“Minha mãe não está bem, ninguém está bem, é muito difícil de acreditar. Depois que a gente viu o vídeo, o sentimento é ainda pior. É tudo muito revoltante. Ele quis vir para cá (Moïse), acreditou no Brasil, e o Brasil fez isso com ele. A gente foge de uma guerra e vê que aqui é a mesma coisa”, disse Djodjo, irmão de Moïse.1
“Ele era o melhor pai possível, sempre agarrado com ela. O que ela mais gostava era quando ele sentava e contava historinhas para ela dormir. Mesmo depois de uma jornada de trabalho desgastante, ele fazia questão de ficar com ela. Ontem quando ele saiu para trabalhar ela disse que queria ouvir e esperou ele voltar para contar historinha. Ela esperando o pai ligar. Eu sinceramente ainda não sei o que fazer. Não tive coragem de contar para ela, não sei como vou fazer. Por enquanto ela está aos cuidados da minha mãe” Disse a viúva de Durval.2
1. INTRODUÇÃO
Muito se especula sobre a situação dos refugiados em solos brasileiros. Quem vem de países em situações emergentes encontra um acolhimento em terras de pau-Brasil. No entanto, não demora muito o Brasil mostra a tua cara.3 O congolês4 Moïse Kabagambe veio a óbito em razão de no mínimo 30 pauladas desferidas, cobrando seus direitos trabalhistas. Horas depois, Durval Teófilo Filho, também homem negro, veio a óbito após ser alvejado por um ex-militar que alega ter tido medo de ser assaltado. Viraram notícia, viraram estatística.
2. RACISMO E XENO-RACISMO
Os casos supramencionados evidenciam um racismo sofrido por Durval e uma xeno-racismo,5 sofrido por Moïse, sua família e refugiados em geral. Estes são manifestados e reforçados pelas práticas estatais segregatórias e opressoras. O professor de Silvio de Almeida evidencia que uma vez que o Estado é a forma política do mundo contemporâneo, o racismo e xeno-racismo não poderiam se reproduzir se, ao mesmo tempo, não se alimentassem e simultaneamente fossem alimentados pelas estruturas estatais, neste sentido, é por meio do Estado que a classificação de pessoas e a divisão dos indivíduos em classes e grupos é realizada.6
A relação entre racismo, xeno-racismo e Estado assenta-se sobre duas premissas fundamentais: As teorias do Estado7 que relacionam-se com a teoria econômica, qual seja a forma como o capitalismo se reproduz sobre o corpo vulnerabilizado, e as concepções de racismo que trazem, ainda que indiretamente, uma teoria do Estado.8
3. XENO-RACISMO COMO NOVA EXPRESSÃO DO RACISMO
Aqui, trato agora um pouco sobre o conceito de xeno-racism foi cunhado no início dos anos 2000 pelo romancista srilankês Ambalavaner Sivanandan (1932-2018), com vistas à compreensão das dinâmicas contemporâneas da sociedade capitalista britânica diante do fenômeno da migração.9
Propõe-se então uma alternativa analítica tanto ao que identificava como secundarização do racismo pelo economicismo marxista quanto ao “exacerbado” culturalismo dos Estudos Culturais Britânicos.10 Foi neste ambiente teórico, proporcionado pelo Institut of Race Relations, mas, sobretudo, provocado pelas rígidas respostas dos Estados europeus diante dos novos fluxos migratórios, que A. Sivanandan, em um diálogo com a cientista social Liz Fekete, formulou o conceito de xeno-racism.11 Neste sentido, o autor defende que na fase atual do capitalismo global, a qual é marcada pelo constante deslocamento humano e, ao mesmo tempo, pela balcanização12 de países, o racismo adquiriria uma nova expressão: o xeno-racismo.
Para Sivanandan, o xeno-racismo é um racismo, que não é dirigido, necessariamente, àqueles com pele escura, [oriundo] dos antigos territórios coloniais, mas às novas categorias de deslocados, despossuídos e desarraigados, que estão batendo nas portas da Europa Ocidental, a Europa que ajudou a substituí-los em primeiro lugar.13 A xenofobia é um racismo, isto é, que não pode ser codificado por cores, dirigido também para brancos pobres e, portanto, é passado um medo “natural” de estranhos. É racismo em substância, mas “xeno” em forma. É um racismo atribuído a estranhos empobrecidos, mesmo que sejam brancos. É xeno-racismo.14
Os casos supramencionados não são isolados, como muito se costuma dizer quando o Estado se prontifica a justificar a violência racial. É preciso dia após dia, subverter a toda opressão, qual seja, resquício colonial. Assim, concluímos que a “tarefa de uma sociedade democrática, mais do que combater o racismo, é eliminar o peso da raça sobre a liberdade dos indivíduos, desmantelar os privilégios raciais e instituir o “império da lei”.15
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Referências
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1. DUTRA, Daniele. Mãe de Moïse: Não posso deixar o Brasil enquanto justiça não for feita. Tab Uol. 2022. Disponível em: https://bit.ly/3AYe7gi. Acesso em: 04 fev. 2022.
