Para Florivaldo Dutra de Araújo
Como de conhecimento geral de todos aqueles que militam no Direito Público, por meio do Ato Conjunto nº 01, de 23/02/2022, assinado pelo então Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Luiz Fux, e pelo Presidente do Senado Federal, Senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), foi instituída a “Comissão de Juristas responsável pela elaboração de anteprojetos de proposições legislativas que dinamizem, unifiquem e modernizem o processo administrativo e tributário nacional”, sob a presidência da Ministra Regina Helena Costa.
A Comissão encerrou seus trabalhos em 06/09/2022, com a aprovação e apresentação de extenso relatório sobre o caótico estado da arte na relação Administração Pública/Cidadão (Fisco/Contribuinte), bem como encaminhou dez anteprojetos de lei para a solução dos problemas identificados pelos membros que a compuseram, tanto em matéria de processo administrativo quanto tributário. Todos os anteprojetos se tornaram projetos de lei, pela louvável iniciativa do Senador Pacheco.
Dentre a multiplicidade das questões abordadas pela Comissão, esta coluna tem por modesto objetivo a análise de um tema específico, porém dotado da maior importância: a motivação dos atos administrativos tributários, em especial aqueles relativos ao lançamento.
À guisa propedêutica, não custa rememorar que o CTN estabelece, em seu art. 3º, que o tributo é prestação “cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”. Este preceito é praticamente repetido no art. 142 do Digesto Tributário, segundo o qual o lançamento tributário consiste na atividade administrativa “tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível”, bem como que tal atividade “é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional”.
Entre nós, portanto, é certo que tributo é cobrado por meio de ato administrativo. Mais que isso, ato administrativo vinculado. Nesse sentido, não há diferença entre o ato administrativo tributário e qualquer outro ato administrativo, enquanto categoria jurídica. A conclusão parcial que se estabelece, vale dizer, é a de que não se pode prescindir do estudo do Direito Administrativo quanto à cobrança do tributo.
No bojo das propostas de reforma infraconstitucional propostas pela Comissão, o PL 2481/2022 visa promover reformas na Lei nº 9.784/99, que estabelece normas de processo administrativo federal.
Para além da mudança significativa no sentido de instituir normas gerais de processo administrativo nacional, aplicável a todos os entes da Federação, o PL 2481/2022 pretende incluir os arts. 50-A, 50-B e 50-C no texto da citada lei.1 Contudo, ao menos em matéria tributária, o PL 2481/2022 não traria maiores mudanças, permanecendo, porém, a regra constante da motivação constante do art. 50 da citada lei, a qual prescreve o que se segue:
Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando:
I – neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses;
II – imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções;
III – decidam processos administrativos de concurso ou seleção pública;
IV – dispensem ou declarem a inexigibilidade de processo licitatório;
V – decidam recursos administrativos;
VI – decorram de reexame de ofício;
VII – deixem de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão ou discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais;
VIII – importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de ato administrativo.
1º A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato.
2º Na solução de vários assuntos da mesma natureza, pode ser utilizado meio mecânico que reproduza os fundamentos das decisões, desde que não prejudique direito ou garantia dos interessados.
3º A motivação das decisões de órgãos colegiados e comissões ou de decisões orais constará da respectiva ata ou de termo escrito.
Não se perca de vista, porém, a previsão de inclusão do art. 68-H neste diploma, o qual, versando sobre processo administrativo sancionador, disporia, em seu caput, que “a decisão em processo administrativo sancionador será motivada com as razões que justifiquem a edição do ato, indicando a regra de competência, a contextualização dos fatos e os fundamentos de direito”.
Questão diversa se passa no âmbito do PL 2483/2022, o qual revogaria o vetusto Decreto-Lei nº 70.235/72, para estabelecer as regras do processo administrativo tributário federal. Este passaria a ter a motivação como um de seus princípios (art. 2º do PL 2483/2022). Ademais, o art. 11 da nova lei passaria a determinar que “a Administração Tributária deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade”, disposição inexistente no regime atual. Já o art. 12 traz importante mudança quanto à nulidade dos lançamentos tributários, mediante o acréscimo explícito da expressão “sem fundamentação”, isto é, motivação do ato:
Decreto-Lei nº 70.235/72 | PL nº 2483/22 |
Art. 59. São nulos:
I – os atos e termos lavrados por pessoa incompetente; II – os despachos e decisões proferidos por autoridade incompetente ou com preterição do direito de defesa. |
Art. 12. São nulos:
I – os atos e termos lavrados por pessoa incompetente; II – os lançamentos, os despachos e as decisões proferidos por autoridade incompetente ou impedida, sem fundamentação ou com preterição do direito de defesa. |
Ainda no âmbito do projeto em comento, muito embora o lacônico art. 10 do Decreto-Lei nº 70.235/722 fosse praticamente replicado pelo art. 19, caput, do PL 2.483/22, o art. 18, §1º passaria expressamente a dispor que “os autos de infração ou as notificações de lançamento deverão ser instruídos com todos os termos, depoimentos, laudos e demais elementos de prova indispensáveis à comprovação do fato motivador da exigência”.
