Nessa semana, em uma conversa com uma aluna de iniciação científica, Stefany Bicalho, debatíamos sobre as políticas públicas de acesso à medicamentos, e sobre a utilização do argumento da reserva do possível para medicamentos de alto custo. Além disso, nesta semana a mídia noticiou um aumento no preço dos medicamentos que irá impactar diretamente no bolso dos brasileiros. Isso tudo nos fez repensar e remodelar o tema da nossa coluna para tratar sobre algumas questões jurídico-econômicas sobre os medicamentos e as patentes.
De fato, a existência de patentes irá afetar diretamente o custo final do medicamento para o consumidor, inclusive, em outro momento, já traçamos algumas linhas e diretrizes sobre o tema, aqui nesta coluna. Mas nem sempre as patentes serviram para proteger o conhecimento da produção de medicamentos, o fenômeno é historicamente recente.
As patentes funcionam como uma forma de gerar escassez no mercado para produtos abundantes, que naturalmente não seriam bens valoráveis na economia, os bens do conhecimento sobre a produção de produtos ou processos. Sobre uma ótica utilitarista foi um meio de se proteger os gigantescos investimentos no desenvolvimento de produtos do setor fármaco-químico. Mas não pode o Direito contentar-se com o utilitarismo da indústria, por isso defendemos que a fundamentação da patente deve ser o desenvolvimento proporcionado pela sua existência.
Percebam, caros leitores, que sem essa escassez fictícia, gerada pelo direito, a chance de retorno financeiro dos investimentos de alto risco destinados a criação de novos medicamentos é quase nula (e tende a ser nula cada vez que avançam os conhecimentos nos campos farmacêutico, químico e bioquímico pelo incremento da capacidade de engenharia reversa de produtos). Sem o Direito, os players oportunistas (free riders) teriam toda a liberdade para copiar os produtos, tornando inviável qualquer investimento em desenvolvimento de novos produtos.
Mas, ao contrário do que se pode pensar, a patente não impede que se desenvolvam novos estudos que possam melhorar as moléculas existentes, ou que possam desenvolver novas moléculas ou novas formas medicamentosas de se combater determinadas doenças, pelo contrário, a lei é bastante clara em dizer que o direito do titular da patente não se aplica aos atos com finalidade experimental, relacionado “estudos ou pesquisas científicas ou tecnológicas”,1 ou seja, o direito de patente resume-se a possibilidade do titular impedir o uso indevido de terceiros explorarem comercialmente seu produto, não impede que esses mesmos concorrentes usem seu produto em testes científicos ou para o desenvolvimento de novas tecnologias incrementais.
O que limita o desenvolvimento de medicamentos no Brasil é a assimetria de informação existente entre a indústria internacional e a indústria nacional, o baixo investimento em pesquisas e educação (com um orçamento cada vez mais diminuto), insegurança dos pesquisadores, e a falta de uma carreira específica para pesquisa científica na maioria das instituições de ensino superior do país; e por fim a aplicação precoce do TRIPS no Brasil com direitos que vão além da proteção básica para a indústria farmacêutica internacional (Mail Box e Pipeline).
Logo, temos poucos players no nosso mercado que têm condições de desenvolver melhorias e novos compostos em tempo hábil para induzir um rápido equilíbrio do mercado quando temos medicamentos patenteados, principalmente em se tratando de doenças raras ou de compostos de elevado custo. Quando trata-se de doenças raras esbarramos no curso de produção de medicamentos em pequena escala, o que irá influenciar diretamente no preço, além disso, ainda há o fator de desigualdade de renda no Brasil, poucos serão aqueles que poderiam acessar o medicamento por questões financeiras, e se colocarmos na balança as questões relativas ao custo de armazenagem, transporte, etc, o cenário tende a piorar mais ainda.
Para enfrentar parte dos problemas do preço dos medicamentos, o Brasil possui o Sistema Único de Saúde – SUS, que tem um compromisso de assegurar o acesso universal a medicamentos,2 o que deveria pressionar os preços para baixo pois ter o Estado como consumidor deveria garantir uma produção mínima dos medicamentos, permitindo que a sociedade, como um todo, arque com os custos de desenvolvimento diluídos nas unidades dos medicamentos, mas isso precisa que o Estado se mostre eficiente em fiscalização do abuso do poder de patente (preços abusivos) e que garanta a celeridade da análise dos pedidos de patente.
A celeridade do pedido de patente não é importante somente na vigência do extinto parágrafo único do artigo 40, revogado pela lei nº 14.195 de 2021, mas pela própria redação do caput do artigo que estabelece o marco inicial da contagem de prazo de vigência como a data do depósito do pedido.
