Em outubro de 2022, a Securities and Exchange Comission (SEC) removeu os lucros ilícitos da influenciadora e socialite Kim Kardashian pela divulgação, em suas redes sociais, de uma criptomoeda1 (EMAX tokens), com texto elogioso e link de acesso para o site da EthereumMax, empresa que disponibiliza o criptoativo.2
Em breves linhas, o SEC é uma agência federal norte-americana responsável pelo mercado de capitais, possuindo responsabilidade em leis de títulos federais bem como regula o setor de valores mobiliários, regulando as ações e o câmbio dos Estados Unidos e protegendo investidores de práticas consideradas como fraudulentas no do mercado de capitais.
Casos em que o SEC aparece como litigante em ações distritais contra investidores que agiram de modo fraudulento (ou pelo menos aparentemente fraudulentos) são comuns, como o notório SEC v. Musk, em que a agência obteve sucesso contra o bilionário Elon Musk (que tweetou que estava considerando retirar a empresa Tesla da bolsa, o que gerou alta nas suas ações), sendo condenado, dentre outras penalidades, ao disgorgement3 dos lucros obtidos em face de sua fraude civil.
No caso envolvendo Kim Kardashian, a celebridade realizou um acordo com a agência para pagar US$ 1,26 milhão em multas, disgorgement, e juros e cooperar com a investigação em andamento da Comissão.
A tônica da questão no incidente Kardashian é que a influenciadora anunciou em suas plataformas digitais a oportunidade de investimento no criptoativo, sem, contudo, indicar se estava sendo contratada para a realização dessa publicidade e quanto estava sendo paga para tanto. Considerando o alcance e o engajamento da influenciadora, certamente uma considerável parcela de seus seguidores se deparou com uma dúvida razóavel: estaria Kim Kardashian anunciando o seviço de ativos como se agente publicitária fosse ou seria apenas uma “dica amiga”?4
Os investidores possuem o direito de saber se a divulgação do título se deu de forma (im)parcial, e Kim não divulgou essa informação, violando, inclusive, disposições estabelecidas na Federal Trade Commission (FTC), entidade governamental que possui poder de regulamentação e fiscalização e se auto classifica como uma agência federal bipartidária que atua “protegendo os consumidores e a concorrência, impedindo práticas comerciais anticompetitivas, enganosas e injustas por meio de aplicação da lei, advocacia e educação sem sobrecarregar a atividade comercial legítima”.5
Isto pois a referida agência determina a indicação de palavras-chave que clarifiquem, de forma explícita, o vínculo do influenciador com o fornecedor/anunciante, de forma que não exista confusão sobre a relação entre esses agentes. Portanto, orienta-se a linguagem simples e clara, sem que o influenciador utilize termos que possam confundir o público ou que não sejam claros o suficiente, não sendo permitida a utilização de terminologias vagas: “Não use termos vagos ou confusos como “ad”, “publi” ou “collab” ou termos independentes como “obrigado” ou “embaixador” e fique longe de outras abreviações e taquigrafias quando possível”, disposições essas desobedecidas por Kardashian.6
A partir do momento em que esses influenciadores veiculam tais oportunidades de investimento, não quer dizer que os investidores/consumidores no geral saibam, de forma clarificada, os riscos e implicações do negócio jurídico em que se envolvem, ferindo a própria tutela econômica do indivíduo.
Neste giro, importante é o paradigmático acordo do SEC com a Kardashian, também a título de disgorgement of profits, instituto que trata da questão dos ganhos indevidamente obtidos, com a finalidade de se evitar a ocorrência do enriquecimento sem causa do gerador do dano. É comum, na seara da Responsabilidade Civil, se a ouvir a máxima da common law do “tort must not pay”, traduzido livremente a algo similar à “o ilícito não deve ser lucrativo”. Em outros termos, o referido instituto significa o mesmo que repelir os ganhos injustamente obtidos. Destarte, o remédio possui como escopo evitar que o ofensor de conduta antijurídica lucre com sua própria torpeza, algo que os ordenamentos jurídicos ao redor do mundo repudiam.
No cenário brasileiro, é interessante encarar o episódio envolvendo Kardashian como um alerta aos influenciadores que “emprestam” suas engajadas contas em redes sociais para o anúncio de jogos de azar (ou lucro fácil),7 tais como a aposta do foguetinho, contravenções penais tipificadas, embora a conduta dos influenciadores não seja considerada ilícita do ponto de vista criminal.
Lado outro, é possível que, pela responsabilidade civil, sejam tais personalidades reprimidas pelo conteúdo publicitário envolvendo a prática de tais jogos, considerando, ainda o disgorgement of profits e o instituto do lucro da intervenção.
Cabe aos influenciadores redobrar a atenção quando resolverem vincular sua imagem, fama e notoriedade à produtos e serviços considerados ilícitos ou com suposto potencial de fácil lucro (rápido investimento), em obediência, inclusive, aos preceitos da boa-fé objetiva estabelecidos na legislação pátria.
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Caio César do Nascimento Barbosa
Referências
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1. Ver mais em: BARBOSA, Caio César do Nascimento; VICENTE, Fabrícia Barbosa. Primeiras impressões sobre o uso fraudulento de criptomoedas sob a ótica da responsabilidade civil. Revista de Direito CAPP. v. 1, n. 1, p. 22 – 39, 2021, p. 28. Acesso em: 23. set. 2022.
2. Importa destacar, nesse momento, que as “criptomoedas são ativos, tal qual o real, o dólar, e o euro, no entanto, são digitais, e não são emitidas por bancos, de modo que quem controla a oferta de criptomoedas no mercado é o próprio código da criptomoeda. Sendo o Bitcoin a mais popular dentre essas criptomoedas” (GUIMARÃES, Clayton Douglas Pereira; GUIMARÃES, Glayder Daywerth Pereira. O desafio insuperável do direito sucessório frente a perda de carteiras de Bitcoin. Magis – Portal Jurídico. 2021. Disponível em: https://bit.ly/3lYiNf6).
3. Ver mais em: ROSENVALD, Nelson; KUPERMAN, Bernard Korman. Restituição de ganhos ilícitos: há espaço no Brasil para o disgorgement? Revista Fórum de Direito Civil, Belo Horizonte, ano 6, n.14, p.11-31, jan./abr. 2017.
4. Ver mais em: BARBOSA, Caio César do Nascimento; SILVA, Michael César; BRITO, Priscila Ladeira Alves de. Publicidade ilícita e influenciadores digitais: novas tendências da responsabilidade civil. Revista IBERC, Minas Gerais, v.2, n.2, p. 1-21, mai.-ago./2019.
5. No original: “protecting consumers and competition by preventing anticompetitive, deceptive, and unfair business practices through law enforcement, advocacy, and education without unduly burdening legitimate business activity”. (FEDERAL TRADE COMISSION. What we do. 2021. Disponível em: https://bit.ly/3gtiaLv. Acesso em: 21 out. 2022).
6. No original: “Don’t use vague or confusing terms like ‘sp,’ ‘spon,’ or “collab,” or stand-alone terms like ‘thanks’ or ‘ambassador’, and stay away from other abbreviations and shorthand when possible”. (FEDERAL TRADE COMISSION. Disclosures 101 for Social Media Influencers. 2021. Disponível em: https://bit.ly/3MVKCSg. Acesso em: 24 maio 2021).
7. UOL. Carlinhos Maia e Viih Tube fazem publis de jogos online proibidos no Brasil. Disponível em: https://bit.ly/3gAKeNa. Acesso em: 21 out. 2022.