A responsabilidade civil pelo consumo de bebidas adulteradas impõe-se hoje como tema de máxima relevância no campo do direito das obrigações e da tutela do consumidor, notadamente diante dos episódios recentes de intoxicação e óbitos decorrentes da ingestão de bebidas alcoólicas contaminadas por metanol no Estado de São Paulo1.
Nas recentes ocorrências atribuídas ao consumo de bebidas alcoólicas adulteradas com metanol, a principal suspeita se sustenta na tese de que terceiros criminosos “batizaram” as bebidas e as revenderam para pontos de venda (comércios de varejo e bares e restaurantes), com operação da Polícia Federal ainda em andamento.
Do ponto de vista jurídico, a análise da responsabilidade civil deve partir da ocorrência do dano (lesão à vida, à integridade física e à saúde, bem como danos morais e patrimoniais correlatos, como despesas hospitalares), da relação de causalidade com a conduta do agente e do regime de responsabilidade aplicável.
A princípio, deve ser chamada atenção para a previsão legal do Código de Defesa do Consumidor, em especial a exegese do artigo 12, o qual prediz que:
“O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos”2.
A responsabilidade adotada pelo Código é a objetiva, ou seja, se dispensa a necessidade de provar culpa do fornecedor quando demonstrado que o bem comercializado seria impróprio para consumo.
Ocorre que o mesmo artigo apresenta, como excludentes da responsabilidade civil, as seguintes hipóteses:
§ 3° O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar:
I – que não colocou o produto no mercado;
II – que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste;
III – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
Nos casos envolvendo a contaminação pelo metanol –que pode ocasionar cegueira irreversível, insuficiência renal, e óbito –, ao que tudo indica no momento, a mais provável suspeita é de que tenha ocorrido adulteração das bebidas de forma tardia, por terceiros criminosos.
Deste modo, quanto aos fabricantes dos produtos em questão, a excludente prevista no art. 12, § 3º, III, do CDC, deverá ser aplicada, isentando os produtores de indenizarem as vítimas do evento danoso em questão.
Contudo, quanto aos comerciantes, acaso seja comprovado que sabiam da adulteração dos produtos pelo metanol e mesmo assim continuaram com a comercialização irregular, poderão estes serem responsabilizados tanto pela força do artigo 13 do CDC quanto pela regra dos artigos 186 e 927 do Código Civil3.
Não se pode olvidar o paralelo inevitável com o Caso Backer, ocorrido em Belo Horizonte em 2020, quando a contaminação da cerveja “Belorizontina” pelas substâncias dietilenoglicol e monoetilenoglicol ocasionou dezenas de intoxicações e óbitos.
Diferentemente do recente episódio envolvendo a intoxicação pelo metanol, o caso da cervejaria produz substancial diferença: a contaminação pelas substâncias ocorreu no próprio processo de fabricação da cerveja, e não em posterior adulteração.
Desta forma, o caso Backer se amolda no que prediz o caput do artigo 12 do CDC, vez que o defeito (no caso, gerado pelo uso de anticongelantes, sendo que a cervejaria assumiu o risco) fora causado no momento de fabricação da cerveja, e não posteriormente por terceiros, ensejando responsabilidade civil por danos materiais e morais (a título de nota, as ações ainda estão em curso).
O cotejo entre os dois episódios — bebidas adulteradas com metanol e cervejas contaminadas por substâncias tóxicas — evidencia a dimensão coletiva e difusa da responsabilidade civil em tais hipóteses. Em ambos os casos, não se trata apenas de reparar o indivíduo lesado, mas de reafirmar a função preventiva da responsabilidade civil, que deve desencorajar condutas empresariais negligentes e reforçar a confiança do consumidor na segurança do mercado.
O Caso Backer, portanto, serve como precedente empírico e jurídico para ilustrar os desdobramentos práticos de tragédias de consumo em larga escala, ressaltando a importância de ações civis públicas, medidas cautelares e fiscalização contínua para evitar que episódios similares se repitam.
A conjugação do regime objetivo do CDC, das normas civis sobre risco do empreendimento, da prova técnica e do concurso de esferas administrativa e penal constitui o arcabouço necessário para a tutela eficaz das vítimas e para a imposição de custos às condutas que atentam contra a saúde pública. À luz dos acontecimentos recentes e da resposta estatal em curso, cabe ao operador do direito mobilizar todas as ferramentas processuais e extrajudiciais disponíveis para assegurar que a responsabilização civil cumpra sua função reparatória e preventiva.
Referências
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1. G1. Intoxicação por metanol: veja o que se sabe e o que falta saber. São Paulo, 30 set. 2025. Disponível em: link. Acesso em: 01 out. 2025.
2. BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Lei nº. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8078.htm. Acesso em: 01 out. 2025.
3. BRASIL. Código Civil. Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponivel em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 01 out. 2025.