Durante os meses de abril e maio de 2022, muito se falou a respeito do midiático e sensacionalista julgamento envolvendo Johnny Depp e sua ex-esposa, Amber Heard, duas figuras famosas do cinema hollywoodiano.1
Em síntese, Johnny Depp, autor da ação (plaintiff), alegou três casos de difamação contra a ré (defendant) Amber Heard, em um processo de responsabilidade civil por difamação, requerendo 50 milhões de dólares a título de indenização pelos danos. Em contrapartida por reconvenção, Heard também alegou três episódios de difamação e requereu 100 milhões de dólares pelos danos sofridos. O julgamento ocorreu no Tribunal do Condado de Fairfax, no estado norte-americano de Virgínia.
A origem do processo remonta a 2018, quando Heard publicou no jornal The Washington Post um relato jornalístico de que sofria violência no seio conjugal, sem, contudo, mencionar o nome de seu ex-marido. Todavia, restara cristalino que o conteúdo da matéria se referia a Johnny Depp. O ator teve sua fama maculada por tais acusações e teve significativas perdas financeiras, e sua carreira se deparou com um inédito declínio.
Do ponto de vista ético-jurídico, ambos cometeram ilícitos e causaram danos ao outro, em decorrência de suas condutas significativamente danosas. A deliberação do júri, com base nisto, decidiu que Johnny deveria pagar a Amber a quantia de 2 milhões de dólares, e que Amber deveria pagar a Johnny 15 milhões de dólares.
Chama atenção, contudo, o aspecto civil da condenação indenizatória imposta a ambas as partes. Diferentemente do que acontece no Brasil, o sistema jurídico norte-americano possui júri para casos de responsabilidade civil, em que 7 pessoas civis deliberam sobre os apontamentos oriundos do julgamento, devendo entrar em consenso, buscando uma deliberação unânime.
Assim, o caráter indenizatório dos júris civis possui intuito de compensar aos demandantes lesados uma compensação pelos danos sofridos, bem como objetiva a recuperação de eventuais perdas causadas pelo evento danoso. Nesse norte, os chamados “compensatory damages” tentam “reembolsar” o demandante que experimentou verdadeiras perdas financeiras, inclusive lucros cessantes. É nesse sentido que o júri deliberou a quantia de 10 milhões de dólares, a título de compensação.
Os outros 5 milhões referem-se ao instituto anglo-saxônico dos “punitive damages”, que, em sintético conceito, trata-se de uma indenização que objetiva punir o ofensor por sua conduta danosa, dissuadindo, em um conceito pedagógico, que ele (e o restante da comunidade) reitere similares condutas futuramente.
Sobre os punitive damages, expõe João Marcelo Torres Chinelato2 que, “quando a Responsabilidade Civil decorre de atos culposos, o agente atua de modo evidentemente reprovável, devendo-se dar ao fato uma resposta punitiva e capaz de atuar também na prevenção da prática”.
Nesse sentido, dissertam Jane Mallor e Barry Roberts:3
Whenever a civil court resolves the conflicting claims of two private parties, it also sets and enforces standards of behavior. For this reason, in addition to achieving a result that does justice between the parties, a court also must achieve a result that protects the interest of society.
Nelson Rosenvald,4 por sua vez, assevera:
De fato, tradicionalmente os punitive damages são deferidos com duas finalidades: retributiva (punishment) e desestímulo (deterrence). A retribuição reclama que a conduta revele extrema reprovação social – uma malícia, evidenciada pelo dolo ou grave negligência do agente -, cumulada ao desestímulo, no sentido de direcionar a pena a afligir o transgressor, induzindo-o a não reiterar comportamentos antissociais e ultrajantes análogos. Enquanto as cortes estadunidenses e canadenses adotam a expressão punitive damages, outras jurisdições – como a britânica e australiana – optam por exemplary damages. Não se pode afirmar que sejam termos de significado idêntico, pois a adoção de uma por outra produz reflexos sobre o perfil sistemático. O termo “punitive” enfatiza a preferência por um objetivo de punição; diversamente, a adoção da locução “exemplary” indica que o fim primário é de constituir um desestímulo que afaste o espectro da reiteração da mesma conduta.
Depp, contudo, viu a deliberação de 15 milhões de dólares ser reduzida ao montante de 10,35 milhões. O motivo, que causou certa estranheza aos que acompanhavam o midiático julgamento através das redes sociais, é que existe um teto máximo para indenização por punitive damages em determinados estados americanos, tais como a Virgínia.