Andou muito bem a Comissão.
Por sua vez, no PLP 124/2022, que visa instituir normas gerais de prevenção de litígios e consensualidade em matéria tributária, pretende-se incluir no CTN o art. 194-A, §1º, que expressamente obriga a motivação do auto de infração em matéria de Direito Tributário Sancionador, ao estipular que:
Art. 194-A. A autoridade administrativa que lavrar o auto de infração aplicará a penalidade cabível, observado o parágrafo único, do art. 100, do CTN, no montante ou percentual previsto na legislação específica.
1° As multas cominadas em face do descumprimento de obrigações tributárias serão graduadas motivadamente, levando em consideração as seguintes circunstâncias
atenuantes:
a) cumprimento de obrigação acessória relacionada à conduta infringida, na hipótese de lançamento da obrigação principal;
b) readequação às normas tributárias, entre o início do procedimento fiscal e a lavratura do auto de infração, nos termos da legislação específica;
c) não configuração de dolo, fraude ou simulação;
d) não configuração de reincidência específica;
e) configuração de bons antecedentes fiscais;
f) da infração não resultar prejuízo ao erário;
g) erro ou ignorância escusáveis do sujeito passivo, quanto a matéria de fato.
Some-se a isto o fato de que o fundamento jurídico do auto de infração seria expressamente exigido pelo art. 208-B do CTN, em caso de aprovação do projeto:
Art. 208-B. O auto de infração será lavrado com base nos elementos de prova disponíveis e conterá obrigatoriamente:
I – a qualificação do autuado;
II – a descrição clara dos fatos;
III – o(s) dispositivo(s) legal(is) infringido(s) e a penalidade aplicada;
IV – o fundamento jurídico do lançamento; e
V – a determinação da exigência fiscal e a intimação para cumpri-la ou impugná-la.
Destaque-se, por fim, que o art. 208-H do CTN teria redação similar à do art. 12 do PL 2483/22, a respeito da nulidade do ato imotivado. De modo inteligente, a Comissão logrou tentar positivar a motivação das exigências tributárias em caráter nacional, vez que o PL 2483/22 apenas teria aplicação em âmbito federal.
Por fim, também o PLP 125/2022 veicula proposta de regras quanto à motivação dos atos administrativos tributários em caráter nacional. Intitulado Código de Defesa do Contribuinte, o nome calha à fiveleta. Isso porque, em seu art. 4º, III e VIII, as Administrações Tributárias estariam submetidas aos critérios de “observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos contribuintes” e “indicação dos pressupostos de fato e de direito que justifiquem seus atos, especialmente aqueles que imponham deveres, ônus, sanções ou restrições ao contribuinte, ou lhe neguem direitos, sob pena de nulidade”, respetivamente.
Já o art. 15 do mesmo projeto é dotado de idêntico teor ao do art. 208-B do CTN, que se pretende incluir no CTN por meio do PLP 124/2022. Na mesma toada, o art. 23 do Código de Defesa estenderia a motivação às decisões e acórdãos proferidos em sede administrativa: “as decisões e os acórdãos deverão indicar com clareza os pressupostos de fato e de direito que os determinaram, e as administrações tributárias deverão torná-los públicos, disponibilizando-os para consulta”. Convém salientar que o art. 25, §1º teria redação similar à do art. 208-H do PLP 124/2022 e do art. 12 do PL 2.483/22, a respeito da nulidade de ato imotivado.
