixa etária.
Os fornecedores estão sujeitos a penalidades, caso haja descumprimento das obrigações do ECA Digital, como (art. 35): advertência, multa simples, suspensão temporária das atividades, e proibição de exercício das atividades. As referidas sanções devem ser aplicadas gradativamente.
A previsão de suspensão e proibição de exercícios gera um questionamento acerca da desproporcionalidade da medida. Tais medidas podem desagregar comunidades virtuais, enviando para clandestinidade e anonimização.
Supervisão Parental e Responsabilidade Compartilhada
Até o presente momento tem se centrado em deveres exclusivos dos fornecedores, mas há deveres que devem ser exercidos em cooperação dos fornecedores e dos responsáveis legais, como a supervisão parental, em que os fornecedores fornecem a ferramenta para utilização dos responsáveis.
Acrescenta-se que tais ferramentas devem ser de fácil utilização, sob pena de serem inócuas. Nessa linha de intelecção, uma pesquisa encomendada pelo Instituto Alana ao Datafolha revelou que apenas 5 em cada 10 brasileiros sabem utilizar alguma ferramenta de mediação parental.21
Em suma, as ferramentas de supervisão parental permitem limitar o acesso de crianças e adolescentes no meio digital. O art. 1, § 4º, ECA Digital, prevê que essas ferramentas devem adotar o mais alto nível de proteção disponível, assegurados, no mínimo:
I – restrição à comunicação com crianças e adolescentes por usuários não autorizados;
II – limitação de recursos para aumentar, sustentar ou estender artificialmente o uso do produto ou serviço pela criança ou pelo adolescente, como reprodução automática de mídia, recompensas pelo tempo de uso, notificações e outros recursos que possam resultar em uso excessivo do produto ou serviço por criança ou adolescente;
III – oferta de ferramentas para acompanhamento do uso adequado e saudável do produto ou serviço;
IV – emprego de interfaces que permitam a imediata visualização e limitação do tempo de uso do produto ou serviço;
V – controle sobre sistemas de recomendação personalizados, inclusive com opção de desativação;
VI – restrição ao compartilhamento da geolocalização e fornecimento de aviso prévio e claro sobre seu rastreamento;
VII – promoção da educação digital midiática quanto ao uso seguro de produtos ou serviços de tecnologia da informação;
VIII – revisão regular das ferramentas de inteligência artificial, com participação de especialistas e órgãos competentes, com base em critérios técnicos que assegurem sua segurança e adequação ao uso por crianças e adolescentes, garantida a possibilidade de desabilitar funcionalidades não essenciais ao funcionamento básico dos sistemas;
IX – disponibilização, sempre que tecnicamente viável, de recursos ou de conexões a serviços de suporte emocional e de bem-estar, com conteúdo adequado à faixa etária e orientações baseadas em evidências, especialmente nos casos de interações com riscos psicossociais identificados.
Em síntese, as ferramentas visam: restringir compartilhamento de geolocalização; coibir uso excessivo; limitar conteúdo acessado e recomendado; restrição à comunicação com terceiros.
Complementarmente, as ferramentas de supervisão parental devem permitir aos responsáveis legais (art. 18):
I – visualizar, configurar e gerenciar as opções de conta e privacidade da criança ou do adolescente;
II – restringir compras e transações financeiras;
III – identificar os perfis de adultos com os quais a criança ou o adolescente se comunica;
IV – acessar métricas consolidadas do tempo total de uso do produto ou serviço;
V – ativar ou desativar salvaguardas por meio de controles acessíveis e adequados;
VI – dispor de informações e de opções de controle em língua portuguesa.
Merece destaque a restrição a comunicação, que tem reflexos em ao no segmento do mercado de consumo, de jogos eletrônicos.
No tocante à interação em jogos eletrônicos, o artigo 16 do Marco Legal dos Jogos Eletrônicos já destacava interação pode ser por via de mensagens de texto, áudio, vídeo ou troca de conteúdo, bem como que se existente recurso de interação entre usuários, deve-se implementar um canal de denúncias sobre abusos de usuários22.