Assim, mesmo após a deliberação do júri, foi necessário que a Juíza minorasse, de oficio, o montante para 350 mil dólares, limite financeiro estatal. A estipulação de valores máximos do quantum das indenizações punitivas remonta ao paradigmático caso BMW of North America v. Gore,5 em que a Suprema Corte Norte-Americana considerou que:
while a state may impose punitive damages to further its interest in deterring unlawful conduct, the Fourteenth Amendment’s due process clause prohibits states from imposing grossly excessive punishments on tort-feasors. In the present case, the punitive damage’s excessive nature is indicated by the 500 to 1 ratio between the jury’s punitive and actual damage awards, the relatively insignificant amount of damage, and the lack of statutory fines that remotely parallel the present award’s magnitude.6
Com efeito, a principiologia tem origem na garantia constitucional do due process of law (devido processo legal), consubstanciada na 14th Ammendment (Décima Quarta Emenda), objetivando o estabelecimento de uma correlação entre o valor dos compensatory damages com os punitive damages, de forma a parametrizar limites máximos legais,7 evitando que o instituto se torne medida excessivamente temerária ou desproporcional, ou que, ainda, o demandante obtenha ganhos considerados ilícitos (enriquecimento sem causa).8
Nesse sentido:
Fundamentalmente, a preocupação externada pela Suprema Corte diz respeito à preservação da Due Process Clause of the Fourteenth Amendment, sobretudo para aquelas hipóteses em que a indenização fixada pelo corpo de jurados é considerada abusiva. Desse modo, segundo critérios fixados pela Corte, devem-se considerar três diretivas: I. o grau de reprovabilidade da conduta do réu; II. a disparidade entre o dano efetivo ou potencial sofrido pelo autor e os punitive damages; III. a diferença entre os punitive damages concedidos pelo júri e as multas civis autorizadas ou impostas em casos semelhantes.9
Contudo, e como bem destaca Nelson Rosenvald, “a Suprema Corte parece inapta a decidir se os punitive damages são voltados ao agente ou as vítimas”,10 uma vez que em outros casos envolvendo o referido remédio, ela adotou posicionamentos efetivamente voltados para o lado repressor/punitivo do instituto, com manifesto intuito de punir o agente, quando em outras ocasiões sua atuação seguiu uma linha centrada na pessoa lesada, em uma espectro de super-compensação.
Dadas as peculiaridades da sistemática jurídica da common law, dificilmente o caso Depp v. Heard chegaria na Suprema Corte. Afinal, o valor é meramente simbólico para ambas as partes, uma vez que Depp pleiteou a demanda com objetivo intrínseco de reestabelecer sua reputação, manchada nos últimos anos em decorrência do acontecimento. Como o mesmo bradou, o objetivo principal era esclarecer sua verdade, e não efetivamente obter 50 milhões a título de indenização. E, considerando a “tiktorização” do caso, proveniente da sociedade do espetáculo presente na atual “idade mídia”, pode ser dito que o mesmo conseguiu se reerguer.
Lado outro, caso o ator quisesse, realmente, ser reparado pelos danos causados, o valor pleiteado a título de compensatory damages seria substancialmente maior, englobando maiores lucros cessantes decorrentes de filmes em que participaria e publicidades em que lucraria, podendo alçar, quiçá, a teoria da perda de uma chance.11
Todavia, interessante é notar que a deliberação do júri no Tribunal do Condado de Fairfax reascendeu os debates contemporâneos do referido instituto e a busca pela necessidade de limitação de um quantum (ou destinação de parcela do valor para fundos públicos, como adotado em outros estados), ainda que a matéria não seja pacífica. Resta saber qual posição majoritária a Suprema Corte irá adotar nos próximos anos.
____________________
Caio César do Nascimento Barbosa
Referências
________________________________________
1. LOS ANGELES TIME. Johnny Depp wins more than $10 million in defamation case against Amber Heard. Disponível em: https://lat.ms/3NcNz0k. Acesso em: 02 jun 2022.
2. CHINELATO, João Marcelo Torres. Do dever de restituir o lucro decorrente da lesão a direitos coletivos. Publicações da escola da AGU. vol. 10, n. 3, p. 115-130. Brasília: AGU, 2018, p.120-121.
3. MALLOR, Jane; ROBERTS, Barry. Punitive Damages: Toward a Principled Approach. Hastings Law Journal. Volume 31, Issue 3. Available at: https://bit.ly/3GMTqqQ. Pg. 647.
4. ROSENVALD, Nelson. Punitive damages nos EUA: As contradições teóricas na doutrina e na Suprema Corte. Migalhas. Disponível em: https://bit.ly/3M7HXCZ. Acesso em: 02 jun. 2022.
5. “BMW of North America, Inc. v. Gore.” Oyez, www.oyez.org/cases/1995/94-896. Accessed 2 Jun. 2022.
6. Tradução nossa: (…) embora um estado possa impor danos punitivos para promover seu interesse em impedir a conduta ilegal, a cláusula do devido processo legal da Décima Quarta Emenda proíbe os estados de impor punições grosseiramente excessivas aos infratores. No presente caso, a natureza excessiva do dano punitivo é indicada pela proporção de 500 para 1 entre os danos punitivos e reais do júri, a quantidade relativamente insignificante de danos e a falta de multas legais que se assemelham remotamente à magnitude do prêmio atual.
7. RENDLEMAN, Doug. Remedies: A Guide for the Perplexed. 2013, p. 580.
8. Alguns estados norte-americanos (como o Missouri e Indiana) destinam porcentagem do valor dos punitive damages para fundos públicos, evitando que o ofendido possa efetivamente lucrar de forma desleal.
9. VENTURI, Thaís G. Pascoaloto. A doutrina dos punitive damages e a fixação dos danos morais no sistema de justiça brasileiro. Migalhas. Disponível em: https://bit.ly/3MktJ20. Acesso em: 03 jun 2022.
10. ROSENVALD, Nelson. Punitive damages nos EUA: As contradições teóricas na doutrina e na Suprema Corte. Migalhas. Disponível em: https://bit.ly/3PWQlIC. Acesso em: 02 jun. 2022.
11. Para mais, veja: BARBOSA, Caio César do Nascimento. Perda de uma chance e o Big Brother Brasil: aspectos controvertidos da “idade mídia”. Magis – Portal Jurídico. Disponível em: https://bit.ly/3MeFffd. Acesso em: 02 jun. 2022.