Outros dispositivos relativos aos demais anteprojetos apresentados pela Comissão merecem destaque sobre a matéria. É o caso do PL 2845/22, o qual versa sobre a disciplina da mediação tributária federal, seu art. 4º, IV e parágrafo único3 e do art. 3º do PL 2486/2022, a respeito da a arbitragem tributária.4
Expostos os dispositivos acima, é necessário tecer considerações a respeito da motivação dos atos administrativos. Para tanto, nos valemos das lições do homenageado da presente coluna, o querido Professor FLORIVALDO DUTRA DE ARAÚJO, em sua obra “Motivação e Controle do Ato Administrativo”.5
Segundo o ínclito administrativista mineiro, a motivação, dotada de um caráter discursivo, consistiria na exposição não só dos motivos do ato administrativo, bem como de seus demais aspectos. Nesse sentido, tomado o termo em sua acepção formal, a motivação corresponderia à
(…) demonstração, pelo administrador, da existência da motivação substancial. Vale dizer: na exposição capaz de deixar claro que o ato tenha sido praticado segundo motivos reais aptos a provocá-lo, que estes motivos guardam relação de pertinência lógica com o conteúdo do ato e que este tenha emanado da autoridade competente, em vista da correta finalidade legal.6
A motivação, na visão deste autor, teria a natureza jurídica de requisito procedimental dos atos administrativos, “pressuposto sem o qual ficam estes sem validade”.7
Com efeito, FLORIVALDO DUTRA DE ARAÚJO sustenta que a regra geral deve ser a da obrigatoriedade da motivação dos atos administrativos, sejam eles vinculados ou discricionários, consoante se depreende do magistério a seguir:
A dispensa de motivação nos atos vinculados não deve ser cogitada, por duas razões principais: a necessidade de conhecer a interpretação dada pelo administrador à lei e a de tornar possível a verificação da correta incidência do ato na situação fática que o tenha motivado.
(…)
A dispensa de motivação para os atos discricionários é de tal inconveniência que quase não há quem não ponha exceções a tal afirmação, reportando-se a algumas daquelas hipóteses em que a fundamentação se impõe pela natureza do ato.
Ao contrário, onde maior espaço de ação sobrar ao administrador, maiores também deverão ser os instrumentos para controlar seus atos. (…)
Com efeito, o fato de tanto os atos vinculados como os discricionários estarem, em maior ou menor medida, sujeitos a controle, obriga a uma mesma conclusão: devem ser motivados. (…)
A obrigatória motivação dos atos administrativos deve ser, pois, princípio de boa administração, inarredável no Estado de Direito. Aceitar como exceção ou de incidência restrita o dever de motivar, é ideia a ser afastada, ou, no dizer de Demichel: “regra inadmissível, porque ela isola a Administração dos administrados por um segredo que não repousa sobre nenhum fundamento sério”.8
Para mais, uma última observação deve ser feita quanto à motivação, dizendo respeito ao seu conteúdo. Nesse sentido, ao discorrer sobre o que deve conter na motivação, observa FLORIVALDO DUTRA DE ARAÚJO que “seja o ato vinculado ou discricionário, a correspondência exata entre os motivos e o conteúdo do ato deve estar demonstrada, com particular atenção à finalidade que visa”.9
As lições do mestre dizem por si só.
A prática da advocacia tributária lamentavelmente nos faz deparar com atos de lançamento tributário absolutamente imotivados, raramente declarados nulos pelas instâncias de julgamento administrativas. Em verdade, é comum a existência de autos de infração/relatórios fiscais genéricos, que se limitam a meramente indicar o dispositivo legal no qual se baseia a exigência tributária, sem, contudo, demonstrar as razões que justificam a sua incidência, sem expor as razões de direito no qual o crédito tributário se lastreia. Isso sem mencionar as planilhas extensas, que pouco contribuem para o entendimento do contribuinte sobre a real motivação da exigência.
Daí entendermos pelo avanço quanto à matéria a partir das propostas elaboradas pela Comissão e que nesse momento tramitam no Congresso Nacional. Estão de parabéns a Ministra Regina Helena Costa e os demais membros que integraram esta Comissão, os quais citamos nominalmente: Valter Shuenquener Araújo, Marcus Lívio Gomes, Bruno Dantas Nascimento, Júlio Cesar Vieira Gomes, Gustavo Binenbojm, Andre Jacques Luciano Uchôa Costa, Adriana Gomes Rego, Valter de Souza Lobato, Alexandre Aroeira Salles, Aristóteles de Queiroz Câmara, Patricia Ferreira Baptista, Flávio Amaral Garcia, Caio César Farias Leôncio, Maurício Zockun, Leonal Pereira Pittzer e Ricardo Soriano de Alencar.
É certo que consensualidade e redução do número de processos e de sua duração são questões de suma relevância e que precisam ser solucionados. Mas sem que se resolvam questões centrais, como o é a motivação dos atos de exigência de tributos, nada poderá melhorar no ordenamento jurídico-tributário brasileiro. Não é demais ressaltar que motivação do ato administrativo é legalidade, segurança jurídica e Estado de Direito. Fazemos votos para que as propostas sejam aprovadas, trazendo aos contribuintes a possibilidade plena de defesa e previsibilidade.
