Equidade e segurança: os atributos do mercado financeiro que carecem ao ambiente dos criptoativos

Equidade e segurança: os atributos do mercado financeiro que carecem ao ambiente dos criptoativos

homem segurando um bitcoin

Seguindo com o projeto chamado “Crypto Academy”, em nossa reunião do dia 29 de setembro de 2021, recebemos a visita de um convidado ilustre, o Laércio de Morais Júnior,1 que trouxe uma brilhante reflexão relacionando os criptoativos2 com o mercado financeiro. Sendo assim, visando a divulgação do conhecimento, o presente texto feito em parceria com o palestrante sintetiza as discussões realizadas durante nossa reunião.

Quanto mais repercussão o tema criptoativos ganha, mais questionamentos surgem em torno de tal tecnologia, ainda mais quando comparada (e analisada) como uma espécie um investimento financeiro, tal como a bolsa de valores, já consolidada há muitos anos.

Idealmente, grande parte dos criptoativos encontram seus diferenciais na descentralização, ou seja, não são submetidos a qualquer órgão monetário de nenhum estado. Contudo, essa característica pode trazer alguns empecilhos, de forma que o estudo do Mercado Financeiro de maneira comparada à seara dos criptoativos possa demonstrar que o ambiente de criptoativos se prejudique em razão de ausência de regulamentações.

Para a compreensão do tema, faz-se necessário conceituar o termo “mercado financeiro”. No Brasil o termo “mercado financeiro” é utilizado de maneira genérica para falar sobre Mercados do Sistema Financeiro Nacional, tal sistema é formado por quatro principais mercados: (i) Monetário; (ii) Câmbio; (iii) Crédito e (iv) Capitais. O primeiro diz respeito às operações de curto prazo com objetivo de controlar a liquidez da moeda nacional. Já o Mercado Cambial refere-se à relação de preços entre a moeda nacional e moedas estrangeiras. O mercado de crédito capta recursos de agentes superavitários e os transmite para agentes deficitários. E por fim o Mercado de Capitais que negocia títulos de valores mobiliários e objetiva dar liquidez para as captações privadas.

De maneira bem simplificada, é possível enquadrar os criptoativos em ao menos três dos mercados, sendo possível visualizar similaridades com o Mercado Monetário, de Câmbio e de Capitais. Idealmente, quando não constituem serviços específicos, muitos criptoativos são lançados com a finalidade de utilização como uma espécie de moeda corrente (porém descentralizada), todavia, benefícios e desafios surgem como reflexo de tal utilização.

Um fato que pode ser considerado prejudicial para a utilização pelas grandes massas é a mistura do ativo moeda com o ativo especulativo nesses ambientes. A operação especulativa se trata de quando agentes, pessoas físicas ou jurídicas, adquirem ativos com o simples intuito de aliená-los posteriormente a um preço superior, sem um ganho de renda incluso. Este movimento pode ser visto com naturalidade em um mercado de títulos e valores, mas à medida que um mercado de criptoativos é em muitos casos idealizado como moeda, os movimentos especulativos proporcionam impactos na liquidez e valores destes ativos.

A valorização de ativos financeiros segue a lei da oferta e demanda, portanto, à medida que um ativo se torna mais cobiçado os preços vão se ajustando para cima. Independentemente de visões sobre valores intrínsecos dos criptoativos o movimento especulativo acontece, desta forma, diversas moedas digitais são compradas hodiernamente pelo intuito de valorização para posterior alienação. Com este movimento, os criptoativos são submetidos à grande volatilidade, alterando de maneira drástica os valores em questão de segundos, portanto, não se tornando tão viáveis para utilização cotidiana.

Com a alta volatilidade, fica difícil prever os valores a curto prazo, e sem uma estrutura de política monetária, os preços não são controlados e a circulação desses ativos se torna restrita. Embora diversas atuações dos Bancos Centrais sejam criticadas por intelectuais do mercado de criptoativos, outras políticas são fundamentais para controle da circulação de valores e para preservar o poder de compra das moedas.

O Banco Central Brasileiro (BCB), por exemplo, dispõe de mecanismos como a taxa de juros, a taxa de redesconto e o depósito compulsório para controlar de maneira eficaz o poder de compra do Real brasileiro. Mas nem sempre a moeda corrente do Brasil conseguiu a estabilidade que tem hoje, as políticas monetárias foram resultado de um longo processo de aprendizagem que se prolongou por décadas, desde as mudanças do padrão ouro na década de 1930 até os dias de hoje.3

Nos dizeres de Oswaldo Aranha:

Não era possível entregar o câmbio aos azares da lei da oferta e da procura de moedas. Essa lei, em momentos de críticas, não consegue subsistir, perturbada pela ganância, pelo jogo de interesses ilícitos e pelas corridas de capitais. Como nas horas de naufrágio precisa-se de uma disciplina severa, porque os mais avisados perturbam-se e ameaçam a ordem necessária ao salvamento; nesses instantes impõem-se medidas de providências de autoridade, sob pena de soçobrar. Nesse sentido, a liberdade de se utilizar qualquer moeda como corrente em território brasileiro seria a falência de nossa moeda estatal, e possivelmente a falência do Brasil.

