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A autodeterminação informativa na LGPD

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A autodeterminação informativa representa a possibilidade de o indivíduo controlar seus dados pessoais, garantindo poder de escolha e decisão sobre suas informações. Contudo, não havia menção a este termo expressamente em âmbito nacional.

No contexto internacional, a autodeterminação informativa foi considerada como um direito autônomo na Alemanha, em seu Tribunal Constitucional, ao julgar a Lei do Censo em 1983, ancorada em um direito geral de personalidade1  (BVerfGE 65, 1). Conhecido como “caso do censo”, no processo judicial foi discutida a licitude do tratamento de dados dos cidadãos alemães, como moradia, profissão e local de trabalho para fins estatísticos de crescimento populacional, distribuição espacial da população, características demográficas e sociais, cruzando informações com demais bancos de dados nacionais.

A histórica decisão consagrou que o livre desenvolvimento da personalidade pressupõe, sob as tecnológicas condições do processamento de dados, a proteção do indivíduo contra levantamento, armazenagem, uso e transmissão irrestritos de seus dados pessoais. Como consequência, com respaldo na Lei Fundamental de Bonn, assegura-se a proteção à autodeterminação informativa. Também se extrai do julgado o princípio da especificação de propósitos, orientando e limitando a coleta e a utilização dos dados pessoais.2 Portanto, o Tribunal contemplou um direito autônomo, destacado da privacidade, para concluir pela inconstitucionalidade parcial da Lei.

A partir dessa decisão, observou-se uma convergência de legislações voltadas à proteção de dados pessoais nos Estados-Membros da então Comunidade Europeia. Assim, o direito à autodeterminação informativa passou a receber proteção jurídica eficiente, pois as posteriores Diretivas da Comunidade Europeia e decorrentes legislações nacionais se preocuparam em criar instrumentos para proteção de dados pessoais, intrinsicamente ligados à autodeterminação informativa. Como exemplo, cita-se a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia de 2000, que destaca a independência da proteção de dados pessoais e da privacidade ao dispor sobre os temas em seus artigos 7º e 8º independentemente, já visando dar ao titular maior controle sobre suas informações.

Portanto, a autodeterminação informativa surge como um direito de defesa e de prevenção para usos indevidos de dados pessoais, inclusive em relação a desvios de finalidade no tratamento. Traduz-se, assim, na faculdade de o titular determinar e/ou controlar a utilização de seus dados por terceiros, inclusive pelo Estado. Nesse sentido, leciona Canotilho que “[…] contrapondo-se à ideia de arcana praxis, tende hoje a ganhar contornos um direito geral à autodeterminação informativa que se traduz, fundamentalmente, na faculdade de o particular determinar e controlar a utilização dos seus dados pessoais”.3

Em tal contexto, vale mencionar decisão em apreciação de medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade de relatoria da Ministra Rosa Weber4 no Supremo Tribunal de Justiça. Até então, a autodeterminação informativa não havia ganhado relevo notório em terras nacionais.

A ADI 6389/DF foi proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil em face da Medida Provisória 954/2020, que determinava que as empresas de telecomunicações compartilhassem dados pessoais de seus clientes com o IBGE para fins de pesquisas estatísticas no contexto da pandemia de coronavírus.5 A decisão, além de reconhecer o direito à autodeterminação informativa, reafirmou o direito à proteção de dados pessoais como um direito fundamental autônomo.

O entendimento da Suprema Corte foi seguido na esfera legislativa, com a Emenda Constitucional 115/2022, que alterou a Constituição Federal para incluir a proteção de dados pessoais entre os direitos e garantias fundamentais e para fixar a competência privativa da União para legislar sobre proteção e tratamento de dados pessoais. Assim, seu art. 5º passa a vigorar acrescido do inciso LXXIX dispondo que “é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção de dados pessoais, inclusive nos meios digitais”.

Na LGPD, a autodeterminação informativa ganha destaque, mencionada em seu art. 2º, II não como direito, mas como fundamento. Portanto, seu alcance se aproximará à medida que a normativa for contemplada. Como exemplo, vemos algumas disposições que reiteram o poder de escolha do indivíduo sobre seus dados pessoais. Cita-se o art. 8º, parágrafo 5º, que dispõe sobre o direito de revogação do consentimento de forma facilitada e gratuita. Ainda, o art. 6º, IV, ao dispor sobre livre acesso, garante ao titular o direito de consulta facilitada e gratuita sobre a forma e a duração do tratamento, bem como sobre a integralidade de seus dados pessoais, assim como o art. 6º, V, garantindo ao titular o direito à exatidão, clareza, relevância e atualização dos dados, de acordo com a necessidade e para o cumprimento da finalidade de seu tratamento.

Não obstante, estão os direitos dispostos no art. 18 da LGPD, garantindo ao titular a possibilidade de acesso; correção; anonimização, bloqueio ou eliminação (desde que para dados desnecessários, excessivos ou tratados em desconformidade com a lei); portabilidade; eliminação quando o tratamento for baseado no consentimento; revogação do consentimento; e informação. Ainda, o art. 20 prevê o direito de solicitar a revisão de decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais que afetem seus interesses.

Portanto, sem intuito de exaurir a discussão sobre a autodeterminação informativa, vimos linhas do seu percurso histórico e posterior consolidação tanto jurisprudencial como legislativa. Com a LGPD, espera-se que haja uma transformação cultural para que o cenário de dados pessoais coletados a todo momento e utilizados para diversas finalidades sem conhecimento do titular seja a exceção. Assim, o indivíduo terá maior controle sobre seus dados pessoais, podendo fazer escolhas e tomar decisões com mais informação, garantindo a autodeterminação informativa, buscada como fundamento.

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Pietra Daneluzzi Quinelato

 

Referências

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1. Com caráter aberto e dinâmico, o direito geral da personalidade alemão visa proteger a personalidade contra ameaças inesperadas. Surgido na Lei Fundamental de Bonn, trata do direito à dignidade e ao livre desdobramento da personalidade, não havendo unicidade em seu conceito, mas servindo para suprir eventuais lacunas. AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Novos estudos e pareceres de Direito Privado. São Paulo : Saraiva, 2009.

2. BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 105.

3. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed.. Coimbra: Ed. Almedina, 2003, p. 515.

4. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.389/DF. Brasília, DF, 07 de maio de 2020. Disponível em: https://bit.ly/3PPEtIc. Acesso em 20 fev. 2021.

5. O Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), o Partido Socialista Brasileiro (PSB), o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e o Partido Comunista do Brasil (PCB) também ajuizaram ações no mesmo sentido, para questionar a constitucionalidade da Medida Provisória – ADI 6388; 6389; 6390; 6393.

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