A Relevância da Questão Federal no Recurso Especial: Impressões e reflexões iniciais

A Relevância da Questão Federal no Recurso Especial: Impressões e reflexões iniciais

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Incluída pela Emenda Constitucional nº 125, promulgada em 14 de julho de 2022, a relevância da questão federal surge como mais um esforço para conferir eficiência à prestação jurisdicional. O objetivo é nobre e está inserido dentro de uma sistemática advinda com outra EC, a de número 45, que, em 2004, incorporou o inciso LXXVIII ao artigo 5º do texto da Constituição Federal. Foi a mesma Emenda 45, aliás, que fez nascer a repercussão geral no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

Enquanto garantia constitucional, a duração razoável do processo, principal aspecto da eficiência, deve ser assegurada por mecanismos legítimos que busquem descongestionar o Judiciário, em razão do elevado número de demandas que o vem sobrecarregando. Surge, nessa perspectiva, anos após a criação do filtro no STF, este novo, desta vez objetivando os recursos especiais, a fim de auxiliar para que o Tribunal da Cidadania corresponda com eficiência à sua missão institucional.1

De acordo com o novo parágrafo segundo do artigo 105 da Constituição Federal, “No recurso especial, o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso”, para que seja admitido. Ou seja, ao recorrente existe um novo ônus (somado aos que já lhe incumbiam), de demonstrar que a discussão encartada no recurso especial ultrapassa o interesse exclusivo daqueles litigantes e, por isso, cabe ao STJ sua análise que busca unificar a interpretação da legislação federal.

O parágrafo terceiro, por sua vez, elencou hipóteses em que “Haverá a relevância de que trata o § 2º deste artigo”. Quer dizer, o legislador constitucional estipulou (de antemão) alguns casos em que a relevância decorre da própria Constituição Federal, não podendo ser afastada pelo STJ. Ainda em outros termos, são hipóteses em que a relevância é presumida, podendo-se inclusive falar em presunção absoluta ou automática.

As hipóteses que foram listadas na Emenda Constitucional, em flagrante opção por causas com reflexos em direitos políticos,2 às quais indicamos fortemente a leitura, são cinco e mais uma que remete à legislação infraconstitucional. Em três das hipóteses, o critério para a relevância é a natureza da matéria (incisos I, II e IV), em uma é a expressão econômica (inciso III) e, em outra, o que se busca preservar é o respeito à unidade decisória (inciso V).

Quanto às demais hipóteses, não inseridas naquelas listadas no §3º, do artigo 105 da Constituição Federal, o STJ somente não pode conhecer da relevância “pela manifestação de 2/3 (dois terços) dos membros do órgão competente para o julgamento”. Fica claro que a Emenda Constitucional adota, como regra, a ocorrência da relevância. Isto é, diante da arguição de relevância pelo recorrente, a regra é sua admissão por esse fundamento (e não a sua inadmissão), a não ser que o próprio STJ diga (ou já tenha dito) que determinada matéria não é relevante.

Como consequência, não há dúvidas de que a decisão sobre se há ou não relevância em determinada matéria deve ser tomada por um órgão colegiado (“órgão competente para o julgamento”, nos termos do texto inserido na Constituição) do STJ. De forma pública e fundamentada.3 Essa decisão não pode ser tomada pelos Tribunais de Justiça ou Tribunais Regionais Federais (Tribunais recorridos), embora seja possível que o STJ venha a delegar a inadmissão quando a matéria já tiver sido decidida como não relevante pelo órgão competente da Corte Superior. Não poderá delegar, contudo, o julgamento sobre a existência ou não de relevância em determinado Recurso Especial.

Indo além, em que pese a aparente simplicidade do texto da Emenda Constitucional nº 125 (e talvez justamente em razão da sua vagueza), várias discussões tiveram (e vem tendo) espaço em sede doutrinária desde a publicação da Emenda Constitucional. Não poderia ser diferente, diante da ausência de maiores orientações no texto que passa a fazer parte da Constituição Federal, especialmente em matéria procedimental. Por isso, certo é que as delimitações da relevância serão estabelecidas de acordo com a abordagem prática diária do Tribunal.

Mostras disso são as contraposições que surgiram inclusive quanto à imediata aplicação da Emenda Constitucional ou a necessidade de aguardar legislação complementar. Dúvidas, aliás, que advieram do aparente conflito entre os artigos primeiro e terceiro da EC 125/2022, aquele prevendo que a relevância deverá ser demonstrada “nos termos da lei” e este que a Emenda “entra em vigor na data da sua publicação”. A discussão parece atualmente encerrada diante do Enunciado Administrativo 8 do próprio STJ, aprovado em 19 de outubro de 2022, que esclarece: “A indicação, no recurso especial, dos fundamentos de relevância da questão de direito federal infraconstitucional somente será exigida em recursos interpostos contra acórdãos publicados após a data de entrada em vigor da lei regulamentadora prevista no artigo 105, parágrafo 2º, da Constituição Federal”.4

Essa, todavia, não é a única questão que deverá ser delimitada pela Corte. Outro exemplo é sobre o que se entende como “órgão competente” cuja decisão de 2/3 afasta a relevância. Apesar de parecer singela a questão, é possível que surja a dúvida doutrinária sobre se a previsão se refere a cada uma das Turmas do STJ, cada qual com cinco Ministro e com competência para julgar determinada matéria específica; ou, por outro lado, às Seções, cada qual composta de duas Turmas. Caso o afastamento ocorra pelas Turmas, o que aparentemente pretendeu a Emenda Constitucional, é possível prever que ocorrerão casos em que em que uma das Turmas entenda haver relevância em determinada matéria e outra, da mesma Seção, entenda não haver. Como consequência, serão conflitantes as decisões e haverá insegurança.

