“O contrato é veículo de livre desenvolvimento da personalidade, meio de realização da dignidade humana.”1
Iniciamos a presente coluna com a bela frase acima, de autoria dos ilustres doutrinadores Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves, com o propósito de estimular a reflexão acerca de um papel muito importante que os contratos podem assumir na vida das pessoas, mas que não é muito retratado, qual seja, o papel de auxiliar a expressão dos direitos da personalidade, de forma a concretizar a dignidade da pessoa humana.
Os contratos são tidos como instrumentos comumente utilizados para regular operações de cunho financeiro ou que tenham como objeto bens de valor economicamente aferível, assim, habita no imaginário popular a crença de que somente é possível realizar e oficializar negociações que impliquem direitos de ordem econômica.
Entretanto, as tratativas contratuais não se resumem às questões econômicas, podendo conter disposições de cunho muito mais amplo, tendo em vista que os contratos são nada mais do que um diálogo entre duas ou mais pessoas que visam chegar a soluções de problemas, quaisquer que sejam tais problemas. Dessa forma, os instrumentos contratuais podem tratar, inclusive, de direitos da personalidade.
Assim, na seara das negociações envolvendo os direitos da personalidade, discute-se a crescente contratualização das relações familiares. Ao ler as notícias cotidianas é perceptível que é cada vez mais comum os núcleos familiares recorrerem à realização de contratos visando a resolução de questões que, de outra forma, demandariam interferência do Poder Judiciário.
Para compreender o fenômeno da contratualização das relações familiares é necessário ter em mente o contexto em que está inserido o direito de família atualmente. Tradicionalmente o direito de família sempre foi um ramo do direito muito normartizado, o que fazia com que ficasse engessado à ditames jurídicos arcaicos que não correspondiam à realidade social em toda a sua dinamicidade. Porém, com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e com o advento do Código Civil de 2002 o direito de família internalizou importantes princípios e preceitos constitucionais que levaram à sua repersonalização.
A repersonalização do Direito de Família faz com que tal ramo do direito seja mais focado em promover o bem estar e a dignidade de todos os membros familiares, o que implica no surgimento dos mais variados arranjos familiares para abarcar todas as situações existentes:
“Uma importante conquista para o Direito das Famílias propiciada pela constitucionalização do Direito Civil e pela repersonalização da família, foi a abertura para o surgimento de novos arranjos familiares além do casamento e daqueles previstos pela lei positiva. A realidade social é muito rica em diversidade, principalmente nos contextos de modernidade e pós-modernidade, nos quais as relações ficam cada vez mais complexas e menos rígidas, o que as torna mais mutáveis (…).”2
Diante desse contexto, há mais espaço para que cada entidade familiar tenha a liberdade necessária para decidir sobre qual arranjo familiar será adotado, de forma a permitir a expressão da individualidade de cada família e a prezar pela dignidade de todos os seus membros.
O alcance da dignidade e da felicidade no seio familiar pode se dar através da realização de contratos no âmbito dessas relações, pois “o Direito de Família, contemporaneamente, deve ser visto como manifestação máxima da liberdade jurídica. (…) Compreende-se que cada um pode escolher e definir o que família deve significar na sua vida, sobretudo através de contratos não patrimoniais.”3
Nesse sentido, no âmbito dos relacionamentos amorosos tem-se a realização de pactos antenupciais para reger as relações matrimoniais, pactos de convivência para regular as uniões estáveis, contratos de namoro para orientarem e estabelecerem a natureza da relação entre namorados, entre outras espécies que contratos que podem surgir no mundo jurídico para adequar o direito à realidade social.
Ressalta-se que os contratos acima citados podem conter tanto cláusulas dispondo sobre a divisão e destino dos bens do casal, quanto questões existenciais envolvendo direitos da personalidade, como os deveres de cada um dos membros da relação.
Além disso, podem existir contratos regulando as relações de coparentalidade, estabelecendo a forma como será o exercício do poder familiar e como se dará a divisão da convivência com os filhos por meio de acordos de parentalidade, ferramenta capaz de reduzir a alta litigiosidade que tais demandas podem gerar, de forma a alcançar o melhor interesse da criança e do adolescente, um dos principais princípios do direito de família.
Conclui-se que os contratos podem ser instrumentos muito importantes no alcance da dignidade das pessoas no âmbito das entidades familiares, pois são uma forma de expressão da liberdade e da individualidade de cada membro da família, além de favorecer o diálogo na tomada de decisões importantes, evitando conflitos judiciais na resolução de problemas.
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Referências
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1. FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil, Vol. 4. Salvador: JusPODVM, 2021.
2. ROCHA, Ana Tereza Costa. Multiparentalidade: Possíveis Reflexos Jurídico-Patrimoniais Decorrentes do seu Reconhecimento. 2019. 57 paginas. Monografia( Graduação em Direito) – Dom Helder Escola de Direito, R. Álvares Maciel, 628 – Santa Efigênia, Belo Horizonte – MG.
3. CARVALHO, Dimitre Braga Soares. Contratos familiares: cada família pode criar seu próprio Direito de Família. Disponível em: https://bit.ly/3gZYBrI. Acesso em: 02 nov. 2021.