No tocante à intervenção, esta impunha-se com todo o rigor de modo a ordenar a vida dos negócios e suprir as necessidades públicas. Aquilo que era visto como comum, atualmente não se é mais admitido consentir, pela exploração ou pela precipitação, que se arrastasse o nosso mil-réis a uma tal desvalorização, capaz de gerar a anarquia interna e os problemas sociais consequentes à elevação súbita do custo das utilidades.4 

Como se não bastassem os movimentos naturais especulativos nos valores dos criptoativos, muitos criptoativos ainda sofrem distorções em razão de manipulações do mercado, pois, diferentemente do Mercado de Capitais inteiramente regulado, a impunidade dos criptoativos nas manipulações pode implicar em resultados ainda mais desfavoráveis à confiança da utilização rotineira das moedas digitais.

Para que seja possível preservar a segurança e equidade de um mercado que se propõe a captar e transferir recursos, é essencial que o Mercado de Capitais esteja sujeito a diversas normas para reforçar o enforcement5  de um setor tão sensível. Além das incidências normais da legislação e de atuações do órgão administrativo da CVM (Comissão de Valores Mobiliários), diversas outras normas regem este mercado.

Deve-se afastar a ideia de correlação de normas às burocratizações, pois a recorrência de submissão a pactos particulares no Mercado de Capitais demonstra de maneira empírica que a uniformidade de diretrizes pode trazer eficiência a este mercado. A livre iniciativa das empresas em aderir a associações autorreguladoras, em se adequar a altos padrões de governança e o respeito às diretrizes internacionais, evidencia que a onerosidade do perfeito compliance tem apenas a agregar às companhias e instituições que buscam criar um ambiente melhor para os investidores.

Nos dizeres de Carlos Eduardo de Freitas:

Os economistas brasileiros, de uma maneira geral, e os operadores mais maduros do mercado de câmbio, em particular, costumam apresentar um grande apego aos controles de mercado. Não aos controles na forma mais arcaica (anos 1940 e 1950), mas na sua acepção “moderna” (anos 1960). É mais do que uma possibilidade que este sentimento resulte de uma associação espúria entre controles, de um lado, e a prosperidade com estabilidade, de outro, conjugação experimentada no Brasil durante o “milagre” e no imediato “pós-milagre” (1974-80).6 

Ademais, as características sancionadoras e punitivas aos quebradores de regras permitem uma sensação cada vez mais forte de segurança no Mercado. Embora não seja possível eliminar completamente as fraudes, é possível observar como o Mercado de Capitais evolui diariamente na segurança, transparência e na preservação da equidade.

Ativos renomados como o Bitcoin7  e Ethereum8  podem com o tempo se provarem infalíveis à essas adversidades na medida em que mais investidores institucionais passam a adquirir esses ativos, aproximando-os da eficiência de mercado proposta por Eugene Fama,9 e eliminando ruídos e distorções artificiais. Contudo, todo o universo em torno dos criptoativos é o que preocupa os agentes desse mercado digital, pois sem uma CVM ou uma SEC (U.S. Securities and Exchange Commission)10 para tomar conta, os ativos de baixa volatilidade, as Altcoins,11 estão sujeitas a sofrerem constantes manipulações e contaminarem o setor como um todo.

A dificuldade de policiamento (controle) das criptomoedas não surge apenas da ideologia libertária por trás da origem da moeda, mas sim pela própria característica descentralizadora, tornando-se árdua a tarefa de identificar constantemente os possíveis beneficiários de crimes e manipulações, visto que é a própria rede de usuários que valida as transações através da Blockhain. Diferentemente do Mercado de Capitais brasileiro que possui a Câmara de Compensação da B3 para reger este mercado, a tão positiva descentralização que é a característica marcante dos criptoativos, também pode se tornar um empecilho para punir infratores.