Referências
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1. Art. 50-A. As propostas de edição, alteração e revogação de atos normativos de interesse geral dos administrados, dos agentes econômicos e dos usuários de serviços públicos, de competência de órgão ou entidade da Administração Pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, devem ser precedidas da realização de análise de impacto regulatório, que conterá informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo em custos, benefícios e riscos para os afetados.
1º. A avaliação de resultado regulatório se destina à verificação do impacto de atos normativos em vigor, considerados os objetivos pretendidos e os efeitos concretamente observados sobre o mercado e a sociedade em decorrência de sua implementação.
2º Submetem-se à exigência prevista no caput os órgãos controladores mencionados pelo art. 20 do DL nº 4.657/1942.
3º Não se submetem à exigência prevista no caput as estatais que explorem atividade econômica em regime de concorrência.
Art. 50-B. Caberá a cada órgão ou entidade da Administração Pública dispor, conforme sua competência, sobre as possíveis metodologias de análise de impacto regulatório e de avaliação de resultado regulatório a serem utilizadas, os quesitos mínimos a serem objeto de exame, as hipóteses em que será obrigatória sua realização e as hipóteses em que poderá ser dispensada.
1° A dispensa da realização da análise de impacto regulatório deve ser objeto de decisão motivada e razoável, com exposição das razões de fato e de direito que justifiquem o afastamento do dever de realizar o procedimento.
2º Nos casos em que não for realizada a análise de impacto regulatório, deve ser disponibilizada nota técnica que tenha fundamentado a proposta de decisão adotada.
3° A inobservância das exigências procedimentais relativas à análise de impacto regulatório acarreta a invalidade do ato normativo ou de outra decisão administrativa adotada, salvo vício sanável.
Art. 50-C. Os relatórios de impacto e de resultado regulatório têm por função subsidiar a tomada de decisão pela autoridade competente, sem efeito vinculante, sendo-lhe facultado determinar complementações pelos órgãos técnicos.
1° Os relatórios de impacto e de resultado regulatório deverão ser submetidos a consulta ou audiência pública, conforme o caso, antes da decisão final.
2° Decisão em sentido contrário ao recomendado pelos órgãos técnicos deve ser fundada em motivação explícita, clara e congruente.
2. Art. 10. O auto de infração será lavrado por servidor competente, no local da verificação da falta, e conterá obrigatoriamente:
I – a qualificação do autuado;
II – o local, a data e a hora da lavratura;
III – a descrição do fato;
IV – a disposição legal infringida e a penalidade aplicável;
V – a determinação da exigência e a intimação para cumpri-la ou impugná-la no prazo de trinta dias;
VI – a assinatura do autuante e a indicação de seu cargo ou função e o número de matrícula.
3. Art. 4º Para os efeitos desta Lei, considera-se: (…)
IV – termo de entendimento: o instrumento de formalização de acordo tributário, que consiste em documento escrito, elaborado pelo mediador e submetido à avaliação e assinatura das partes, com base nas tratativas e nos consensos construídos nas sessões de mediação e no que foi acordado entre as partes.
Parágrafo único. O documento a que se refere o inciso IV deve conter o nome do mediador, o nome das partes ou dos respectivos advogados ou procuradores e o teor do que foi acordado e deve ser submetido à homologação pela autoridade designada por ato do Ministério da Economia.
4. Art. 3º A decisão administrativa pela aceitação do requerimento de submissão do litígio à arbitragem constitui etapa preliminar à pactuação de compromisso arbitral e será proferida pela autoridade máxima do órgão responsável pela administração do crédito, diretamente ou mediante delegação, de acordo com regulamentação por ato próprio, e conterá, no mínimo, descrição pormenorizada das questões que serão objeto da arbitragem, bem como dos elementos de fato e de direito que evidenciam a subsunção do caso concreto ao rol de controvérsias previsto no caput do art. 2º.
5. ARAÚJO, Florivaldo Dutra de. Motivação e Controle do Ato Administrativo. (Dissertação – Mestrado em Direito). Belo Horizonte: UFMG/Faculdade de Direito, 1990.
6. ARAÚJO, op.cit., p. 130-131.
7. ARAÚJO, op.cit., p.136.
8. ARAÚJO, op.cit., p. 168-173.
9. ARAÚJO, op.cit., p. 189.