Omissão legislativa e capacitismo institucional: o silêncio da Lei 15.142/2025 sobre as cotas para pessoas com deficiência

Omissão legislativa e capacitismo institucional: o silêncio da Lei 15.142/2025 sobre as cotas para pessoas com deficiência

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A recente alteração legislativa promovida pela Lei 15.142/2025 ampliou o percentual de cotas raciais nos concursos públicos federais para 30%, representando avanço relevante no enfrentamento das desigualdades históricas no acesso ao serviço público. Contudo, a norma permaneceu silente quanto à ampliação das cotas destinadas às pessoas com deficiência (PCD), mantendo inalterado o percentual mínimo de 5%. O presente artigo analisa criticamente essa omissão legislativa, sob a ótica do princípio da igualdade material, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e do conceito jurídico de capacitismo, demonstrando como tal escolha normativa esvazia o propósito das políticas afirmativas e compromete a coerência do sistema constitucional de inclusão.

1. A Lei 15.142/2025 e a reconfiguração das políticas de cotas

A promulgação da Lei 15.142/2025 consolidou um novo paradigma das ações afirmativas no âmbito do serviço público federal, ao ampliar para 30% o percentual de reserva de vagas em concursos públicos destinados a pessoas pretas, pardas, indígenas e quilombolas. A alteração legislativa foi justificada pelo reconhecimento de desigualdades estruturais persistentes e pela necessidade de aperfeiçoar mecanismos de inclusão racial no Estado brasileiro.

Todavia, ao reformular profundamente o regime das cotas raciais, o legislador optou por não revisar o modelo de cotas para pessoas com deficiência, que permanece limitado ao percentual mínimo de 5%, previsto em normas infraconstitucionais anteriores. Essa opção normativa não é neutra: trata-se de uma escolha política com relevantes implicações constitucionais e sociais, sobretudo quando analisada à luz da igualdade material e da vedação à discriminação.

2. O regime jurídico das cotas para pessoas com deficiência no Brasil

A proteção jurídica das pessoas com deficiência encontra fundamento direto na Constituição Federal, especialmente no art. 37, inciso VIII, que determina a reserva de percentual de cargos e empregos públicos para esse grupo. Em nível infraconstitucional, a matéria foi regulamentada, entre outros diplomas, pelo Decreto 9.508/2018, que fixou o percentual mínimo de 5% das vagas em concursos públicos federais.

Apesar de seu caráter histórico e simbólico, esse percentual permanece inalterado há anos, mesmo diante de evidências empíricas de que as barreiras enfrentadas pelas pessoas com deficiência no acesso ao trabalho público vão muito além do momento do certame, envolvendo questões como acessibilidade, adaptações razoáveis, estigmatização e exclusão institucional.

A manutenção do percentual mínimo, sem qualquer debate legislativo aprofundado na recente reforma da lei de cotas, revela uma estagnação normativa incompatível com a evolução do constitucionalismo inclusivo.

3. Igualdade material e o dever de progressividade das ações afirmativas

O princípio da igualdade, consagrado no art. 5º da Constituição Federal, não se limita à proibição de discriminações formais. Em sua dimensão material, exige do Estado políticas públicas ativas e progressivas voltadas à superação de desigualdades estruturais.

Nesse contexto, as ações afirmativas devem ser dinâmicas, ajustadas às transformações sociais e às evidências empíricas sobre sua efetividade. A ampliação das cotas raciais pela Lei 15.142/2025 seguiu exatamente essa lógica: reconheceu-se que o modelo anterior era insuficiente.

Entretanto, ao não estender essa revisão às cotas para pessoas com deficiência, o legislador incorreu em tratamento assimétrico injustificado entre grupos igualmente vulnerabilizados, comprometendo a coerência interna do sistema de ações afirmativas e violando a lógica da igualdade substancial.

4. Omissão legislativa e capacitismo institucional

A ausência de qualquer ampliação ou reavaliação das cotas para PCDs não pode ser interpretada como mera lacuna técnica. Trata-se de uma omissão legislativa relevante, que ganha contornos ainda mais graves quando analisada à luz do conceito de capacitismo.

O capacitismo, enquanto fenômeno jurídico e social, manifesta-se na naturalização da exclusão das pessoas com deficiência, na minimização de suas demandas e na suposição implícita de menor capacidade produtiva ou funcional. Ao manter inalterado um percentual notoriamente insuficiente — especialmente em contraste com a expressiva ampliação das cotas raciais —, o legislador reproduz uma hierarquização indevida entre vulnerabilidades, relegando as pessoas com deficiência a um plano secundário na agenda de inclusão.

Essa postura normativa esvazia o principal intuito da lei de cotas, que não é apenas garantir presença simbólica, mas promover efetiva representatividade e igualdade de oportunidades no serviço público.

5. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o dever estatal de inclusão

O Brasil é signatário da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, incorporada ao ordenamento jurídico com status de emenda constitucional. O tratado impõe aos Estados o dever de adotar medidas apropriadas e eficazes para assegurar o pleno exercício dos direitos das pessoas com deficiência, inclusive no acesso ao trabalho e ao emprego público.

À luz desse compromisso internacional, a manutenção de políticas afirmativas mínimas, sem qualquer avanço ou atualização, pode ser interpretada como descumprimento do dever de progressividade e de promoção ativa da inclusão. A omissão legislativa, nesse ponto, não é apenas politicamente questionável, mas juridicamente problemática.

6. A necessidade de revisão do modelo de cotas para PCDs

A superação desse quadro exige uma revisão legislativa estrutural, que contemple:

  • a ampliação do percentual de cotas para pessoas com deficiência, de forma proporcional às barreiras enfrentadas;

  • a criação de mecanismos de fiscalização e cumprimento efetivo;

  • a integração das cotas com políticas de acessibilidade, adaptação razoável e permanência no serviço público;

  • a harmonização das políticas afirmativas, evitando hierarquizações implícitas entre grupos vulneráveis.

Sem essas medidas, a política de cotas para PCDs continuará operando em nível meramente simbólico, incapaz de produzir transformação social relevante.

Conclusão

A Lei 15.142/2025 representou um avanço significativo na política de ações afirmativas no Brasil, mas também evidenciou uma omissão legislativa grave ao silenciar sobre a ampliação das cotas para pessoas com deficiência. Essa escolha normativa, longe de ser neutra, revela traços de capacitismo institucional e compromete a efetividade do princípio da igualdade material.

Se o objetivo das cotas é corrigir desigualdades estruturais e promover inclusão real, não há justificativa constitucional, jurídica ou moral para manter as pessoas com deficiência à margem da evolução legislativa. A revisão do modelo atual não é uma concessão, mas uma exigência constitucional e humanitária, indispensável para a construção de um serviço público verdadeiramente inclusivo e democrático.

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