- Introdução
A suplantação identitária em ambientes digitais, notadamente em aplicativos de mensagens, tem se tornado um fenômeno alarmante. Quando essa prática envolve a figura de um profissional liberal, como um advogado, os danos extrapolam a esfera individual, atingindo a credibilidade da própria classe profissional e causando prejuízos concretos a terceiros.
Não é demasiadamente exagerado reforçamos que, com fulcro no próprio EOAB, a relação entre advogado e cliente é pautada pela confiança mútua, logo, diante de um possível golpe, certamente o cliente poderá perder a confiança no profissional, resultando em prejuízos inestimáveis para ambas as partes.
Este artigo analisa a responsabilidade civil das plataformas digitais nesse contexto, com base nos fundamentos da recente sentença proferida pelo Juizado Especial Cível da Comarca de Santa Adélia/SP, que julgou procedente o pedido de indenização por danos morais de um advogado vítima de tal golpe.
- A Dinâmica do Golpe e os Elementos do Caso Concreto
No caso em análise (Processo nº 1000534-12.2025.8.26.0531), o requerente, advogado regularmente inscrito na OAB/SP, teve seu nome e imagem utilizados indevidamente para a criação de um perfil falso no aplicativo WhatsApp. O golpista vinculado a um número de telefone específico e não pertencente ao causídico, contactou clientes reais do autor, exibindo cópias de processos e solicitando valores para saques de créditos judiciais inexistentes, aplicando golpes financeiros em detrimento da imagem profissional construída há anos pelo advogado.
O profissional, diante deste cenário, prontamente dedicou-se a alertar os seus clientes, bem como produzir provas contundentes, dentre elas diversos boletins de ocorrência policial, declarações, prints das conversas que documentavam a ação fraudulenta, transferências realizadas por clientes, dentre outras.
Insta esclarecer que para este tipo de demanda é crucial a busca por uma solução na via administrativa, denunciando o perfil falso à plataforma por meio de “Requests” no suporte da Whatsapp, assim demonstrando que a empresa manteve-se inerte, sem adotar as providências cabíveis para coibir a fraude, elemento essencial para a configuração do dano moral e também para a concessão da tutela antecipada de urgência, que, no caso, foi fixada uma multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais) para a remoção e identificação do perfil, atos que não ocorreram até o momento, vencendo o prazo estipulado pelo magistrado.
- A Responsabilidade Civil da Plataforma Digital sob a Ótica do CDC
O primeiro e fundamental ponto estabelecido na sentença foi o enquadramento da relação na esfera consumerista, regida pela Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor – CDC), assim restando configurado o status de fornecedor para a empresa demandada.
Ante a patente relação consumerista, aplicou-se, portanto, a teoria da responsabilidade civil objetiva, prevista no art. 14 do CDC. Isso significa que, para que a plataforma seja obrigada a indenizar, não é necessário provar sua culpa ou dolo, mas tão somente: I) A existência de um defeito no serviço; II) O dano sofrido pelo consumidor; III) O nexo de causalidade entre o defeito e o dano.
No caso em tela, o magistrado identificou clara falha na prestação do serviço. O sistema de segurança da plataforma mostrou-se incapaz de prevenir a fraude e, mais grave ainda, a empresa se omitiu diante das reiteradas denúncias formuladas pela vítima. A inércia da ré, que sequer apresentou provas para infirmar as alegações do autor, foi decisiva para a caracterização do defeito e também dano moral.
- A Configuração do Dano Moral.
O dano moral restou incontroverso. A utilização não autorizada do nome e da imagem de um profissional liberal, associada à prática de crimes contra seus clientes, gera uma série de prejuízos imateriais, tais como: I)Abalo à reputação e honra profissional; II) A confiança dos clientes que é o principal ativo de um advogado, sendo elemento essencial do contrato de mútuo;.III) Ser associado a golpes (estelionato – art. 171 do CP) causa um dano reputacional de difícil reparação.
De mais a mais destaca-se a angústia e o desgaste psíquico, visto que a vítima é colocada em uma situação de impotência, tendo que lidar com a desconfiança de clientes e o temor de novos prejuízos.
