Perorações sobre a garantia constitucional do contraditório à luz do modelo cooperativo de processo – parte I

Perorações sobre a garantia constitucional do contraditório à luz do modelo cooperativo de processo – parte I

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Para identificar as garantias inerentes ao contraditório, os juristas do medievo desenvolveram o até hoje invocado brocardo audiatur et altera pars, cuja ideia de bilateralidade da instância já aparecia em criações literárias latinas (v.g. Sêneca) e gregas (v.g. Aristófanes, Eurípedes, Plutarco, Ariosto). O substrato do contraditório, no entanto, possuía natureza ostensivamente jusnaturalista, lastreada na convocação de Deus a Adão (Antigo Testamento: Gênesis 3.9).

Apesar do caráter jusnaturalista (e divino) da citação, o modelo de processo sumário e mais célere trazido pela Clementina Saepe influenciou o processo laico, abrindo a possibilidade para o julgamento de pleitos sem citação prévia, desde que houvesse justa causa para tanto.

O paulatino desenvolvimento do jusnaturalismo moderno no Velho Continente (séculos XVII e XVIII) resultou no desprestígio e enfraquecimento do princípio do contraditório, que ficou reduzido a uma mera contraposição de teses. Durante o século XIX, o contraditório já não mais possuía o referencial de direito divino do jusnaturalismo clássico e continuou perdendo força no limiar do século XX, mesmo depois da superação da Primeira Guerra Mundial. No entanto, depois da Segunda Grande Guerra, voltaram-se as atenções ao contraditório, que passou a funcionar como eixo distintivo entre processo e procedimento, com a subsequente retomada do aspecto lógico-formal (paridade de armas), e o questionamento sobre a possibilidade de entendê-lo como o ponto nevrálgico do embate dialético, conduzido por colaboração das partes.

No Brasil, a sede originária do princípio do contraditório é a Constituição Federal (inciso LV do art. 5º), em decorrência do Estado Democrático de Direito. Com a promulgação do CPC vigente, o postulado passou a figurar como norma fundamental do processo civil (arts. 7º, 9º e 10) e, logo depois, em outros dispositivos (v.g. art. 98, VIII, que trata da gratuidade da justiça sobre os depósitos judiciais; art. 115, caput, que fulmina de nulidade ou ineficácia a sentença proferida sem a instauração do contraditório; art. 329, I, em que o contraditório se faz necessário na hipótese de aditamento ou alteração do pedido ou da causa de pedir etc.), justamente em face da impossibilidade de se tolher a posição jurídica de outrem antes que esse jurisdicionado tenha a oportunidade de levar ao juízo as razões dele e tomar as providências concretas para receber a salvaguarda do direito de que se diz ser o titular.

A projeção do contraditório em variados institutos processuais deixa claro o intuito do legislador de, em um primeiro instante, tornar concreta e efetiva a bilateralidade da audiência, e, subsequentemente, imprimir ao procedimento um tom cooperativo, em oposição aos tradicionais modelos adversarial e inquisitorial de processo.

No entanto, o contraditório a que o atual diploma de processo alude – em qualquer das aplicações positivadas no texto normativo – não é mais aquele lastreado na vetusta concepção de simples bilateralidade de audiência das partes (audiatur et altera pars),1 em que elas, posicionadas de modo equidistante entre o juiz, tinham a possibilidade de deduzir razões e apresentar provas, concretizando a dialética e o silogismo judicial, composto pela tese apresentada pelo autor, a antítese oposta pelo réu e a síntese a que se chegava o órgão judicante.

Assim, para que o contraditório se reputasse atendido, bastava assegurar aos sujeitos processuais o noticiário do que se passava nos autos do processo, por meio de citação/intimação,2 e garantir-lhes a oportunidade de sobre ele se manifestar (binômio informação-reação, no qual o primeiro elemento é obrigatório, e o segundo facultativo), uma vez que somente ao juiz cumpriria a elaboração do pronunciamento regulamentador da situação litigiosa.