O que acontecia com o parágrafo único do Artigo 40 é que ele estabelecia um período mínimo de efetiva vigência, e o Backlog do INPI, quando o período de análise ultrapassava os 10 anos, gerava uma extensão da patente dos medicamentos como um todo, incluindo-se os de alto custo, cujo o próprio Estado brasileiro era consumidor.
Para exemplificar essa ineficiência trazemos os dados de uma análise publicado na revista Cadernos de Saúde Pública intitulado “Os custos da extensão da vigência de patentes de medicamentos para o Sistema Único de Saúde”3 onde analisou-se o custo dos 50 medicamentos que representam os maiores custos para o Departamento de Logística em Saúde, considerando as compras realmente efetivadas por dispensa de licitação ou nos casos de inexigibilidade de licitação.
Foram selecionados medicamentos e divididos em 3 grupos, o primeiro daqueles medicamentos que efetivamente tiveram suas patentes concedidas após os 10 anos, o segundo dos que ultrapassaram os 10 anos do pedido sem concessão da patente, e o terceiro daqueles que foram concedidos via Mail Box e buscam extensão de patentes na justiça (apesar da lei ser clara em não conceder).
O fato principal que destacamos como resultado obtido pela pesquisa, que terá um reflexo interessante para o tema que estamos tratando neste ensaio, é o do custo total de apenas 9 medicamentos:
A estimativa de gasto com compra do Grupo A é de R$ 1,3 bilhão (18,9%) para todos os respectivos períodos de extensão. Para o Grupo B, esse valor é pouco maior: R$ 1,4 bilhão (20,1%). Novamente, o Grupo C lidera os custos, com R$ 4,2 bilhões (61%) de gastos estimados. Assim, o gasto total para o DLOG durante a extensão das patentes dos nove medicamentos foi calculado em R$ 6,8 bilhões, como visto na Tabela 2. Por conseguinte, é imperioso que sejam procuradas maneiras legais e constitucionais de reduzir esse gasto. Para criar uma primeira perspectiva do quanto a extensão da vigência é responsável por esse gasto, foi calculada a economia que o DLOG teria se pudesse comprar os genéricos já disponíveis no mercado. Conforme indicado na Tabela 3, o genérico do darunavir encontrado é 58,1% mais barato que o VMU praticado nas compras do DLOG, e o genérico do dasatinibe, 77,1% mais barato. Não obstante serem reduções significativas, o daclatasvir e o sofosbuvir se destacam pela enorme diferença: seus genéricos são vendidos a valores 99,1% e 98,9% mais baratos, respectivamente. Se houvesse somente a troca desses quatro medicamentos de referência por seus genéricos, seria possível poupar praticamente R$ 1,2 bilhão (75,5%) ao total do tempo de extensão.4
Acreditamos que, mesmo com a recente revogação do parágrafo único do artigo 40, que gerava essa distorção da dilação do prazo das patentes de medicamentos, e agora com não existência de um prazo mínimo de vigência efetiva da patente, não haverá mudanças significativas, pois apesar dos esforços dos funcionários do INPI a redução do orçamento do órgão deve impactar negativamente os resultados da instituição. Principalmente caso se mantenha a política de não verificação dos abusos de direito de patente (preços abusivos), e se o Estado mantiver sua política de não adquirir os medicamentos genéricos ou biossimilares.
Percebe-se, então, que o mesmo Estado que alega a reserva do possível por questões financeiras, para aquisição de medicamentos de alto custo, protegidos ou não por patente, é o Estado que se abstém de cumprir seu papel fiscalizador ou de buscar eficiência na aplicação dos recursos, seja pelo sucateamento do INPI, seja pela manutenção de compras de medicamentos sem licitação ou por dispensa de licitação, mesmo havendo genéricos ou biossimilares que garantiriam uma economia de pelo menos R$ 1,2 bilhão de reais (ou R$ 417,6 milhões de reais por ano) em projeções conservadoras.
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Referências
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1. Art. 43, II. BRASIL, LEI Nº 9.279, DE 14 DE MAIO DE 1996: regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial. Disponível em: https://bit.ly/37x4Nph. Acesso 30 mar. 2022.
2. CHAVES, G. C. et al. Medicamentos em situação de exclusividade financiados pelo Ministério da Saúde: análise da situação patentária e das compras públicas. Rio de Janeiro : Fiocruz , ENSP, 2018.
3. PIRANHOS, J et al. O custo da extensão da vigência de patentes de medicamentos para o Sistema Único de Saúde. In: Cadernos de saúde pública. n.36, 2020. p.1-13
4. PIRANHOS, J et al. O custo da extensão da vigência de patentes de medicamentos para o Sistema Único de Saúde. In: Cadernos de saúde pública. n.36, 2020. p.1-13