Não se menospreza a violação aos direitos personalíssimos como o nome e a imagem, protegidos pela Constituição Federal (art. 5º, X), pelo Código Civi e pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC). Além das normas, foram mencionados pelo magistrado os seguintes precedentes:
Consumidor. Serviços. Conta/Perfil de WhatsApp falso. Em primeiro grau anote-se que foi confirmada tutela antecipada, impondo-se ao requerido a ordem de exclusão definitiva do perfil do aplicativo WhatsApp vinculado aos números indicados, sem prejuízo, também condenado o requerido ao pagamento de indenização por danos morais arbitrados em valor de R$ 5.000,00, conforme consectários indicados.Recurso Inominado Do Requerido. Legitimação passiva evidente. Perda de objeto não verificada. Insurgência que se revela infundada no mérito.Obrigação de fazer convalidada. Responsabilidade civil objetiva do requerido. Multa definida na origem razoável e mantida. Vício de segurança do serviço ofertado que termina por permitir a criação de conta fraudulenta, sem qualquer culpa do autor, também não servindo a ação de fraudadores de excludente de responsabilidade. Danos morais caracterizados. Autor exposto em sua imagem à açãode terceiros na prática de fraudes e outros ilícitos, justificada a reparação moral definida com razoabilidade e cuja expressão numérica não comporta redução. Recurso Inominado Do Requerido Não Provido.(TJSP; Recurso Inominado Cível nº 1001833-91.2025.8.26.0541;Relator: Alexandre Bucci – Colégio Recursal; Órgão Julgador: 4ª Turma Recursal Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo – Comarca de SantaFé do Sul; Data do Julgamento: 18/07/2025; Data de Registro:18/07/2025).
RECURSO INOMINADO – PERFIS FALSOS NO WHATSAPP –FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO – DANO MORAL Autor teve sua identidade usada por golpistas em contas falsas no aplicativo do réu,que, mesmo notificado, nada fez para bloquear os números.Demonstrada a falha na prestação do serviço, a responsabilidade objetiva e o dano moral. Facebook Brasil que responde pelo Whatsapp LLC, pois essa empresa não tem representação no país, e pertence ao mesmo grupo daquela. Recurso desprovido. Sentença mantida, nos termos do art. 46 da Lei n. 9.099/95.(TJSP; Recurso Inominado Cível nº 1001950-92.2024.8.26.0549;Relatora: Marcia Rezende Barbosa de Oliveira – Colégio Recursal; Órgão Julgador: 6ª Turma Recursal Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo –Comarca de Santa Rosa de Viterbo; Data do Julgamento: 29/07/2025;Data de Registro: 29/07/2025).
A sentença destacou que a mera existência do perfil falso e a comprovação dos golpes aplicados, aliadas à ineficácia do canal de denúncias, foram suficientes para configurar o dano moral.
- Superação das Preliminares e o Dever de Vigilância
A sentença rejeitou argumentos da defesa da plataforma, como a alegação de “perda superveniente do objeto” (por suposto bloqueio da conta falsa, não comprovado) e a “ausência de interesse processual” (sob o argumento de impossibilidade de fornecimento de dados). O juiz manteve-se firme no entendimento de que a empresa do grupo (Facebook) responde pelos serviços do WhatsApp no Brasil e tem o dever de criar mecanismos eficazes para combater a falsificação identitária em sua própria plataforma.
- Conclusão
A decisão analisada representa um importante marco na proteção dos direitos de personalidade e na responsabilização das plataformas digitais no Brasil. Ela deixa claro que as empresas não são meras espectadoras neutras, mas têm um dever positivo de atuação na moderação e no combate a atividades ilícitas em seus ambientes virtuais, em especial com a solução extrajudicial do problema mediante remoção e identificação a partir de solicitações expressas do consumidor.
A inércia diante de denúncias específicas de falsificação identitária, principalmente quando envolvem profissionais cuja honra é capital de trabalho, configura defeito na prestação do serviço e gera o dever de indenizar por danos morais com base na responsabilidade objetiva do CDC.
O caso serve de alerta tanto para os cidadãos, que devem estar atentos e documentar qualquer tentativa de golpe, quanto para as plataformas, que devem investir em tecnologia e processos para tornar seus ecossistemas digitais mais seguros e confiáveis.
Referências
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO. Processo Digital nº: 1000534-12.2025.8.26.0531. Comarca de Santa Adélia. Juiz de Direito: Dr. Otávio Augusto Vaz Lyra. Data de publicação: 30/09/2025.