Todavia, com a paulatina evolução do processo, a aceitação do caráter público dele e a tomada de consciência de que ele é um instrumento em favor da mais adequada tutela do direito material, o conceito de contraditório passou a receber novos influxos e também experimentou gradual evolução. Ao notar essa realidade, Elio Fazzalari tratou de reelaborar o conceito clássico de processo (rectius: relação jurídica processual) para também examiná-lo à luz do procedimento e do contraditório, que se revela, no plano concreto, mediante o exercício de uma gama de escolhas, reações e controles de todos os contraditores do drama judicial, os quais se agrupam e se influenciam mutuamente.3

Dessa forma, o processo deve ser entendido como um conjunto de atos realizados durante certo período, caracterizados pela participação dos envolvidos. Segundo os ensinamentos de Beclaute Oliveira Silva e Welton Roberto,4 em se tratando do princípio do contraditório, é insuficiente admitir-se que a parte possa se insurgir contra os fatos trazidos pela outra somente pelo uso do conteúdo linguístico. Sonegar à parte o contato com a hipótese fática resulta em indevida supressão da efetiva oportunidade de contraditar os elementos postos à cognição do juízo. Daí ser imperioso o abandono da feição estática do contraditório, que se contenta com a mera oportunidade de uso da linguagem como único fator de realização do audiatur et altera pars, sobretudo em decorrência do primado da colaboração no atual processo civil brasileiro.

Carlos Alberto Alvaro de Oliveira também já era a favor da incidência da colaboração como forma de arejar o entendimento sobre o contraditório ainda na vigência do Código de Processo Civil de 1973. Ainda que desprovido de base dogmático-infraconstitucional, o processualista do Rio Grande do Sul preconizava maior participação do juiz na formação do provimento, como incidência da democracia contemporânea na envergadura dos poderes dele.

Ao assim se posicionar, Carlos Alberto Alvaro de Oliveira5 legou ao processo civil contemporâneo a atual feição do contraditório, composta pela ciência bilateral dos atos do processo, possibilidade de impugná-los e, sobretudo, efetiva participação das partes na formação dos provimentos sobre as matérias dispositivas e de conhecimento oficioso. O intento dar-se-ia na viabilização, pelas partes, do conhecimento das razões adversas e oportunidade de genuína refutação em tempo adequado. Demais disso, asseguram-se às partes a possibilidade de participar do juízo de fato, com indicação dos meios de provas pertinentes para a comprovação das versões dos fatos expostas nos arrazoados das partes, e também a possibilidade de formação do juízo de direito, ante a proibição de decisão com base em argumento que não foi submetido ao crivo dos litigantes.

A ideologia encampada pelo Código de Processo Civil de 2015, em que prevalece a ideia de coparticipação entre todos os envolvidos no processo, afasta-se da acepção clássica de contraditório (contraditório estático), de molde a que o instituto passou por oportuna revisitação legislativa e se apresenta, agora, como verdadeira garantia de o jurisdicionado apresentar as razões dele ao longo da demanda judicial e, em conjunto com o juiz, efetivamente participar da elaboração do pronunciamento que solucionará o conflito de interesses.

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Luiz Roberto Hijo Sampietro

* Doutorando e mestre em direito processual civil pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em direito empresarial pela Escola Paulista de Direito (EPD). Bacharel em direito pela Universidade São Judas Tadeu (USJT). Advogado. Professor de processo civil em cursos de pós-graduação lato sensu. E-mail: betohijo@yahoo.com.br.

 

Referências

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1. MARCATO, Antonio Carlos. Preclusões: limitação ao contraditório? Revista de Processo n. 17, jan.-mar./1980, p. 111. Nas Instituições, Giuseppe Chiovenda já associava o contraditório ao princípio da igualdade das partes ao sustentar a impossibilidade de o juiz “tirar partido de fato não esclarecido à luz do contraditório” ao proferir uma decisão. (CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil, v. II. Tradução de J. Guimarães Menegale e notas de Enrico Tullio Liebman. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1965, p. 349)

2. Ao comentar a importância da citação no processo civil italiano, Antonio do Passo Cabral salienta que tal ato é consequência direta do justo processo, plasmado na cláusula due process of law. Leia-se CABRAL, Antonio do Passo. Il principio del contraddittorio come diritto d’influenza e dovere di dibattito. Rivista di Diritto Processuale, ano LX (Seconda Serie), n. 2, aprile-giugno, 2005, Padova: CEDAM, p. 449-464, esp. p. 451.

3. FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale. 7ª ed. Padova: CEDAM, 1994, p. 82-84.

4. O contraditório e suas feições no Novo CPC. Normas fundamentais. Salvador: Juspodium, 2016, item 4, p. 248. Essa ideia de contraditório, que leva em consideração o contraditório material e o contraditório argumentativo, está radicada nas lições desenvolvidas pelos professores italianos Giovanni Conso e Vittorio Grevi, seguidas pelo discípulo Glauco Giostra, contemporâneo de Fazzalari na Universidade de Roma La Sapienza.

5. Garantia do contraditório. Garantias constitucionais do processo civil. Coord. José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: RT, 1999, p. 144.

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