Desta forma o artigo 21 do Estatuto Digital da Criança e do Adolescente referência o artigo 16 do Marco Legal dos Jogos Eletrônicos, e inova ao prever que jogos com recursos de interação entre usuários deverão “por padrão, limitar as funcionalidades de interação a usuários, de modo a assegurar o consentimento dos pais ou responsáveis legais”23.
Do papel do Ministério Público, Conselhos Tutelares e da Sociedade
Importante destacar também o papel, na proteção de crianças e adolescente no ambiente digital, que pode ser exercido pelo Ministério Público e Conselhos Tutelares. Frisa-se que em diversas ocasiões o ECA Digital impõe o dever de comunicar violação de direito da criança e adolescente às autoridades, que muitas das vezes corresponderam as referidas instituições. Salienta-se, inclusive, que o referido diploma legal referência direta ao Ministério Público nos artigos 29 e 40.
Complementarmente, também é importante reconhecer o papel da sociedade.
Nesse sentido:
(…) se impõe aos pais/responsáveis legais no exercício da autoridade parental, as plataformas digitais no estabelecimento dos termos de uso/utilização, ao Estado, por meio do Ministério Público e dos Conselhos Tutelares, e a toda a sociedade, que atuem no sentido de garantir a efetiva tutela dos infantes no ambiente digital, com a finalidade de se coibir situações relacionadas a hipersexualização infanto-juvenil, a erotização precoce e a adultização de crianças e adolescentes nas redes sociais24.
Depreende-se, portanto, que a colaboração para proteção da criança e adolescentes no meio digital não se restringe aos pais ou responsáveis legais, e aos fornecedores de produto e serviços digitais, mas, é dever também do Poder Público e da coletividade, garantir um ambiente digital sadio, adequado para crianças e adolescentes, e que não lhe prive do acesso a tecnologia, essencial em um mundo hiperconectado.
Publicidade em meio digital e proteção contra a exploração comercial
A nova legislação estabelece restrições rigorosas à publicidade voltada a menores, proibindo práticas como perfilamento, análise emocional e o uso de tecnologias imersivas para direcionar anúncios, reconhecendo a vulnerabilidade de crianças e adolescentes diante de algoritmos e recomendações personalizadas. Além disso, veda expressamente a monetização e o impulsionamento de conteúdos que retratem esse público de maneira sexualizada, erotizada, sugestiva ou em contextos ligados ao universo sexual adulto, impondo aos provedores de internet a responsabilidade de coibir tais práticas25.
Para jogos eletrônicos a lei veda integralmente o uso de loot boxes, ou caixas de recompensa direcionados a crianças e a adolescentes ou de acesso provável por eles (art. 20).
Em suma, loot boxes correspondem à “um item virtual consumível que pode ser resgatado para receber uma seleção aleatória de itens adicionais, variando desde opções de personalização simples ao avatar ou personagem de um jogador, até um upgrade em equipamentos”.26 Conceito esse que vai ao encontro do adotado pelo legislador:
Art. 1º, IV, caixa de recompensa: funcionalidade disponível em certos jogos eletrônicos que permite a aquisição, mediante pagamento, pelo jogador, de itens virtuais consumíveis ou de vantagens aleatórias, resgatáveis pelo jogador ou usuário, sem conhecimento prévio de seu conteúdo ou garantia de sua efetiva utilidade;27
A referida vedação tem como fundamento, o fato de caixas de recompensa influenciarem as crianças e adolescentes a consumirem produtos com mecânicas muito similares ou idênticas a de jogos de azar, com reflexos à saúde, especialmente no âmbito psicológico. Ainda, na oferta de loot boxes usualmente há omissão de informações essenciais ao consumidor, que faz com que emita um juízo de valor equivocado sobre as vantagens ou desvantagens de se adquirir o produto considerando as chances de obtenção de um item.
Nessa linha de intelecção:
(…) a prática abusiva relacionada a oferta de loot boxes a crianças e adolescentes se encontra em total dissonância com os preceitos normativos emanados pelos princípios da boa-fé objetiva, da transparência e da informação, bem como com direitos básicos dos consumidores estabelecidos no Código de Defesa do Consumidor, por ensejarem danos à saúde dos referidos consumidores, notadamente, no tocante à sua incolumidade psicológica”.28
Para além das restrições de publicidade voltadas a menores, e da vedação da oferta de caixas de recompensa, o ECA Digital também restringe transações comerciais envolvendo menores, propiciando maiores condições de supervisão por parte dos pais ou responsáveis legais, através das ferramentas de supervisão parental.