2. TRINDADE, Flávio. Extra. 2022. Disponível em: https://glo.bo/3gntHbW. Acesso em: 04 fev. 2022.
3. Esta passagem faço um pequeno trocadilho com a música composta por Cazuza, George Israel e Nilo Romero no final dos anos oitenta “Brasil, Mostra tua cara!”. Inscrita principalmente no período de redemocratização brasileira, em meados de 1988, a transição da ditadura para a democracia.
4. Nomenclatura utilizada para designar pessoas nativas ou naturalizadas da República Democrática do Congo. Estado ocidental da África equatorial, capital Kinshasa, antigo Zaire.
5. Aqui trataremos como xeno-racismo.
6. ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural (Feminismos Plurais). Editora Jandaíra. Edição do Kindle, p. 58.
7. Sob as condições econômicas da sociedade capitalista, o Estado dá forma a uma comunidade política cuja socialização é feita de antagonismos e contradições expressas nos interesses individuais. Daí resulta que o Estado não é apenas o garantidor das condições de sociabilidade do capitalismo, mas é também o resultado dessas mesmas condições, o que faz dele mais do que um mero árbitro ou um observador neutro da sociedade. Como a sociedade é dinâmica, as condições econômicas e as relações de força alteram-se o tempo todo, e os conflitos tendem a surgir. Esses conflitos pressupõem a capacidade do Estado de manter as estruturas socioeconômicas fundamentais e a adaptação do Estado às transformações sociais sem comprometer sua unidade relativa e sua capacidade de garantir a estabilidade política e econômica.82 Portanto, a atuação do Estado, como a forma política da sociedade capitalista, está histórica e logicamente conectada com a reprodução das outras formas sociais do capitalismo: a forma-mercadoria (propriedade privada), a forma-dinheiro (finanças) e a forma-jurídica (liberdade e igualdade). Entretanto, dizer que o Estado é capitalista não é o mesmo que dizer que o Estado se move única e exclusivamente pelos interesses dos detentores do capital. A ligação entre Estado e capitalismo é muito mais complexa e estrutural, tendo em vista que o Estado contemporâneo, marcado pela impessoalidade e pela pretensa separação com o mercado, só pode ser vislumbrado no contexto do capitalismo. (ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural (Feminismos Plurais). Editora Jandaíra. Edição do Kindle, p. 63-64).
8. ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural (Feminismos Plurais). Editora Jandaíra. Edição do Kindle, p. 59.
9. FAUSTINO, Deivison Mendes. DE OLIVEIRA, Leila Maria. Xeno-Racismo ou Xenofobia Racializada? Problematizando a hospitalidade seletiva aos estrangeiros no Brasil. REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum, Brasília, v. 29, n. 63, dez. 2021, p. 194.
10. SIVANANDAN, 2014, sp, apud, FAUSTINO, Deivison Mendes. DE OLIVEIRA, Leila Maria. Xeno-Racismo ou Xenofobia Racializada? Problematizando a hospitalidade seletiva aos estrangeiros no Brasil. REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum, Brasília, v. 29, n. 63, dez. 2021, p. 194-195.
11. FAUSTINO, Deivison Mendes. DE OLIVEIRA, Leila Maria. Xeno-Racismo ou Xenofobia Racializada? Problematizando a hospitalidade seletiva aos estrangeiros no Brasil. REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum, Brasília, v. 29, n. 63, dez. 2021, p. 194-195.
12. O termo tem sido utilizado para descrever uma variedade de alternativas regulatórias sendo consideradas ou adotadas pela União Internacional de Telecomunicações (UIT) (eventos recorrentes liderados por governos), Brasil (propostas de retenção local de dados e lançamento de novos cabos submarinos para Europa e África), Rússia (restrições de acesso a Internet e controle de mídias sociais), Índia (proposta de criação de órgão nas Nações Unidas dedicado à coordenação de temas de IG), China (Grande Muralha Cibernética da China – Great Firewall of China), Irã (Internet Halal), Turquia (bloqueio a mídias sociais), Europa (padrões muito elevados de privacidade e estímulos à formação de uma nuvem pan-europeia). A diversidade do grupo sugere que não podem estar todos fazendo a mesma coisa. O termo “balcanização” foi cunhado em uma entrevista com o político alemão Walther Rathenau ao New York Times, em 1918, que analisava o processo geopolítico de fragmentação do Império Otomano e a consequente formação de estados menores não-cooperativos na região dos Bálcãs (Todorova, 2009, sp, apud, ALVES JR., Sérgio. A fragmentação da balcanização da Internet, 2021. Disponível em: https://bit.ly/3ut0K6B. Acesso em: 04 fev. 2022).
13. FAUSTINO, Deivison Mendes. DE OLIVEIRA, Leila Maria. Xeno-Racismo ou Xenofobia Racializada? Problematizando a hospitalidade seletiva aos estrangeiros no Brasil. REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum, Brasília, v. 29, n. 63, dez. 2021, p. 194-195.
14. SIVANANDAN, apud, FEKETE, 2001 apud FAUSTINO, et al, 2021, p. 194 e 195
15. ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural (Feminismos Plurais). Editora Jandaíra. Edição do Kindle, p. 60.