Comumente lemos que a norma é branca, masculina, ciseterossexual, privilegiada em classe e território. Trata-se de uma denúncia que, para além das bases epistêmicas, indica que as relações de poder marcam subjetividades e as rebaixam. A memória colonial que regula, de forma ideológica, as nossas relações sociais é tecida pelo desejo de subordinação da diferença, uma vez que ela, de modo profundo, desarticula a ordem normativa que se beneficia dos silêncios e das ausências de mulheres, pessoas com deficiência, sujeitos negros, pessoas LGBTQIA+ e demais corpos lidos e publicizados como abjetos.
Há uma relação intrínseca entre a composição da norma e uma gestão da moral — em sua modalidade restritiva —, isto é, a manutenção de valores e imagens de mundo que inviabilizam a diferença, em nome da preservação de violências estruturalmente forjadas para asfixiar a possibilidade. A destituição da humanidade dos sujeitos que são designados por seus marcadores de diferença alimenta um sistema moderno e contemporâneo composto pela recusa à diferença, ou melhor, pela descrição injuriosa que faz com que a diferença seja lida como sinônimo de uma desigualdade imposta. Audre Lorde nos ensina que
Geralmente nem sequer falamos sobre a diversidade humana, que é uma comparação dos atributos mais bem avaliados, pelo possível efeito de iluminação que podem ter na vida de cada pessoa. Em vez disso, falamos de desvio, que é um julgamento da relação entre o atributo e algumas construções há muito tempo fixadas e estabelecidas. Em algum lugar no limite de todas as consciências, existe o que chamo de norma mítica, o que cada um de nós sabe, no fundo de si, como “não sou eu”. Nesta sociedade, essa norma costuma ser definida como branco, magro, homem, jovem, heterossexual, cristão e financeiramente estável. Aqueles entre nós que estão fora desse poder, por alguma razão, com frequência identificam algo que nos difere, e presumimos que aquele traço seja a razão primária de toda opressão.1
Entendemos que a norma, constituída por meio dos dispositivos de poder e mantida pelos instrumentos de manutenção desse mesmo poder, incide sobre os sujeitos fazendo com que se alimentem as noções torpes de que as diferenças são, em si mesmas, a causa das violências. Assim, a diferença não é causa da violência que sofre, mas a violência é resultado de um processo fabricado para descartar vidas localizadas à distância dessa norma restritiva.
Compreendemos que o padrão é demasiadamente imoral, pois busca naturalizar processos de exclusão e discriminação. Esses processos ocorrem pela construção de corpos descartáveis contrastados à norma. O racismo, junto a outros maquinários de aniquilamento, dá forma ao contraste entre o legítimo e o aviltado. O racismo justifica corpos negros algemados e arrastados, violados, ocultados e impedidos de circular nos espaços. Zerar corpos negros, mulheres, pessoas LGBTQIA+, pessoas com deficiência e outras existências rebaixadas pela norma e seu fetiche de destruição é o objetivo das práticas discriminatórias que devem ser combatidas, amplamente, inclusive, pelo Direito.
O racismo, como construção política do outro, enquanto demarcação bélica contra o seu corpo, normatiza as condutas de violência que incidem contra esses sujeitos. Há, nesse termo, uma manutenção de sistemas políticas que gerenciam os espaços sociais e o próprio imaginário. Essa articulação fica evidente na profusão de cenas de violação, simbólicas e concretas, contra esses sujeitos.
No último dia 30 de novembro, por exemplo, as políticas de extermínio, inclusive da própria dignidade de sujeitos negros, se manifestaram na prisão de um homem negro na zona leste de São Paulo. Ele, algemado à motocicleta do policial militar, foi arrastado “como um escravo”, como indicam as pessoas que fizeram a gravação desse episódio amplamente violento. Ocorre que o racismo, enquanto ideologia que pavimenta símbolos e práticas de violação contra os sujeitos negros, constrói uma imposição do corpo público. Um corpo desumanizado que está submetido às máximas de controle e de subjugamento.
O corpo público, a partir das práticas de controle e subordinação, é desautorizado. Ele se torna um produto, uma mercadoria, por fim, um alvo. As desautorizações perpassam por muitos lugares. Elas transitam, por exemplo, pela implementação e cristalização do silêncio. Logo, as políticas coloniais, supremacistas e destrutivas têm como propósito objetificar experiências lidas de formas desumanizadas. O silêncio, a ausência e a objetificação se entrecortam, fazendo com que esses sujeitos violados sejam lidos de forma descartável.2
As perspectivas decoloniais não são apenas ferramentas analíticas, mas são e devem ser incorporadas como provocações políticas que desestabilizam a norma e, na mesma direção, questionam a dissimilação moral que se beneficia da espoliação de sujeitos e grupos sociais lidos como dissidentes. Uma perspectiva decolonial objetiva corroer práticas, valores e signos que se logram da execução e da demarcação de uma alteridade talhada na ausência de reconhecimento.
____________________
Referências
________________________________________
1. LORDE, Audre. Sou sua irmã: escritos reunidos. Organização e apresentação de Djamila Ribeiro. Tradução de Stephanie Borges. São Paulo: Ubu Editora, 2020, p 44.
2. TEIXEIRA, Thiago. Decolonizar valores: ética e diferença. Salvador: Devires, 2021, p. 57.