É importante reconhecer que as crianças “assim como os adultos, também quer consumir para satisfazer seus gostos e suas necessidades pessoais. Espelho dos pais e da sociedade que vive, a criança não está de fora da festa do consumo”.29 De igual modo os adolescentes. Mas, ao mesmo tempo reconhece que há uma necessidade de proteção dos mesmos, sobretudo quando inseridos em uma sociedade de hiperconsumo30 , em que há o consumo massificado de bens e serviços.
Tal previsão, inclusive já havia sido imposta a fornecedores de jogos eletrônicos, através do artigo 17 do Marco Legal dos Jogos Eletrônicos, que prevê que padrão restringir-se-á as transações comerciais por criança de forma a garantir o consentimento dos pais.31
Todavia, ainda que façam parte do mercado de consumo, faz-se necessário que estejam devidamente supervisionas, orientadas e acompanhadas. Inclusive tal acompanhamento permite um combate do hiperconsumo, e o desenvolvimento de um consumo mais consciente, o que vai de encontro ao consumerismo.32
Do Uso e Abuso dos Instrumentos de denúncia
De nada adiantaria, as disposições legais protetivas, especialmente de proteção contra produtos e conteúdos inadequados, se não houvessem mecanismos de notificações acerca de violações aos direitos de crianças e de adolescentes (art. 28), com a conseguinte retirada desses conteúdos, e quando for o caso, oficiar às autoridades competentes para instauração de investigação.
Lado outrem, também é importante que haja a quem teve o conteúdo retirado, que haja notificação sobre a retirada com a devida motivação, e oportunizada possibilidade de recurso (art. 30). Inclusive, porque também se cogita a possibilidade de abuso dos instrumentos de denúncia, caso em que o abusador também está sujeito a penalidade como suspensão da conta, ou cancelamento em caso de abuso grave (art. 33).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A infância e a juventude brasileiras passaram a contar com uma nova camada de proteção com a publicação da Lei nº 15.211/2025, que criou o Estatuto Digital da Criança e do Adolescente (ECA Digital). A legislação estabelece deveres e responsabilidades específicos para aplicativos, jogos eletrônicos, redes sociais e demais serviços digitais.
A criação da norma ocorre em um cenário de crescente vulnerabilidade de crianças e adolescentes no ambiente virtual, diante de práticas como aliciamento, exploração sexual, uso indevido de dados pessoais e anúncios direcionados. Com o ECA Digital, espera-se ampliar a integração entre órgãos de proteção, fortalecer políticas preventivas e promover o uso responsável e saudável das tecnologias digitais por crianças e adolescentes.
O Estatuto representa um marco regulatório inédito no país, aproximando o Brasil das principais referências internacionais em segurança digital e garantia de direitos infantojuvenis. Entre as medidas previstas estão mecanismos de verificação de idade, recursos de supervisão parental, adoção de práticas de prevenção desde o desenho das plataformas, respostas rápidas a conteúdos ilegais e regras de proteção de dados de menores de 18 anos.
Referências
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3. BARRA, Helena; LEÃO, Luan. Denúncia Felca: adultização afeta desenvolvimento, explica especialista. CNN. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/brasil/denuncia-felca-adultizacao-afeta-desenvolvimento-explica-especialista/. Acesso em: 21 set. 2025.
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8. BRASIL. Lei 15,211. Estatuto Digital da Criança e do Adolescente. 2025. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2025/lei/L15211.htm. Acesso em: 21 set. 2025.
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18. LULA sanciona lei contra “adultização” de crianças na internet. Migalhas. 2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/440382/lula-sanciona-lei-contra-adultizacao-de-criancas-na-internet. Acesso em: 25 set. 2025.
19. HIGÍDIO, José. ECA Digital é eficiente para remoções objetivas, mas criticado por deixar aberturas. Conjur. 2025. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-set-02/eca-digital-e-eficiente-para-remocoes-objetivas-mas-criticado-por-deixar-aberturas/. Acesso em: 26 set. 2025.