Ainda, pode-se falar que há dúvida quanto ao que deve ser entendido por “jurisprudência dominante”, expressão mencionada no texto inserido à Constituição Federal (artigo 105, §3º, inciso V). Adotando-se um critério quantitativo, o que se leva em consideração é a existência de elevado número de julgados em um mesmo sentido. Por outro lado, pela adoção de um critério qualitativo, o que importa é o órgão que proferiu a decisão, a profundidade da análise da questão, a matéria de fundo debatida ou outros critérios que envolvem não o número de julgados, mas a sua “qualidade”.

Para dar algumas respostas a essas dúvidas, alguns parâmetros já estão disponíveis e podem servir de fios condutores do agir da Corte nos próximos passos com relação à relevância. São eles advindos dos outros filtros semelhantes, como da repercussão geral do Recurso Extraordinário para o STF e da transcendência nos Recursos de Revista para o Tribunal Superior do Trabalho. Com relação aos critérios adotados na prática desses filtros, já há jurisprudência e doutrina que sirva como norte, muito embora deva o Superior Tribunal de Justiça respeitar as características das matérias que julga e, principalmente, a sua função constitucionalmente estabelecida.

Nesse sentido, em seu dia-dia, a Corte certamente demonstrará a extensão do novo filtro de admissibilidade do recurso especial. O primeiro passo, que já anunciou que se avizinha, será elaborar e remeter ao Congresso Nacional a proposta da lei regulamentadora da Emenda Constitucional 125/2022. Até lá, nos cabe refletir e manifestar impressões que auxiliem na compreensão do novo instituto, algumas delas acima apresentadas.

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Afonso Vinício Kirschner Fröhlich*

João Fernando Doin de Godoi**

*Mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Bacharel em Direito pela mesma Universidade. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Pesquisador dos Grupos de Pesquisa “Teoria Crítica do Processo: perspectivas hodiernas do Processo Civil em relação à Constituição, cultura, democracia, inteligência artificial e Poder”, coordenado pelo Prof. Dr. Darci Guimarães Ribeiro; e JUSNANO, coordenado pelo Prof. Dr. Wilson Engelmann, ambos vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS. Advogado sócio do Escritório de Advocacia Afonso Fröhlich Advogados Associados. E-mail: afonsovinicio@afrohlich.adv.br e afonsovkf@gmail.com.

**Acadêmico do 8º período do curso de Direito da Universidade Santa Amélia, Ponta Grossa/PR. Estagiário de Graduação da 2ª Promotoria de Justiça da Comarca de Castro/PR. E-mail: godoy4391@gmail.com.

 

Referências

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1. Não se desconhece aqui o respeitável entendimento de que a justificativa para a criação da relevância da questão federal do recurso especial resida na necessidade do cumprimento da finalidade institucional do STJ, como corte de precedentes, de dar unidade ao Direito mediante a criação de precedentes (Nesse sentido: MITIDIERO, Daniel. Relevância no recurso especial. São Paulo: RT, 2022). Porém, entendemos que a relevância foi pensada com o claro objetivo de alcançar maior eficiência à prestação jurisdicional, como fica claro nos pareceres proferidos no Senado Federal à denominada “PEC da Relevância” (Projeto de Emenda Constitucional nº 39/2021). Sobre essa perspectiva: FRÖHLICH, Afonso Vinício Kirschner; RIBEIRO, Darci Guimarães. Relevância da Questão Federal no Recurso Especial: algumas discussões à luz da eficiência processual e do dever de fundamentar. In: MARQUES, Mauro Campbell; FUGA, Bruno; TESOLIN, Fabiano da Rosa; LEMOS, Vinicius Silva [Org.]. Relevância da Questão Federal no Recurso Especial. 1ed. Londrina/PR: Thoth, 2022.

2. Nesse sentido: GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; OLIVEIRA JÚNIOR, Zulmar Duarte, Novidade no recurso especial: Primeiras reflexões sobre a EC 125 e o requisito da relevância das questões de direito federal infraconstitucional (REsp com RQF). In: MIGALHAS. Ribeirão Preto, 1 ago. 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/tendencias-do-processo-civil/370739/novidade-no-recurso-especial. Acesso em 7 nov. 2022.

3. Analisando o tema nessa perspectiva, ver: FRÖHLICH, Afonso Vinício Kirschner; RIBEIRO, Darci Guimarães. Relevância da Questão Federal no Recurso Especial: algumas discussões à luz da eficiência processual e do dever de fundamentar. In: MARQUES, Mauro Campbell; FUGA, Bruno; TESOLIN, Fabiano da Rosa; LEMOS, Vinicius Silva [Org.]. Relevância da Questão Federal no Recurso Especial. 1ed. Londrina/PR: Thoth, 2022.

4. SUPERIOR Tribunal de Justiça. Critério de relevância do recurso especial só será exigido após vigência da futura lei regulamentadora. In: Notícias. Brasília, 19 out. 2022. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2022/19102022-Criterio-de-relevancia-do-recurso-especial-so-sera-exigido-apos-vigencia-da-futura-lei-regulamentadora.aspx. Acesso em 7 nov. 2022.

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