Portanto, cabe esclarecer que “toda ação no sentido de liberalização provoca uma reação de controle burocrático, de igual intensidade, embora de forma disfarçada. [Sétima das “leis do Kafka”, denominada Lei Newtoniana da Burocracia]”.12

Atualmente a SEC, a CVM e outros órgãos administrativos responsáveis pela tutela dos mercados de valores mobiliários em seus respectivos países conseguem controlar as ICOs,13 as ofertas públicas de moedas. Dessa forma, para que a emissão de uma nova moeda alcance os investidores brasileiros, devem passar pela mesma rigidez de procedimentos que as demais ofertas públicas, preservando a transparência e permitindo maior segurança aos investidores nacionais. Contudo esta tutela está restrita apenas à abertura, e não alcança as negociações posteriores para reprimir fraudes.

É válido ressaltar que o que se encontra nos noticiários hoje em dia se diz respeito à estelionatos, de agentes que utilizam dos criptoativos apenas como um instrumento para perpetuar fraudes. Pirâmides financeiras, promessas de rentabilidade e outras fraudes tomaram um gosto pela nova aplicação neste novo mercado. Mas tais investigações nada se relacionam às fraudes ou manipulações no mercado em si, isto trata-se de apenas atividades criminosas perpetuadas utilizando como pretexto a bitcoin ou outros criptoativos.

Uma alternativa para conseguir evitar fraudes e manipulações poderia ser uma duplicação das ordens das corretoras de criptomoedas, criando recibos das transações, haja visto que as corretoras já estão em deveres perante a Receita Federal para prestar informações de KYC e de prevenção à lavagem de dinheiro. Contudo, uma aplicação como esta implicaria necessariamente no cerceamento das liberdades da descentralização, haja visto que o anonimato, por exemplo, estaria em grande cheque no seguimento de uma política como essa.

Com essa dificuldade na preservação da equidade e segurança, mais difícil será o futuro da consolidação dos criptoativos, que terá de enfrentar os desafios de sua expansão. O maior aliado deste setor será a educação financeira, pois, eliminando místicas de retornos fáceis e ilusões de oportunidades irreais, o mercado paralelo das Altcoins encontrará dificuldades em manipular os valores quando os investidores passarem a agir com maior racionalidade nas decisões de investimento.

Após toda essa exposição, não se deve encarar a descentralização como um inimigo ao equilíbrio financeiro. Portanto, o presente texto propõe trazer a reflexão a respeito da ponderação das características diferenciadoras dos criptoativos, de forma que tais características não tragam apenas bônus, mas tragam também ônus a serem superados tanto na viabilização de uma moeda confiável e de grande circulação, quanto nos movimentos especulativos que também influenciam na operação do mercado monetário. Certamente um mercado tão inovador e revolucionário quanto o dos criptoativos detém coragem para enfrentar este desafio e propor soluções adequadas, de maneira que através de debates (tais quais como os propostos ao longo do texto) será possível aperfeiçoar o mercado dos criptoativos, tal como o mercado financeiro se aperfeiçoou.

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Pedro Alberto Alves Maciel Filho

Laércio de Morais Júnior

 

Referências

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1.  Advogado. Especializado em Direito Societário e Mercado de Capitais. Certificado pela ANBIMA – A Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (CPA-20). E-mail: laerciomoraisjr@gmail.com

2.  Criptoativos são dados binários projetados para funcionar como um meio de troca em que os registros de propriedade de moedas individuais são armazenados em um livro razão existente na forma de um banco de dados computadorizado usando criptografia para proteger a transação de registros, para controlar a criação de moedas adicionais e para verificar a transferência da propriedade das moedas.

3. FRANCO, Gustavo HB. A moeda e a lei: Uma história monetária brasileira, 1933-2013. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2017.

4. ARANHA, Oswaldo. Relatório apresentado a Getúlio Vargas por Oswaldo Aranha. Exposição relativa ao período de 3 de novembro de 1931 à 15 de novembro de 1933. 1933. p. 83.

5. Trata-se do cumprimento forçado de normas civis.

6. FREITAS, Carlos Eduardo de. Liberdade cambial no Brasil. O Brasil e a Economia Global. Rio de Janeiro: Campus/SOBEET, 1996. p. 92.

7. Bitcoin é um ativo digital descentralizado; isto é, ausente de controle de intermediários.

8. Ethereum é um blockchain descentralizado de código aberto com funcionalidade de operacionar contratos inteligentes.

9. FAMA, Eugene F. Efficient capital markets: a review of theory and empirical work’, Journal of Finance, 25. 1970.

10.De maneira simplificada, trata-se da Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos.

11.Termo que diz respeito a moedas alternativas ao Bitcoin, como por exemplo, a Cadarno, XRP, Solana Dogecoin, etc.

12.FERNÁNDEZ, Oscar Soto Lorenzo; DE OLIVEIRA CAMPOS, Roberto. A evolução de economia brasileira. Zahar Ed., 1976. p. 35.

13. Initial Coin Offering, a oferta pública de novas moedas digitais.

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