20. BRASIL. Lei 15,211. Estatuto Digital da Criança e do Adolescente. 2025. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2025/lei/L15211.htm. Acesso em: 21 set. 2025.
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22. BRASIL, Lei 14.852. Marco Legal dos Jogos Eletrônicos. 2024. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/l14852.htm#:~:text=Art.,são%20regulados%20por%20esta%20Lei.. Acesso em: 16 ago. 2024.
23. BRASIL. Lei 15,211. Estatuto Digital da Criança e do Adolescente. 2025. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2025/lei/L15211.htm. Acesso em: 21 set. 2025.
24. BARBOSA, Caio César do Nascimento; GUIMARÃES, Glayder Daywerth Pereira; SILVA, Michal César. Superexposição de crianças e adolescentes e a hipersexualização de influenciadores mirins nas plataformas digitais. Migalhas. 2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/385461/superexposicao-de-criancas-e-a-hipersexualizacao-de-influenciadores. Acesso em: 29 set. 2025.
25. DA SILVA NETO, Pedro Henrique Monteiro de Barros; MASSA, Beatriz da Fonseca; SILVA, Maira Vasconcelos Silva. ECA Digital: Como o Brasil se tornou um dos pioneiros mundiais na proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital. Migalhas. 2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/440477/eca-digital-brasil-pioneiro-na-protecao-de-criancas-no-ambiente-online. Acesso em: 26 set. 2025.
26. FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; DENSA, Roberta. Para além das Loot Boxes: Responsabilidade Civil e Novas Práticas Abusivas no Mercado de Games. In: FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; ROZATTI LONGHI, João Victor; GUGLIARA, Rodrigo (Coords.). Proteção de dados pessoais na sociedade da informação: entre dados e danos. Indaiatuba: Editora Foco. p. 333-355, 2021. p. 338
27. BRASIL. Lei 15,211. Estatuto Digital da Criança e do Adolescente. 2025. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2025/lei/L15211.htm. Acesso em: 21 set. 2025.
28. GUIMARÃES, Clayton Douglas Pereira; SILVA, Michael César. A responsabilidade civil das empresas de jogos pela prática de microtransações e Loot Boxes. In: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; MARTINS, Guilherme Magalhães; ROSENVALD, Nelson; DENSA, Roberta. Responsabilidade Civil nas Relações de Consumo. Indaiatuba: Editora Foco, 2022.
29. DENSA, Roberta. Criança consumidora: A responsabilidade dos pais em relação aos filhos frente aos demais desafios da sociedade de consumo. In: ROSENVALD, Nelson; MILAGRES, Marcelo (Coords.). Responsabilidade Civil: Novas Tendências. Indaiatuba: Editora Foco. p. 387-402, 2017, p. 387.
30. Para saber mais recomenda-se a leitura de: GUIMARÃES, Clayton Douglas Pereira; GUIMARÃES, Glayder Daywerth Pereira. A sociedade de (hiper)consumo. Magis – Portal Jurídico. 2022. Disponível em: https://magis.agej.com.br/a-sociedade-de-hiperconsumo/. Acesso em: 20 abr. 2022.
31. BRASIL, Lei 14.852. Marco Legal dos Jogos Eletrônicos. 2024. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/l14852.htm#:~:text=Art.,são%20regulados%20por%20esta%20Lei.. Acesso em: 16 ago. 2024.
32. Para saber mais sobre consumerismo recomenda-se a leitura de: COSTA, Bárbara Regina Lopes; Gonçalves Rogerio Antônio. Movimentos Consumeristas: Conceito, Dimensão Ideológica e Motivação. Revista Diálogos Interdisciplinares. v. 5, n. 2, 2016, p. 98. Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/Barbara-Regina-Costa/publication/330635363_Movimentos_Consumeristas_Conceito_Dimensao_Ideologica_e_Motivacao/links/5c4b2df7299bf12be3e3039d/Movimentos-Consumeristas-Conceito-Dimensao-Ideologica-e-Motivacao.pdf. Acesso em: 21 maio 2021